Aldeia Global

Globalização exige da comunidade jurídica conhecimento humanístico

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16 de julho de 2004, 19h00

A constatação do pregador de que não há nada de novo sob o sol, aplica-se, por inteiro, ao termo cunhado, na contemporaneidade, buscando indicar um cenário novo e uma novidade plena.

Refiro-me à palavra globalização e ao conteúdo que se busca conferir ao vocábulo nestes últimos vinte anos. A globalização — apontada como vínculo de integração entre povos — sempre representou a meta utópica de pessoas e impérios.

Na era cristã, a primeira personagem, que deu início a um processo visando globalizar uma idéia, foi Paulo, nascido em Tarso, judeu de nacionalidade romana, filho de fariseus, portanto observadores das Leis, que recebeu forte influência da cultura grega.

Paulo de Tarso, pois, era fruto direto de três fortes culturas: a judaica, a grega e a romana e, por intermédio de suas conhecidas viagens pelo Mediterrâneo criou uma “rede” interligada por uma idéia.

Em momento posterior, os ibéricos conceberam a mais incrível das aventuras humanas. Romperam o deslocar sobre o solo e o navegar em mares fechados e se lançaram à navegação oceânica de forma indômita e sem precedentes no Ocidente.

Atingiram outras terras e outros povos e, apesar da fragilidade de seus veículos de locomoção — caravelas, naves e navetas — conceberam uma rede, a “net” dos navegadores, sem precedentes na História.

Descobriram novos mundos e entre mundos diferentes permitiram a troca de bens e a integração de culturas. Nada se equipara à saga dos ibéricos na trajetória do Ocidente.

Se o conteúdo da palavra globalização é antigo e foi forjado pelo denodo de povos determinados, em tempos remotos, a concepção do vocábulo, com sua atual conceituação é contemporânea.

Assim, quando se fala em globalização, como indicando grande novidade, no mínimo demonstra profunda ignorância histórica e a exposição do desejo recôndito dos países do norte de se apresentarem como os únicos titulares do novo, quando o anunciado por novo é tão antigo quanto o nascer do Sol e sob este mesmo Sol não há nada de novo.

Recente á inclusão de termo no Dicionário de la Lengua da Real Academia Española . Só o fez nas últimas edições, como ocorreu na vigésima segunda edição, datada de 2001. Assim é definido globalização pelo dicionário da Academia:

“Tendencia de los mercados y de las empresas a extenderse, alcanzando una dimensión mundial que sobrepassa las fronteras nacionales”.

Os dicionários vernaculares apresentam o vocábulo.

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa é preciso na formulação oferecida:

“Fenónemo que consiste na integração entre os mercados produtores e consumidores de diversos países ou blocos económicos”

O recém editadoDicionário Houaiss da Língua Portuguesa aponta que a palavra globalização ingressa em nosso idioma após 1960 e oferece uma conotação de natureza político-economica à indicação do seu significado:

… ” processo pelo qual a vida social e cultural nos diversos países do mundo é cada vez mais afetada por influências internacionais em razão das injunções políticas e economicas”

Houaiss, ainda, aponta a globalização como um processo neocolonialista das empresas transnacionais.

O conhecido Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, em sua edição datada de 1995, registra globalizar, como brasilianismo indicativa do ato de integrar, mas não se refere à palavra globalização.

Percebe-se que o termo globalização é de estréia recente nas línguas ibéricas e, portanto, se constitui em neologismo com raiz anglo-saxônica (globalize).

Este mesmo neologismo é expressão de extraordinária ambigüidade, como registra Rubens Ricupero, em obra recente(1).

Análise política da palavra globalização

A partir da leitura do conceito de globalização, pelos mais importantes dicionários da Lingua Portuguesa e da Língua Espanhola, pode-se avançar na busca da natureza política da palavra globalização.

É claro que a globalização é a inevitável conseqüência das novas formas de comunicação.

O rádio, a televisão e a internet, esta caravela mexeriqueira de nossos antepassados,(2) tornaram efetivamente o planeta Terra em uma Aldeia Global (Global Village).

Todos os acontecimentos são instantaneamente conhecidos por todos os habitantes deste planeta, transformado em uma mera aldeia.

Esta integração, por intermédio dos meios de comunicação eletrônica, — como no passado os instrumentos eram os barcos a vela –, conduz a inevitáveis novas situações.

