Tratamento garantido

Estado e Município devem fornecer remédio a portadora de tumor

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22 de julho de 2004, 19h08

O município de Uberlândia e o estado de Minas Gerais foram condenados a fornecer, no prazo de três dias, de forma gratuita e ininterrupta, o medicamento Temozolamida — nome comercial Temodal — para uma paciente com tumor cerebral e a quem mais se apresentar nos postos de atendimento com diagnóstico semelhante.

A determinação é do juiz em plantão, da Vara da Fazenda Pública e Autarquia da comarca de Uberlândia, que concedeu a liminar em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público de Minas Gerais. Em caso de descumprimento, a multa de diária será de R$ 3 mil. Ainda cabe recurso.

A ação foi promovida a partir de denúncia da paciente Conceição Aparecida dos Santos, que é portadora de tumor cerebral e necessita ser submetida a quimioterapia com a utilização do Temodal. Uma caixa com cinco comprimidos custa cerca de R$ 5 mil. A paciente alega que não tem condições financeiras para comprar o remédio. Ela precisa tomar um comprimido por dia de sessão quimioterápica.

Conforme a ação judicial, “o fato de o medicamento requerido não estar padronizado pelas Portarias de nºs. 22 e 23/04 do SUS é irrelevante, porquanto, uma vez demonstrada a efetiva necessidade da utilização do medicamento e a incapacidade financeira de Conceição Aparecida dos Santos em custeá-lo, o poder público deve ser compelido a proporcioná-lo”.

Os promotores de Justiça afirmam, ainda, que “é dever do Sistema Único de Saúde fornecer não apenas os remédios constantes da lista oficial do Ministério da Saúde, mas tendo em vista as particularidades do caso concreto e a comprovada necessidade de utilização de outros medicamentos, impõe-se a obrigatória conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população, de modo a prover os doentes com os meios existentes para seu tratamento”.

Leia a íntegra da ação:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA E AUTARQUIA DA COMARCA DE UBERLÂNDIA/MG.

O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, por intermédio dos Promotores de Justiça que esta subscrevem, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, com fulcro no artigo 129, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988, bem como nos dispositivos pertinentes da Lei nº 7.347/85 e da Lei Federal nº 8.625/93, vem, perante Vossa Excelência, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA em face de:

ESTADO DE MINAS GERAIS, pessoa jurídica de direito público interno, com sede no Palácio da Liberdade, s/nº, Belo Horizonte, podendo ser citada na pessoa de seu procurador-geral; e

MUNICÍPIO DE UBERLÂNDIA, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na av. Anselmo Duarte, s/nº, Centro Administrativo “Virgílio Galassi”, podendo ser citado na pessoa do Gestor Municipal de Saúde, Flávio Goulart.

I — DO OBJETO

Pretende-se com a presente Ação Civil Pública a prestação da tutela jurisdicional para garantir aos cidadãos, usuários do Sistema Único de Saúde, residentes neste Município e região, em especial aos pacientes que apresentarem diagnóstico denominado glioblastoma multiforme, nos casos em que estiver indicado o tratamento medicamentoso com o TEMOZOLOMIDA (nome comercial TEMODAL), em regime de gratuidade, tudo em consonância com a Constituição Federal, a Lei nº 8.080/90 e a NORMA OPERACIONAL DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE – NOAS/SUS nº 01/2002.

II — DA LEGITIMIDADE PASSIVA DOS RÉUS

A legitimidade passiva dos réus — Estado de Minas Gerais e Município de Uberlândia — decorre, inicialmente, da Constituição Federal:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

A Lei nº 8.080/90, por sua vez, disciplina a organização, direção e gestão do Sistema Único de Saúde, nos seguintes moldes:

“Art. 9o – A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos:

I – no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;

II – no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e

III – no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente” (grifo acrescido).

Depreende-se, destarte, que o Sistema Único de Saúde ramifica-se, sem, contudo, perder sua unicidade, de modo que de qualquer de seus gestores podem/devem ser exigidas as “ações e serviços” necessários à promoção, proteção e recuperação da saúde pública.


Por fim, destaca-se, também, que embora a Norma Operacional da Assistência à Saúde — NOAS-SUS — 01/2002 preceitue ser responsabilidade solidária entre o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde dos Estados a garantia de acesso aos procedimentos de alta complexidade, ela também determina, como já dito, que “a regulação dos serviços de alta complexidade será de responsabilidade do gestor municipal, quando o município se encontrar na condição de gestão plena do sistema municipal, e de responsabilidade do gestor estadual, nas demais situações”.

Assim, como o Município de Uberlândia se encontra na situação de Gestão Plena do Sistema de Saúde desde 1.996, a Secretaria de Saúde desta municipalidade responde solidariamente pelo (não) fornecimento do medicamento em testilha, já que o mesmo se aplica a procedimentos de alta complexidade.

Da jurisprudência, por seu turno, sobre o dever constitucionalmente imposto a cada um dos entes federativos de garantir e promover a saúde, extraí-se do Egrégio Supremo Tribunal Federal:

“O preceito do artigo 196 da Carta da República, de eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’. A referência, contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do artigo n° 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade, afigura-se-me como fato incontroverso, porquanto registrada, no acórdão recorrido, a existência de lei no sentido da obrigatoriedade de se fornecer os medicamentos excepcionais, como são os concernentes à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), às pessoas carentes. O município de Porto alegre surge com responsabilidade prevista em diplomas específicos, ou seja, os convênios celebrados no sentido da implantação do Sistema Único de Saúde, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por outro lado, como bem assinalado no acórdão, a falta de regulamentação municipal para o custeio da distribuição não impede fique assentada a responsabilidade do Município. Decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei. Reclamam –se do Estado (gênero) as atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde e da segurança pública, cobertos, em si, em termos de receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínio de conforto suficiente para atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem.(…)” (Voto do Min. Marco Aurélio, proferido no RE 271.286-8-RS) (grifos acrescidos).

