Dívidas em atraso

Precatório transformou-se em sinônimo de calote no Brasil

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19 de julho de 2004, 20h11

As dívidas do Poder Público, assim reconhecidas em sentenças judiciais, não são pagas imediatamente após a decisão dos juizes. Entram em uma fila e recebem o nome de precatórios. Atualmente, no Estado e no Município de São Paulo, o termo precatório transformou-se em sinônimo de calote, pois os devedores vêm ignorando o que mandam a Lei e a Justiça e simplesmente não pagam seus débitos. O reiterado desrespeito do Poder Executivo às determinações do Poder Judiciário foi objeto de matéria publicada nesta Folha em 12 de julho passado, na qual se denuncia que a impunidade é responsável pela inadimplência. A partir desta lamentável constatação, não é mais possível permanecer de braços cruzados.

Existem duas espécies de precatórios: os alimentares, que se referem a falta de pagamento de salário ou pagamento efetuado abaixo do valor correto, ou ainda referentes a indenizações por morte ou incapacidade, e os não-alimentares, geralmente decorrentes de desapropriações.

Segundo estimativa do MADECA – Movimento dos Advogados em Defesa dos Credores Alimentares do Poder Público, existem hoje, no Estado de São Paulo, mais de 500 mil credores de precatórios alimentares aguardando na fila do pagamento. Destes, mais de 30 mil já faleceram sem nada receber. No município de São Paulo, há cerca de 100 mil credores, sendo que 10 mil morreram sem receber.

O Estado de São Paulo não terminou de pagar sequer os precatórios alimentares de 1997 e a prefeitura da Capital os de 1998. Computando-se o tempo que a Justiça levou para julgar definitivamente a ação que deu origem ao débito, que, em média, é de cinco anos, chega-se ao total estimado de, pelo menos, 13 anos de espera até o atual momento.

O art. 100 da Constituição Federal estabelece que os precatórios alimentares são prioritários na ordem de pagamento, pois são salários dos quais depende a subsistência do credor. As dívidas deverão ser pagas conforme a ordem cronológica de apresentação, sendo obrigatória a inclusão no orçamento da verba necessária para quitá-los no ano seguinte. No entanto, a determinação constitucional vem sendo sistematicamente desrespeitada e o Supremo Tribunal Federal, que poderia decretar a intervenção federal no Estado (art. 34, VI, da Constituição), com o fim de realizar os pagamentos, passou a entender que não se pode obrigar o governante a pagar os precatórios quando não há recursos suficientes para tanto e indeferiu os pedidos de intervenção formulados pelos credores, ressalvando-se o voto vencido do Ministro Marco Aurélio de Mello.

Por sua vez, o Poder Legislativo, que fiscaliza o Executivo, tampouco agiu para corrigir a distorção. Desta forma, os precatórios alimentares passaram a ser ignorados, sem perspectiva de reversão do quadro. O Ministério Público viu-se na obrigação de instaurar inquérito civil para a apuração das responsabilidades.

Tendo o Supremo Tribunal Federal abdicado de seu poder coercitivo, a Ordem dos Advogados do Brasil planeja encaminhar um relatório à Organização dos Estados Americanos (OEA) informando que o Brasil desrespeita os direitos humanos e a ordem jurídica nacional. A medida não poderia ser mais adequada. O não pagamento de débitos alimentares constitui, realmente, uma violação de direitos humanos. Como observado por Flávia Piovesan, no livro Temas de Direitos Humanos, “sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais”.

Ora, uma empresa falida talvez possa alegar, de maneira convincente, não ter recursos para pagar salários atrasados. Já ao Estado não cabe apresentar a mesma justificativa, pois os impostos, que cada vez aumentam mais, continuam sendo cobrados sem perdão. O fato da administração pública não pagar dívidas alimentares significa, apenas, que não priorizou os salários e preferiu destinar sua receita a outras finalidades, como obras, publicidade, viagens.

Se estamos pretendendo tomar o rumo da moralização e da ética, os governantes deveriam ser os primeiros a dar o exemplo. Afinal, desde a Revolução Francesa, não somos mais súditos do rei, mas sujeitos de direitos que o poder público precisa respeitar. Se o Estado é o devedor, o não pagamento deve acarretar o seqüestro de receita suficiente para saldar a obrigação, expediente já previsto atualmente para os precatórios não-alimentares.

Como bem demonstrou Fábio Konder Comparato, ao prefaciar o livro de Flávia Piovesam supracitado, “as Constituições modernas têm como finalidade proteger a pessoa humana contra o arbítrio, o desprezo e a violência dos poderosos. Por isso mesmo, proclamou o art. 16 da Declaração dos Direitos Humanos e da Cidadania que toda a sociedade, em que a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação de poderes determinada, não tem Constituição. É a grande verdade, que ainda não logrou contudo penetrar na consciência perra de nossos governantes”.

É evidente que, se não houver medida coercitiva alguma, as dívidas em atraso jamais serão honradas. Como única alternativa, os brasileiros se vêm na contingência de ter que recorrer a organismos internacionais em busca de socorro e o país será mais uma vez projetado no cenário mundial de forma negativa, como violador de direitos. E estaremos rasgando nossa Constituição cidadã.

Autores

  • é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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