Rompem-se as barreiras territoriais dos estados nacionais e estes passam a receber, mensagens dos possuidores dos meios avançados de comunicação eletrônica, influenciando povos e governantes.


Os países centrais — os mais evoluídos economicamente — tornam-se hegemônicos, transformando-se em polos geradores de políticas econômicas e culturais, exigindo que seus valores e suas concepções de vida incidam sobre todos os povos e em todas as partes.

A globalização é uma nova concepção geopolítica, entendida como a combinação de fatores geográficos e políticos para influenciar — e dominar – nações, regiões ou a plenitude do planeta, tornando-o um feudo dos países centrais.

Ou, como quer Ricupero:

a “globalização prescritiva merece bem o epíteto de ideológica”, entendida esta última palavra como “sistema de crenças e valores, aparentemente, objetivos, científicos, mas que camuflam, na realidade, interesse de classe ou de nações poderosas cuja política reflete a visão de suas classes dominantes”

Reflexos da globalização

A globalização é fenômeno inevitável e irreversível.

Os meios de comunicação, a necessidade de produção de bens em escala, as transferências monetárias eletrônicas são fatores que integram as diversas zonas econômicas, exigindo dos povos e dos governos políticas de compatibilidade entre suas vocações e a realidade imanente.

É necessário acrescentar, ainda, a partir de uma visão política, a vontade de poder dos países centrais e da potência hegemônica, os Estados Unidos, mormente após o fim do socialismo real, antes existente no Leste europeu, que permitia a existência de uma bipolaridade assimétrica, em razão de potências desiguais em força econômica e bélica entre os polos, mas que, mesmo assim, exigia exercícios de dialética diplomática entre os dois blocos, evitando a dominação de um pelo outro.

Esta nova realidade existente – queira-se ou não – exige reflexão e análise de suas inevitáveis conseqüências e como nós, habitantes dos países periféricas e operadores do Direito, devemos nos posicionar.

Primeira reflexão: Hegemonia e rompimentos

Todo estado hegemônico sofre contestações. Estes, inevitavelmente, pelo seu peso específico implantam seus valores e estes são refletidos nas instituições políticas, nas estruturas do Direito, costumes sociais e nas diversas manifestações culturais localizadas.

Quando as sociedades possuem valores compatíveis como os estados hegemônicos, os conflitos se diluem e torna-se mais fácil a preservação de dutos de processamento de vontades entre os estados e os povos.

Na hipótese de ocorrer profundas diferenças entre os valores do estado hegemônico e os localizados à sua periferia, o choque é inevitável e, na impossibilidade de conflitos bélicos, em virtude da diferença desproporcional de forças, ocorre o surgimento de fundamentalismos — uma expressão de vontade de preservar o eu coletivo — e estes levam ações inusitadas e impensáveis, entre os ocidentais, como o 11s.

“Esta ai justamente o perigo de recomendar modelos e figurinos sem atentar para as caracteristas específicas de cada situação”, registra Ricupero, em obra já referida.

Aqui, pois, o primeiro desafio. Como preservar a incolumidade das várias coletividades frente aos fundamentalismos religiosos e políticos?

É questão que se coloca e que deve ser resolvida por vários estamentos acadêmicos e, especialmente, pelos operadores do Direito.

A nova ordem mundial exige novas normas e estas, a partir das vontades dos vários povos, precisam ser elaboradas pelos que tem tradição na preservação de valores e na busca de equilíbrio entre polos diversos.

O Direito sempre se mostrou capaz de, com fundamento na realidade, obter situações de equilíbrio entre partes.

A tradição advinda do Direito Romano, elaborado a partir da visão greco-romana, e recolhido pelos povos mediterrâneos, quando da decadência do Império Romano, é instrumento fundamental, como sempre, para o inter-relacionamento entre povos e preservação de suas identidades.

Cabe recordar que o jurisconsulto Gaius, autor das Institutas que levam seu nome, era libanês e elaborou sua obra por volta do ano 143 da era comum, demonstrando a influência de uma matriz jurídica em partes diversas do, já aquela época, “globalizado” Mediterrâneo.(3)

Ora, se o operador do Direito é agente que possibilita a preservação das culturas locais e, a um só tempo, a integração de outros sistemas aos sistemas jurídicos nacionais, dele se exige, além do conhecimento de sua própria ciência — a jurisprudência, em seu sentido lato — uma vocação dirigida para o conhecimento humanístico.