Os réus, portanto, como integrantes e gestores do Sistema Único de Saúde, figuram como partes passivas legítimas, uma vez que a decisão postulada projetará efeitos diretos sobre suas respectivas esferas jurídicas.

III — LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A norma do artigo 127 da Constituição da República Federativa do Brasil prescreve que ao Ministério Público, instituição essencial à função jurisdicional, compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Estabelecido este vetor, dispõe em seguida:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(…)

II — Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.

III — promover o inquérito civil público e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos.

Pela análise do texto normativo transcrito, verifica-se que o constituinte incumbiu especificamente ao Ministério Público a relevante missão de defesa proteção do patrimônio público, do meio ambiente e qualquer outro interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo de relevância social.

Destarte, afigura-se legítima a atuação do Ministério Público Estadual para a defesa de direitos e interesses difusos, entre os quais se insere o direito à saúde, exteriorizada, in casu, na busca de provimento judicial que assegure aos pacientes que apresentarem diagnóstico de glioblastoma, nos casos em que estiver indicado o tratamento medicamentoso com o TEMOZOLOMIDA (nome comercial TEMODAL), ainda que importado ou não constante da lista oficial do Ministério da Saúde.


Ademais, o Egrégio Supremo Tribunal Federal:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS.

1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127).

2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III).

3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos.

4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos.

4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.

5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal.

5.1.Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal.

Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação”(grifo nosso).

IV — DOS FATOS

Em 08 de junho de 2004, foi instaurado nesta Promotoria de Justiça procedimento administrativo a partir do termo das declarações prestadas pela Sra. Conceição Aparecida Santos e demais documentos protocolados sob o nº 167/2004. Naquela ocasião, noticiou a declarante que havia sido submetida a tratamento neurocirúrgico e radioterápico de glioblastoma, em localização fronto-parietal direita (glioblastoma – CID = C71.9), conforme atestado no documento de fls. 04 e no laudo médico de fls. 06 da lavra do Doutor Salomou Benabou, CRM 34.259, encontrando-se a paciente, em face das características biológicas dessa neoplasia – agressiva, em tratamento radioterápico complementar, e necessitando ser submetida a quimioterapia adjuvante com o medicamento TEMOZOLOMIDA (nome comercial TEMODAL).

Impende, para o momento, transcrever o Relatório Médico exarado pelo referido médico, acostado à fls. 06 do aludido Procedimento Administrativo em anexo:

“A Sra. Conceição Aparecida Santos é portadora de tumor cerebral fronto-parietal direito cujo diagnóstico anátomo patológico é de gliablastoma multiforme.

Foi submetida a cirurgia, radioterapia e ‘Boost” de Radiocirurgia com boa evolução.

O controle de imagem realizado em 31/05/2004 com ressonância magnética e espectroscopia mostra pequeno aumento do núcleo tumoral e aumento do ‘flair’ indicando atividade do processo. Portanto está indicado o tratamento de quimioterapia com uso de temosolamida (temodal) num total de 6 ciclos, constituindo-se cada ciclo de 350 mg diárias por 5 dias”.

O alto custo do remédio (1 caixa com 05 comprimidos custa cerca de R$ 5.000,00, sendo necessário 1 comprimido por dia), impede que a paciente e seus familiares o adquiram. Portanto, quantum impossível à família de Conceição, conforme seu contra-cheque de fls. 08 e aposentadoria de fls. 09, sem grande óbice, todavia, para os réus.


Tentado administrativamente a solução do impasse, o Município de Uberlândia insiste na tese de que o medicamento é de alta complexidade e não está cadastrado na lista oficial do SUS, fls. 24.

O fato de o medicamento requerido não estar padronizado pelas Portarias de nºs 22 e 23/04 é irrelevante na espécie, porquanto, uma vez demonstrada a efetiva necessidade na utilização do medicamento e a incapacidade financeira de Conceição Aparecida Santos em custeá-lo, o poder público deve ser compelido a proporcioná-lo.

A farta documentação carreada no Procedimento Administrativo anexo aponta a necessidade premente da paciente em tela na utilização da medicação TEMOZOLOMIDA (nome comercial TEMODAL), em não de outro sucedâneo, porquanto os efeitos colaterais da medicação convencional oferecida pelo SUS podem lhe ser nefastos, o que pode causar agravamento do quadro clínico, tendo em vista que o princípio ativo do remédio em testilha causa efeitos colaterais menores e a quimioterapia injetável disponível na rede pública de saúde não apresenta o mesmo resultado no tratamento adequado à paciente.

Destarte, a necessidade está ligada não no fato de que existe outro remédio sucedâneo, mas no resultado que o medicamento pleiteado proporcionará à sobrevida da paciente.

Ademais, é consabido que o Poder Público despende vultosa quantia de verba pública para custear propagandas institucionais, ao mesmo tempo em que nega medicamento a quem dele necessita, criando aos cidadãos óbice ao direito à vida.

Não devam ter muito do que se orgulhar os requeridos, quando relegam à própria sorte uma cidadã deste País que, desesperada pela torturante moléstia se vê na desditosa contingência de ter de contar com a mobilização do Ministério Público e do Poder Judiciário, como último recurso para a obtenção do medicamento que lhe é imprescindível à preservação da saúde e porque não dizer da própria dignidade.

Desse modo, outra alternativa não resta, senão o ajuizamento da presente.

