Campanha vigorosa

É preciso frear a campanha em favor do desprestígio da magistratura

Autor

20 de julho de 2004, 13h43

Venho assistindo desde há algum tempo, especialmente nos últimos dezoito meses, uma intensa campanha que visa atingir a independência do Poder Judiciário, buscando apontá-lo como co-responsável pela impunidade e pela corrupção no Brasil. Clama-se pelo controle externo de um poder da República e por mecanismos como a Súmula Vinculante.

Chama a minha atenção que casos de corrupção, devidamente comprovados, de magistrados, contam-se nos dedos, enquanto casos de corrupção envolvendo membros dos poderes Executivo e Legislativo são como fios de cabelo; entretanto, não se houve falar em “controle externo” do Executivo e do Legislativo.

Uma das características do poder é que ele gera, sempre, uma busca por mais poder. Uma constante dessa vigorosa campanha de mídia, em prol do desprestígio da magistratura, apontada como leniente, é o incensamento do Ministério Público. Essa importantíssima instituição, com o advento da Constituição de 1988, passou a ter imensos poderes, poderes estes, todavia, que têm limites, ditados justamente pelo Judiciário.

Bastante oportuna é a observação recente do Deputado Hélio Bicudo, sobre a dificuldade “para a devida contenção de atos poucos ortodoxos de jovens promotores” distanciados da ética e da legalidade (Rev. Jurídica Consulex, nº 177, maio 2004, p. 66, “Ministério Público e seu controle”). Diga-se, por oportuno, que Hélio Bicudo é um dos mais respeitados brasileiros.

O fato é que se vê, quase diariamente, em reportagens, a publicação e a veiculação de material coberto pelo sigilo processual, como se isso fosse normal. Divulgam-se dados de declarações de rendimentos das pessoas, gravações sob segredo de justiça e nada acontece com quem vaza ou divulga informações sigilosas. Uma coisa que também se destaca é o tom maniqueísta da mídia.

A aliança de interesses entre mídia e ministério público se constitui num bom negócio para ambos — o Ministério Público reforça seu poder e a mídia fatura com o chamado ‘jornalismo investigativo’ — mas é um mau negócio para a democracia, se não se respeitam as garantias constitucionais.

Tenho detectado, lamentavelmente, uma nova categoria de decisões judiciais, que não são fruto do convencimento dos juízes, por esta ou aquela razão, mas, simplesmente do medo de que se decidirem de uma certa maneira (pouco importando a doutrina sobre a questão), se tornem alvo de ataques da mídia, que os poderá taxar de corruptos ou coniventes com a impunidade.

Hoje, muitos juízes têm medo de conceder uma liminar contra a Fazenda Pública ou de relaxar uma prisão por mais ilegal que seja, porque amanhã poderão ser acusados de beneficiar alguém ou de compactuar com a impunidade (mote recorrente dos que detestam as liberdades públicas); a esta altura cabe invocar a lição de Rui Barbosa, no sentido de que para o juiz que se acovarda não há salvação.

Apenas à guisa de exemplo, conto o ocorrido comigo outro dia, quando procurei um desembargador, até pouco tempo atrás um juiz garantista, a propósito de um recurso no qual se pleiteava a substituição da pena de prisão por outra, alternativa. Disse-me ele, então: “vou mandar ao Ministério Público. Se ele estiver de acordo, tubo bem…” Francamente, não é isso que se espera de um juiz.

Outro subproduto dessa campanha, é que os juízes, intimidados, passam a querer se desvincular inteiramente dos colegas acusados em alguma reportagem e não hesitam em sacrificá-los, numa ilógica demonstração de que não há corporativismo, sem apreciar o cerne da questão; isto é, se há provas ou não.

Emblemático é o caso do desembargador federal Ivan Athié: a acusação que lhe foi feita, de falsidade ideológica, se baseia em elementos de tal fragilidade, que se o acusado fosse um cidadão comum, a denúncia jamais seria recebida, eis que os fatos imputados não constituem crime nem sequer em tese. Entretanto, como certamente haveria brados da mídia e do Ministério Público, denunciando o corporativismo, a impunidade, enfim, a catilinária ensaiada de sempre, o STJ omitiu-se de examinar o que, em verdade, interessava: o fato é típico?

Parecem não perceber os magistrados que, ao agirem assim, se enfraquecem cada vez mais e a imprescindível independência dos tribunais se perde.

Agora, muito recentemente, foram atacados outros dois magistrados, também sérios, da mesma Corte, bem como uma jovem juíza, moça de valor. É sintomático notar, que ao se defenderem essas pessoas, honestas, disseram, em tom uníssono: “Mas, não demos nenhuma liminar”!

Isso bem dá a dimensão do acuamento a que estão submetidos os nossos juízes, pois, se houvessem deferido as tais liminares, por considerá-las cabíveis à luz da legislação e da doutrina, isso seria um direito deles, como juízes que são; também seria seu direito indeferi-las, se as achassem incabíveis, mas nunca por receio de que a decisão fosse ferir as suscetibilidades da Fazenda Pública ou de algum procurador e, muito menos, por temor de uma reportagem.

Está na hora das pessoas que prezam a democracia — como expressão da independência entre os poderes –das pessoas que prezam as liberdades públicas, começarem a discutir esses acontecimentos. Principalmente, esse é o momento dos juízes de todas as instâncias reafirmarem sua autoridade soberana em relação às decisões que lhe são confiadas. O juiz que merece esse título só deve satisfações à sua consciência e à Constituição, porque essa é a única maneira de proteger a sociedade contra o arbítrio e o abuso de poder. O momento é propício para refletirmos sobre a quem interessa um Judiciário sob “controle”.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!