O operador do Direito, que se atém ao mero conhecimento da norma positiva, poderá, eventualmente, dar solução a determinado caso concreto, mas, seguramente, não equacionará, uma sucessão de casos concretos de origens diversas, sem a concepção de novos patamares para o sistema legal a que se encontre vinculado e em contato com outros sistemas legais.


Conhecer política, como ciência, a história, como repositório de acontecimentos, que, mesmo para circunstâncias diferentes, tendem a oferecer importantes sugestões para a solução de casos e situações contemporâneas, é imprescindível. O uso da matemática, como forma de estruturação lógica do pensamento é imprescindível. Os demais saberes exatos e a biologia se encontram entre as exigências para um convívio possível com o mundo contemporâneo em continua mutação.(4)

Há, por vezes, nas academias de Direito, um pulsão pelo conhecimento da prática cotidiana e da rotina burocrática de aplicação da norma legal. É um equívoco.

Antes de aplicar a lei, o operador do Direito deve se debruçar sobre a origem do sistema jurídico de seu estado e sua cultura nacional e depois, sim, procurará aplicar o conhecimento adquirido às rotinas da vida prática.

Mais ainda. Hoje, o operador do Direito deve ampliar seu conhecimento legislativo além das fronteiras de sua área de atuação. Quem atua com base no Direito continental deve conhecer o Direito de origem anglo escocesa e assim em sentido diverso.

Em tempos de globalização, as grandes escolas e concepções do Direito devem ser conhecidas por todos, sob pena de amesquinhamento das áreas individuais de atuação.

Aqui se conclui pela inevitável necessidade de se conhecer os vários sistemas jurídicos e legais, sob pena de marginalização, quando ocorre, em virtude do fenômeno da globalização, uma interação entre os mesmos sistemas.

Segunda reflexão: Elementos de atuação

A premissa inicial é precisa. Um operador do Direito, nas diversas áreas de atuação — advocacia, judiciário, público ministério, legislativo docência ou jurisconsulto — deve se encontrar capacitado para se aperceber dos novos cenários que se apresentam no campo de sua autuação. Ele não pode simplesmente se ater ao campo estrito do Direito.

Deve ir além e se aperceber das profundas alterações que ocorrem nas sociedades locais e nas várias comunidades interligadas pelas redes da globalização.

Um dos cenários mais expressivos dessas mudanças se encontra na visão atinente à ética.

Esta, em sua visão eurocêntrica, sempre se fundou na ética individual e esta permitia o relacionamento entre pessoas e a preservação de valores que eram caros às tradições do Ocidente, particularmente romano-católico.

Esta ética individual indicava a existência de valores absolutos e preservava o monopólio da ética nos espaços de determinada fé religiosa e de sua hierarquia.

Este monopólio, hoje, se erodiu pelos influxos advindos do pensamento de Bacon – base filosófica da atual globalização – que abriu espaço a uma profunda ruptura pouco apregoada, mas certamente superior, pela sua permanência, a outros movimentos, a Revolução Utilitarista.

A ciência, hoje, não é mera contemplação ou um conhecimento pelo conhecimento, como no modelo escolástico. A ciência se tornou um que-fazer coletivo, afastando-se das velhas conquistas pessoais que deram origem às clássicas invenções.

Vive-se, hoje, a tecnociência e esta integra pessoas em busca de novas etapas do conhecimento e de novas conquistas científicas.

A ciência pura — a ciência entendida como finita na própria ciência — já não existe mais. A ciência sempre visa objetivos, particularmente após as grandes guerras mundiais, quando os cientistas foram colocados a serviço dos conflitos bélicos, produzindo os diversos arsenais e instrumento de sua utilização.

Aqui, o grande dilema está entre a ética tradicional, de contornos individuais, e a necessidade de uma ética para a nova ciência e a utilização de suas conquistas por integrantes dos diversos estados nacionais ou de potências hegemônicas, como ocorre presentemente.

Assim, como quer Echeveria, o futuro está nas titulações mistas. Já não se pode ser apenas operador do Direito. É preciso conhecer outros ramos do conhecimento, sem desprezar a visão humanística, entendida como a centralização do progresso e do conhecimento mediante a preservação da figura plena do homem, entendido este como realidade física e espiritual.