V — DO DIREITO

Em que pese os pacientes que apresentarem diagnóstico de neoplasia neurológica denominada glioblastoma, nos casos em que estiver indicado o tratamento medicamentoso com o TEMOZOLOMIDA (nome comercial TEMODAL) não estarem amparados por legislação específica, como é o caso daqueles que sofrem de enfermidades como a AIDS que contam com o devido suporte legal (Lei nº 9.313/96), estão, pelo menos em tese, protegidos pela Carta Magna.

É sabido e consabido que a Lei n.º 9.313/96, a qual dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS, foi aprovada mediante grande lobby promovido perante o Congresso Nacional, uma vez que tal afecção saiu do anonimato ao deixar de atingir apenas as camadas populares mais baixas, vindo a alcançar também as castas mais altas da sociedade, afetando inclusive o mundo artístico, fazendo com que o tema surtisse grandes impactos e que rapidamente fossem adotadas medidas. Contudo, tal diploma legal deve ser aplicado analogicamente às demais doenças como um todo, a fim de se preservar o mais sublime dos direitos constitucionalmente garantidos: o direito à vida, sob pena de que a garantia constitucional do direito à saúde se converta em vã promessa.

Aliás, é inaceitável que o Estado de Minas Gerais e o Município de Uberlândia não possuam condições de arcar com o custo da medicação que deve ser ministrada à paciente, conforme parecer médico. Ou seja, inaceitável que o ajuste orçamentário tenha maior valor que a vida.

A Suprema Corte, através de uma de suas dignas vozes, Excelentíssimo Ministro Celso de Mello, apresenta inteligente orientação no seguinte sentido, verbis:

“Não deixo de conferir … significativo relevo ao tema pertinente à ‘reserva do possível’ (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Righs”, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação(sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadas de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade” (ADPF 45 MC/DF – Informativo do STF nº 345) (grifos acrescidos).


Salienta-se, inclusive, que as demais doenças, ao contrário da AIDS que está agasalhada pela Lei nº 9.313/96, em conjunto matam muito mais do que esta, justificando a aplicação analógica da Lei n.º 9.313/96:

“Art. 1º – Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.

§ 1º – O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde.

§ 2º – A padronização de terapias deverá ser revista e republicada anualmente, ou sempre que se fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos no mercado.

Art. 2º – As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento” (grifos acrescidos).

Assim, certo é que o artigo 1º da Lei nº 9.313/96 assegura aos portadores do HIV o recebimento, pelo SUS, gratuitamente, da medicação necessária ao seu tratamento de acordo com a padronização de medicamentos a ser feita pelo Ministério da Saúde (§§ 1º e 2º). Necessário é, pois, que se estenda tal benefício a todas as outras pessoas igualmente portadoras de alguma patologia.

Apesar do exposto, o Sistema Único de Saúde – SUS, em suas diversas esferas de atuação (Federal, Estadual e Municipal), tem negado o fornecimento de determinados medicamentos imprescindíveis para o correto tratamento de enfermidades como a do caso concreto, violando, destarte, o direito constitucional e legal à saúde, ao recebimento gratuito de medicamentos e, em última análise, o próprio direito à vida.

Ressalte-se que o ocorrido com a paciente em questão não configura um caso isolado, haja vista que todas as pessoas acometidas pela mesma enfermidade, que já necessitam ou que venham a necessitar de novos medicamentos para o tratamento de neoplasia cerebral primária (glioblastoma), caso os solicitem ao SUS, deparar-se-ão com a sua recusa em fornecê-los, vendo-se, cada uma delas, obrigada a recorrer ao Judiciário, para que possam continuar vivendo, para que tenham sua própria vida e incolumidade resguardadas.

O recebimento gratuito, pelos portadores de tal enfermidade, de “toda a medicação necessária a seu tratamento” se afigura, então, direito difuso, transindividual, de natureza indivisível, do qual são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato.

Ora, nítido está que o objetivo primordial da presente demanda, para a qual está devidamente legitimado a figurar no pólo ativo o Ministério Público, é a proteção de um dos direitos individuais e coletivos mais relevantes e que restou violado com o não-fornecimento, pelo SUS, da medicação necessária ao tratamento das pessoas portadoras de tal neoplasia cerebral: à vida. Aliás, configura-se com tal negativa, a subsunção ao tipo penal do artigo 135 do Código Penal — OMISSÃO DE SOCORRO — na modalidade qualificada prevista no parágrafo único, caso demonstrada a lesão corporal de natureza grave, quando não no tipo da lesão corporal grave, ou gravíssima, conforme venha o paciente a sofrer prejuízos oriundos da falta da referida medicação.

Não menos maculada restou a garantia constitucional da Saúde, como direito de todos e dever do Estado, que se não possuísse acepção de valor/interesse social, não mereceria tratamento individualizado pela Carta Magna de 1988, no Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo II (Da Seguridade Social), Seção II.

Neste sentido, os tribunais pátrios têm decidido:

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. OBJETIVO: RECONHECIMENTO DO DIREITO DE OBTENÇÃO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS AO TRATAMENTO DE RETARDO MENTAL, HEMIATROPIA, EPILEPSIA, TRICOTILOMANIA E TRANSTORNO ORGÂNICO DA PERSONALIDADE. DENEGAÇÃO DA ORDEM. RECURSO ORDINÁRIO. DIREITO À SAÚDE ASSEGURADO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 6º E 196 DA CF). PROVIMENTO DO RECURSO E CONCESSÃO DA SEGURANÇA.

I – É direito de todos e dever do Estado assegurar aos cidadãos a saúde, adotando políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e permitindo o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (arts. 6º e 196 da CF).

II – Em obediência a tais princípios constitucionais, cumpre ao Estado, através do seu órgão competente, fornecer medicamentos indispensáveis ao tratamento de pessoa portadora de retardo mental, hemiatropia, epilepsia, tricotilomania e transtorno orgânico da personalidade.

III – Recurso provido.” (Origem: STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Classe: ROMS – RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 13452. Processo: 200100890152. UF: MG. Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA. Data da decisão: 13/8/2002. Documento: STJ000453749. Fonte: DJ, DATA: 7/10/2002, PÁGINA: 172. Relator GARCIA VIEIRA) (grifos não acompanham o original).


“CONSTITUCIONAL. RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE COM HEPATITE “C”. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO.

1. Delegado de polícia que contraiu Hepatite “C” ao socorrer um preso que tentara suicídio. Necessidade de medicamento para cuja aquisição o servidor não dispõe de meios sem o sacrifício do seu sustento e de sua família.

2. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna.

3. O direito à vida e à disseminação das desigualdades impõe o fornecimento pelo Estado do tratamento compatível à doença adquirida no exercício da função. Efetivação da cláusula pétrea constitucional.

4. Configurada a necessidade do recorrente de ver atendida a sua pretensão, legítima e constitucionalmente garantida, posto assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida (…)

5. Recurso especial provido.” (Origem: STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Classe: RESP – RECURSO ESPECIAL – 430526. Processo: 200200447996. UF: SP. Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA. Data da decisão: 1/10/2002. Documento: STJ000458122. Fonte DJ, Data: 28/10/2002, Página: 245. RSTJ VOL.: 00164, Página: 126. RT VOL.: 00808, Página: 219. Relator LUIZ FUX).

“CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO (INTERFERON BETA). PORTADORES DE ESCLEROSE MÚLTIPLA. DEVER DO ESTADO. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE (CF, ARTS. 6º E 189). PRECEDENTES DO STJ E STF.

1. É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos o direito fundamental à saúde constitucionalmente previsto.

2. Eventual ausência do cumprimento de formalidade burocrática não pode obstaculizar o fornecimento de medicação indispensável à cura e/ou a minorar o sofrimento de portadores de moléstia grave que, além disso, não dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento.

3. Entendimento consagrado nesta Corte na esteira de orientação do Egrégio STF.

4. Recurso ordinário conhecido e provido.” (Origem: STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Classe: ROMS – RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 11129. Processo: 199900781210. UF: PR. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data da decisão: 2/10/2001. Documento: STJ000414682. Fonte DJ, Data: 18/2/2002. Página: 279. LEXSTJ VOL.: 00151. Página: 57. RSTJ VOL.: 00152. Página: 198. Relator FRANCISCO PEÇANHA MARTINS).

“PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQUÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.

– O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular — e implementar — políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.

– O direito à saúde — além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas — representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.

– O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política — que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES.


– O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.” Observação: Votação: Unânime (STF – AGRRE/RS-271286. DJ, 24/11/00, pp 0101 – EMENT. VOL-02013-07, pp 01409) (grifos acrescidos).

VI — DA FUNDAMENTAÇÃO

Os fundamentos básicos do direito à saúde no Brasil estão elencados os artigos 196 a 200 da Constituição da República Federativa do Brasil. Especificamente, o artigo 196 dispõe que:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O direito à saúde, tal como assegurado na Constituição de 1988, configura direito fundamental de segunda geração. Nesta geração, estão os direitos sociais, culturais e econômicos, que se caracterizam por exigirem prestações positivas do Estado. Não se trata mais, como nos direitos de primeira geração, de apenas impedir a intervenção do Estado em desfavor das liberdades individuais. Neste sentido, Alexandre de Moraes, trazendo excerto de Acórdão do STF, preleciona que:

“Modernamente, a doutrina apresenta-nos a classificação de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos.”

Como destaca Celso de Mello:

‘enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) –que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais — realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) — que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade’ (STF – Pleno – MS n° 22164/SP – rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 17-11-1995, p. 39.206)” (grifo acrescido) (1) .

Destarte, os direitos de segunda geração conferem ao indivíduo o direito de exigir do Estado prestações sociais (positivas) nos campos da saúde, alimentação, educação, habitação, trabalho etc.

Cumpre ressaltar, outrossim, que baliza nosso ordenamento jurídico o PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, insculpido no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal e que se apresenta como fundamento da República Federativa do Brasil.

Daniel Sarmento, em sua erudita obra intitulada “A Ponderação de Interesses na Constituição”, assevera que:

“Na verdade, o princípio da dignidade da pessoa humana exprime, em termos jurídicos, a máxima kantiana, segundo a qual o Homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio. O ser humano precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em razão dele. Nesse sentido, a pessoa humana deve ser concebida e tratada como valor-fonte do ordenamento jurídico, como assevera Miguel Reale, sendo a defesa e promoção da sua dignidade, em todas as suas dimensões, a tarefa primordial do Estado Democrático de Direito. Como afirma José Castan Tobena, el postulado primário del Derecho es el valor próprio del hombre como valor superior e absoluto, o lo que es igual, el imperativo de respecto a la persona humana.

Nesta linha, o princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado. A despeito do caráter compromissório da Constituição, pode ser dito que o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de respeito irrestrito ao ser humano — razão última do Direito e do Estado” (grifo acrescido) (2) .

Visando a concretizar o mandamento constitucional, o legislador estabeleceu preceitos que tutelam e garantem o direito à saúde. Neste sentido, a Lei nº 8.212/91 dispõe que:


“Art. 1º A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social.

(…)

Art. 2º A Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Parágrafo único. As atividades de saúde são de relevância pública e sua organização obedecerá aos seguintes princípios e diretrizes:

a) acesso universal e igualitário;

b) provimento das ações e serviços através de rede regionalizada e hierarquizada, integrados em sistema único;

c) descentralização, com direção única em cada esfera de governo;” (grifos acrescidos).

Assim, corroborando o mandamento constitucional, a Lei Orgânica da Seguridade Social reafirma o compromisso do Estado e da própria sociedade no sentido de “assegurar o direito relativo à saúde”.

Um variado número de portadores de glioblastoma que necessitarem de radioterapia associada conjuntamente com quimioterapia com o medicamento TEMOZOLOMIDA (TEMODAL), ESTARÃO, SEM TRATAMENTO, CONDENADOS A SEQÜELAS IRREVERSÍVEIS OU INCLUSIVE À MORTE, tornando-se incapacitados para as atividades da vida diária e para o trabalho, saindo precocemente do mercado de trabalho e ingressando prematuramente no rol de beneficiários da previdência pública, o que nos leva a concluir que seria menos oneroso para o Estado (lato sensu) tratá-los agora, ao invés de ver parte de sua população ser condenada aos efeitos de um tumor cerebral maligno sem o devido tratamento prescrito pelo médico, passando a ser beneficiária de aposentadoria por invalidez.

A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece:

“Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

(…)

Art. 4°. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das funções mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS.” (grifos acrescidos).

O artigo 7º da citada Lei estabelece que as ações e serviços públicos que integram o Sistema Único de Saúde serão desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198, da CF, obedecendo, ainda, aos seguintes princípios:

“Art. 7° (…)

I — universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;

II — integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;

III — preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;

IV — igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;

(…)

XI — conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população” (grifou-se).

Verifica-se, destarte, que a própria norma disciplinadora do Sistema Único de Saúde elenca como princípio a integralidade de assistência, definindo-a como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema.

É dever do Sistema Único de Saúde fornecer não apenas os remédios constantes da lista oficial do Ministério da Saúde, mas, tendo em vista as particularidades do caso concreto e a comprovada necessidade de utilização de outros medicamentos, impõe-se a obrigatória conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população, de modo a prover os doentes acometidos pela neoplasia cerebral primária denominada glioblastoma com os meios existentes para seu tratamento.

Por fim, a Lei nº 9.313, de 13/11/96, estabeleceu a gratuidade do fornecimento de toda a medicação necessária ao tratamento da AIDS, sendo perfeitamente cabível seu emprego analógico às demais doenças de um modo geral, e, face à sua suma importância, novamente transcreve-se:


“Art. 1º – Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.

§ 1º – O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde.

(…)

Art. 2º – As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento” (grifos acrescidos).

No mesmo sentido é a orientação da NOAS-SUS n.º 01/2002, editada pela PORTARIA GM/373, de 27/2/2002, e resultante de negociação firmada pelos gestores de saúde de todos os níveis federativos, tendo sido previamente aprovada pela COMISSÃO INTERGESTORES TRIPARTITE – CIT e pelo CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE – CNS, contando ainda com as contribuições do CONSELHO DE SECRETÁRIOS ESTADUAIS DE SAÚDE – CONASS e pelo CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS MUNICIPAIS DE SAÚDE – CONASEMS.

A nota introdutória (verdadeira exposição de motivos) da NOAS-SUS nº 01/2002 reconhece que, desde a publicação da NOAS-SUS nº 01/2001 (26/1/2001), “FORAM IDENTIFICADOS ENTRAVES NA OPERACIONALIZAÇÃO DE DETERMINADOS ITENS, DECORRENTES DAS DIFICULDADES PARA ESTABELECER O COMANDO ÚNICO SOBRE OS PRESTADORES DE SERVIÇOS AOS SUS E ASSEGURAR A TOTALIDADE DA GESTÃO MUNICIPAL NAS SEDES DOS MÓDULOS ASSISTENCIAIS, BEM COMO DA FRAGILIDADE PARA EXPLICITAÇÃO DOS MECANISMOS NECESSÁRIOS À EFETIVAÇÃO DA GESTÃO ESTADUAL PARA AS REFERÊNCIAS INTERMUNICIPAIS”.

Reconhece a nota introdutória que “NESTE SENTIDO, A COMISSÃO INTERGESTORES TRIPARTITE – CIT, EM REUNIÃO REALIZADA EM 22/11/2001, FIRMOU ACORDO CONTEMPLANDO PROPOSTAS REFERENTES AO COMANDO ÚNICO SOBRE OS PRESTADORES DE SERVIÇOS DE MÉDIA E ALTA COMPLEXIDADE E O FORTALECIMENTO DA GESTÃO DOS ESTADOS SOBRE AS REFERÊNCIAS MUNICIPAIS.”

Em decorrência, a NOAS-SUS nº 01/2002 traça como estratégia principal de hierarquização dos serviços de saúde, na busca de maior equidade, o estabelecimento de um PROCESSO DE REGIONALIZAÇÃO, mediante a elaboração de um Plano Diretor de Regionalização – PDR.

O item 3 da norma preconiza que:

“O PDR fundamenta-se na conformação de sistemas funcionais e resolutivos de assistência à saúde, por meio da organização dos territórios estaduais em regiões/microregiões e módulos assistenciais; da conformação de redes hierarquizadas de serviços; do estabelecimento de mecanismos e fluxos de referências e contra-referência intermunicipais, OBJETIVANDO GARANTIR A INTEGRALIDADE DA ASSISTÊNCIA E O ACESSO DA POPULAÇÃO AOS SERVIÇOS E AÇÕES DE SAÚDE DE ACORDO COM SUAS NECESSIDADES.” (grifos acrescidos).

Apregoa, ainda, a norma, o acesso dos cidadãos aos serviços de saúde, o mais próximo possível de sua residência, bem como “o acesso de todos os cidadãos aos serviços necessários à resolução de seus problemas de saúde, em qualquer nível de atenção, diretamente ou mediante o estabelecimento de compromissos entre gestores para o atendimento de referências intermunicipais” (grifos acrescidos).

Após fornecer os conceitos-chaves a serem utilizados na implantação dos PDR’s no item 5, a NOAS estabelece, no item 6.1.1, alínea b, que “o PDR deve contemplar a perspectiva de redistribuição geográfica de recursos tecnológicos e humanos, explicitando o desenho futuro e desejado da regionalização estadual, prevendo os investimentos necessários para a conformação destas novas regiões/microregiões e módulos assistenciais, observando assim a diretriz de possibilitar o acesso do cidadão a todas as ações e serviços necessários para a resolução de seus problemas de saúde, o mais próximo possível de sua residência.” (Grifos acrescidos).

Ao dispor sobre A POLÍTICA DE ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE/CUSTO NO SUS, a NOAS, no item 23, fixa o elenco de atribuições do Ministério da Saúde:

“1.5 DA POLÍTICA DE ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE/CUSTO NO SUS

23. A responsabilidade do Ministério da Saúde sobre a política de alta complexidade/custo se traduz nas seguintes atribuições:

a – definição de normas nacionais;

b – controle do cadastro nacional de prestadores de serviços;

c – vistoria de serviços, quando lhe couber, de acordo com as normas de cadastramento estabelecidas pelo próprio Ministério da Saúde;

d – definição de incorporação dos procedimentos a serem ofertados à população pelo SUS;

e – definição de incorporação dos procedimentos a serem ofertados à população pelo SUS;

f – estabelecimento de estratégias que possibilitem o acesso mais equânime diminuindo as diferenças regionais na alocação dos serviços;

g – definição de mecanismos de garantia de acesso para as referências interestaduais, através da Central Nacional de Regulamentação para Procedimentos de Alta Complexidade;

h – formulação de mecanismos voltados à melhoria da qualidade dos serviços prestados;

i – financiamento das ações.” (grifos acrescidos)


No item 23.1, exsurge, de forma inequívoca, a responsabilidade solidária da União e dos Estados-membros, por intermédio, respectivamente, do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde, para a garantia de acesso da população aos procedimentos de alta complexidade, verbis:

“23.1. A garantia de acesso aos procedimentos de alta complexidade é de responsabilidade solidária entre o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde dos estados e do Distrito Federal.” (grifos acrescidos)

Ao Município incumbe, por sua vez, de acordo com o item 25.1, a regulação dos serviços de alta complexidade quando se encontrar na condição de Gestão Plena do Sistema Municipal, o que obviamente constitui o caso do Município de Uberlândia:

“25.1. A regulação dos serviços de alta complexidade será de responsabilidade do gestor municipal, quando o município encontra-se na condição de gestão plena do sistema municipal, e de responsabilidade do gestor estadual, nas demais condições.”

O item 44.2 da NOAS admite expressamente a contratação de serviços na rede privada sempre que não estiverem disponíveis na rede pública, ou mesmo quando, ainda que existentes na rede pública, sejam insuficientes para o atendimento da população:

“44.2. O interesse público e a identificação de necessidades assistenciais devem pautar o processo de compra de serviços na rede privada, que deve seguir a legislação, as normas administrativas específicas e os fluxos de aprovação definidos na Comissão Intergestores Bipartite, quando a disponibilidade da rede pública for insuficiente para o atendimento da população”.

V – DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

Dispõe o artigo 273 do Código de Processo Civil que:

“Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:

I — haja fundado receito de dano irreparável ou de difícil reparação; ou

II — fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu”. (grifos acrescidos).

Justifica-se, in casu, o pedido de antecipação da tutela em relação à paciente pelo fato de estarem caracterizados, à lume do artigo 273, do Código de Processo Civil, todos os pressupostos autorizadores de sua concessão, a saber:

“Assim sendo, conclui-se que o primeiro requisito para a concessão da tutela antecipatória é a probabilidade de existência do direito afirmado pelo demandante. Esta probabilidade de existência nada mais é, registre-se, do que o fumus boni iuris, o qual se afigura como requisito de todas as modalidades de tutela sumária, e não apenas da tutela cautelar. Assim sendo, deve verificar o julgador se é provável a existência do direito afirmado pelo autor, para que se torne possível a antecipação da tutela jurisdicional.

Não basta, porém, este requisito. À probabilidade de existência de direito do autor deverá aderir outro requisito, sendo certo que a lei processual criou dois outros (incisos I e II do art. 273). Estes dois requisitos, porém, são alternativos, bastando a presença de um deles, ao lado da probabilidade de existência do direito, para que se torne possível a antecipação da tutela jurisdicional. Assim é que, na primeira hipótese, ter-se-á a concessão da tutela antecipatória porque, além de ser provável a existência do direito afirmado pelo autor, existe o risco de que tal direito sofra um dano de difícil ou impossível reparação (art. 273, I, CPC). Este requisito nada mais é do que o periculum in mora, tradicionalmente considerado pela doutrina como pressuposto da concessão da tutela jurisdicional de urgência (não só na modalidade que aqui se estuda, tutela antecipada, mas também em sua outra espécie: a tutela cautelar)” (CÂMARA, Alexandre, Lições de Direito Processual Civil. Lúmen Iuris: São Paulo, 2000. pp. 390-1).

E:

“Qualificar um dado direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer conseqüência jurídica. Pelo contrário, a constitucionalização do direito à saúde acarretou um aumento formal e material de sua força normativa, com inúmeras conseqüências práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui considerada como a materialização da norma no mundo dos fatos, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.” (BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 3 ed. São Paulo: Renovar, 1996, p. 83).


O fumus boni iuris, ou seja, a plausibilidade do direito invocado, consubstancia-se no relatório e laudo médico e demais documentos apresentados e que atestam, de forma inequívoca, que a paciente apresentou diagnóstico de glioblastoma, necessitando de tratamento quimioterápico com o TEMOZOLOMIDA (nome comercial TEMODAL), que ora lhe é negada pelo SUS, cujo fornecimento é vital. Nessa condição, é direito da paciente, garantido pela legislação já invocada, o recebimento gratuito dessa medicação necessária ao seu tratamento, de acordo com a legislação, constitucional e infraconstitucional, aplicável à matéria.

O periculum in mora é notório e decorre do risco da ocorrência de recidiva da lesão tumoral e agravamento do quadro clínico da paciente, em decorrência da falta do tratamento médico adequado. O receio de lesão consubstancia-se na possibilidade de a referida paciente experimentar prejuízo irreparável ou de difícil reparação, se tiver que aguardar o tempo necessário para decisão definitiva da lide.

Tanto o é que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos demais Órgãos Colegiados tem, como demonstrado alhures, reconhecido a responsabilidade do Estado (gênero) de fornecer, por intermédio de seu Sistema Único de Saúde, os medicamentos imprescindíveis ao tratamento das mais diversas enfermidades e à proteção da saúde, independentemente de constarem na lista oficial do Ministério da Saúde:

“PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. TRATAMENTO DA AIDS. DIREITO À SAÚDE. DEVER DO PODER PÚBLICO.

Presentes os pressupostos necessários à concessão da antecipação de tutela deferida em 1º grau de jurisdição. Direito à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada pela Constituição Federal no art. 196, sendo certo caber ao Poder Público o cumprimento desse dever, garantindo ao cidadão o acesso aos serviços médico-hospitalares necessários ao tratamento da doença. Improvimento ao agravo de instrumento.” (Origem: TRIBUNAL – SEGUNDA REGIÃO. Classe: AG – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 79738. Processo: 200102010244979. UF: RJ. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data da decisão: 11/9/2002. Documento: TRF200086303. Fonte DJU, Data: 24/9/2002, Página: 257. Relator JUIZ PAULO ESPÍRITO SANTO).

“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ATENDIMENTO À PESSOA DOENTE. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA.

I — Fornecimento de remédios à pessoa doente, com insuficiência renal, inclusive procedimentos da hemodiálise, é obrigação da União, caso os órgãos locais do SUS recusem o serviço ao argumento de não haver medicamento disponível.

II — Em se tratando de questão de saúde que envolve risco de conseqüências irreversíveis, plausível a concessão de tutela antecipada.

III — A saúde e a vida ainda que de um só indivíduo integram o universo do interesse público, já que o alijamento da pessoa em virtude da doença desfalca a própria coletividade.

IV — Agravo de Instrumento improvido.” (Origem: TRF – PRIMEIRA REGIÃO. Classe: AG – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 01000913520. Processo: 199901000913520. UF: MG. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data da decisão: 20/3/2001. Documento: TRF100109150. Fonte DJ, Data: 9/4/2001, Página: 87. Relator JUIZ JIRAIR ARAM MEGUERIAN).

Impõe-se, na espécie, a dispensa da intimação para os fins do artigo 2º da Lei nº 8.437/92, no tocante ao fornecimento à paciente, em face da gravidade da enfermidade e da urgência que o caso requer, sob pena de se tornar inócua decisão posterior. Ademais, a garantia constitucional do direito à vida prevalece quando em confronto com as regras de direito processual.

Neste sentido, colaciona-se precedente do Supremo Tribunal Federal, de 31 de maio de 2004:

“FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS

EMENTA: PACIENTE COM PARALISIA CEREBRAL E MICROCEFALIA. PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS E DE APARELHOS MÉDICOS, DE USO NECESSÁRIO, EM FAVOR DE PESSOA CARENTE. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, “CAPUT”, E 196). PRECEDENTES (STF).

– O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular — e implementar — políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.

– O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política — que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro — não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. Precedentes do STF.

– DECISÃO: O recurso extraordinário, a que se refere o presente agravo de instrumento, busca reformar decisão proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 08):

“DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE APARELHO E MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS AO TRATAMENTO DE SAÚDE. PESSOA NECESSITADA. DIREITO À VIDA, GARANTIA DE TODOS E DEVER DO ESTADO. RESPONSABILIDADE PARTILHADA DA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS. RECURSO IMPROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME.” (grifei)

– Entendo não assistir razão ao Município de Porto Alegre/RS, pois o eventual acolhimento de sua pretensão recursal certamente conduziria a resultado inaceitável sob a perspectiva constitucional do direito à vida e à saúde. É que essa postulação – considerada a irreversibilidade, no momento presente, dos efeitos gerados pela patologia que afeta a ora agravada (que é portadora de paralisia cerebral e de microcefalia) – impediria, se aceita, que a paciente, pessoa destituída de qualquer capacidade financeira, merecesse o tratamento inadiável a que tem direito e que se revela essencial à preservação de sua própria vida. Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa organização federativa.

– A impostergabilidade da efetivação desse dever constitucional desautoriza o acolhimento do pleito recursal ora deduzido na presente causa.

– Tal como pude enfatizar, em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput” e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.

– Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar- políticas sociais e econômicas que visem a garantir,aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.

– O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição de 1988”, vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense Universitária) – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

– Nesse contexto, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas — preventivas e de recuperação –, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República. O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas — impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.

– Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais – que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular”, p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) -, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir,às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculado à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição.

– Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito — como o direito à saúde — se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.

– Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.

– Todas essas considerações — que ressaltam o caráter incensurável da decisão emanada do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul — levam-me a repelir, por inacolhível, a pretensão recursal deduzida pelo Município de Porto Alegre, especialmente se se considerar a relevantíssima circunstância de que o acórdão ora questionado ajusta-se à orientação jurisprudencial firmada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no exame da matéria (RTJ 171/326-327, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RE 195.192/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RE 198.263/RS, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – RE 237.367/RS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – RE 242.859/RS, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RE 246.242/RS, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RE 279.519/RS, Rel. Min. NELSON JOBIM, v.g.):

– “PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.

– O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.

– O direito à saúde — além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas — representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

– A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.

– O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política — que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro — não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES.

– O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.” (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

– Sendo assim, e pelas razões expostas, nego provimento ao presente agravo de instrumento, eis que se revela inviável o recurso extraordinário a que ele se refere.

– Publique-se.

Brasília, 31 de maio de 2004.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator” (grifos acrescidos).

E, ainda, tem-se o que segue:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – ANTECIPAÇÃO DE TUTELA INAUDITA ALTERA PARS – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES – SITUAÇÃO DE RISCO EXCEPCIONAL.

I – Melhor doutrina e jurisprudência posicionam-se pelo cabimento da concessão da tutela antecipada inaudita altera pars em situações excepcionais como a presente;

II – A verossimilhança das alegações e o perigo de dano irreparável apresentam-se de forma inconteste no caso em tela. O primeiro configura-se nos documentos acostados aos autos, bem como no fato de o pedido se basear em direito garantido na Constituição Federal de 1988 e em legislação ordinária (Lei n.º 9.313/96). O segundo está caracterizado diante do notório risco de vida que a enfermidade exposta traz ao seu portador, tornando indispensável o fornecimento dos medicamentos pleiteados;

III – Agravo de Instrumento provido, concedendo a antecipação de tutela pleiteada nos termos da exordial da ação principal. Prejudicado o Agravo Regimental.” (Origem: TRIBUNAL – SEGUNDA REGIÃO. Classe: AG – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 58801. Processo: 200002010318508. UF: RJ. Órgão Julgador: QUARTA TURMA. Data da decisão: 18/6/2002. Documento: TRF200088435. Fonte DJU, Data: 27/11/2002, Página: 246. Relator JUIZ VALMIR PEÇANHA).

Portanto, deferir-se a tutela antecipada, no presente caso, significa preservar a vida da paciente e respeitar a sua condição de ser humano e cidadã, que tem o direito de cobrar do Estado o atendimento integral à saúde.

Não obstante o pedido de antecipação de tutela se refira especificamente ao de entrega de determinado remédio, o que levaria, em uma análise apressada, a se pensar que a obrigação que se pede se resumiria a uma prestação de dar, está-se, em verdade, diante de uma verdadeira obrigação de fazer, qual seja, a de prestar o tratamento necessário, suficiente e adequado à manutenção da saúde e preservação da vida da paciente.

Todos os requisitos legalmente exigidos para o deferimento da antecipação do provimento jurisdicional se encontram presentes. Em razão do exposto, o Ministério Público requer a Vossa Excelência:

– a concessão da antecipação de tutela, sem a notificação da parte contrária, a fim de que seja determinado ao ESTADO DE MINAS GERAIS e ao MUNICÍPIO DE UBERLÂNDIA, de forma solidária, o fornecimento gratuito e ininterrupto, em local disponível, à CONCEIÇÃO APARECIDA SANTOS, do medicamento prescrito, necessário ao seu tratamento, ou seja, TEMOZOLAMIDA (nome comercial TEMODAL), e a quem mais se apresentar à sua rede de saúde com idêntico diagnóstico, ainda que necessite ser importado, e/ou não conste da lista oficial do Ministério da Saúde, em prazo exíguo a ser estipulado pelo prudente arbítrio de Vossa Excelência, bem como seja assegurado pela mesma Secretaria o fornecimento mensal da quantidade do remédio necessário à continuidade do tratamento; e

– a cominação de multa diária para caso de descumprimento da decisão liminar, no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a cada um dos réus.

VII – DO PEDIDO PRINCIPAL

Ante todo o exposto, o Ministério Público vem requerer a Vossa Excelência:

a) a citação de todos os réus para, querendo, contestarem a presente ação, sob pena de revelia;

b) a confirmação/ratificação, por sentença definitiva de mérito, dos pedidos de antecipação de tutela;

c) a condenação definitiva do ESTADO DE MINAS GERAIS e do MUNICÍPIO DE UBERLÂNDIA, de forma solidária, ao fornecimento do medicamento TEMOZOLOMIDA (nome comercial TEMODAL), necessário ao tratamento de CONCEIÇÃO APARECIDA SANTOS e de todos os demais pacientes, usuários do Sistema Único de Saúde, residentes no município de Uberlândia que apresentarem diagnóstico de glioblastoma, nos casos em que estiver indicado o tratamento medicamentoso acima referido, ainda que este tenha de ser importado, e/ou não conste da lista oficial do Ministério da Saúde;

d) a dispensa do pagamento das custas, emolumentos e outros encargos, em vista do disposto no artigo 18 da Lei n.° 7.347/85; e

e) embora já tenha apresentado o Ministério Público prova pré-constituída do alegado, protesta, outrossim, pela produção de prova documental, testemunhal, pericial e, até mesmo, inspeção judicial, que se fizerem necessárias ao pleno conhecimento dos fatos, inclusive no transcurso do contraditório que se vier a formar com a apresentação de contestação.

Dá-se à causa o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais).

Uberlândia, 14 de julho de 2004.

Lúcio Flávio Faria e Silva

Promotor de Justiça da Saúde

Fernando Rodrigues Martins

Promotor de Justiça do Consumidor

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