Terceira reflexão: Conflitos entre sistemas legais

Os sistemas legais possuem pontos em comum. Todos visam preservar a sociedade e os valores próprios das pessoas, mesmo em se tratando de sistemas fora do cenário ocidental.

Ocorre que os costumes e as práticas se alteram e alterando-se produzem novas formas de atuação do Direito.

A praticidade do direito contratual da common law conflita fortemente com as formas de atuação do direito continental e suas derivações.

Lá, a palavra é fundamental e, uma vez aceita, vincula vontades. Aqui, o excesso de formalismo é expressão, por vezes, confusa da palavra e do pensamento.


No Brasil, ainda há pouco, juízes e advogados convidados a participar de sessão da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados demonstram grande receio quanto ao eventual futuro ingresso do país na Alca — Área de Livre Comércio das Américas.

Os advogados apontaram a inevitável concorrência desleal (sic) que se produzirá entre os escritórios brasileiros e os norte-americanos, caso se concretize a Alca. Tomaram por base de argumentação a experiência verificada no México quando da institucionalização da Nafta.

Os juízes, por seu turno, indicaram a redução da importância do Judiciário na hipótese da Alca se tornar uma realidade. A arbitragem substituiria a justiça togada.

A mesma conseqüência foi apontada para o cenário das relações de emprego, onde os conflitos passariam a ser resolvidos por comissões de conciliação prévia.

Constata-se, pois, que nos países periféricos implantou-se um compreensível temor frente ao novo e diante da perda da segurança obtidas por intermédio de um sistema legal e burocrático que preserva os nacionais, mesmo que se apresentassem como incompetentes e inaptos para um regime concorrencial.

Outros, mais realistas, apontam o emaranhado legislativo dos países latinos como entrave a globalização.

Registra-se que, no Brasil, após a Constituição vigente de 1988, foram produzidos um milhão de dispositivos legais. O ordenamento jurídico brasileiro contem cem mil decretos, dez mil leis e duas mil medidas provisórias, instituto equivalente e com certa analogia com o decreto-lei português, apesar da dissemelhança de sistemas de governo existentes entre os dois países. A República Portuguesa é parlamentarista e a República Federativa do Brasil é presidencialista (5).

Este caos legislativo é processo contínuo que se auto-alimenta. Em janeiro deste ano de 2002, foi promulgado um serôdio novo Código Civil. Há, neste mês de junho, cento e sessenta propostas legislativas de alteração deste documento fora-de-tempo.

Esta parafernália legislativa impede qualquer exercício de integração legal e exige expertos de legislação ao modo dos alquimistas.

Apesar de todos os países da América Latina, com exceção do Suriname e da Guiana, adotarem o sistema romanístico a integração legislativa é tênue ou inexistente.

Em São Paulo, importante cidade brasileira, se encontra instalado o Parlatino — o Parlamento Latino Americano –, mas suas instalações são comumente utilizadas para atos retóricos sem qualquer visão contemporânea.

As escolas de Direito afastam-se do estudo do Direito Comunitário europeu e pouco se preocupam com os meros contornos do direito insular com suas emanações nos Estados Unidos da América.

Os países latino-americanos e, entre eles, o Brasil, acostumaram-se a uma visão de fechamento de suas fronteiras econômicas e os seus cidadãos preferem, por vezes, a permanência do status quo à busca de novas realidades.

Se assim é na América Portuguesa e na América Espanhola, o conflito entre os sistemas nacionais e os de outras realidades, certamente esta situação atinge maior grau de perplexidade em países de tradição islâmica, onde até hoje se discute a questão da legitimidade do poder e a autoridade do califa.

À complexa questão da legitimidade, resolvida na cultura ocidental, a partir do conceito da legitimidade popular, no mundo islâmico existem três vertentes, a saber:

(a) a comunidade designa e destitui ao mais digno,

(b) o califa deve pertencer à família do Profeta e deve obediência ao imã instituído, independente da forma de sua condução ao cargo.(6)

A laicidade do estado, nos países muçulmanos, é defendida por grupos minoritários e este fato impede a plena integração dos respectivos povos no cenário globalizado.

Os fundamentalismos, presentes em todas as religiões, em graus diferentes, se apresentam mais numericamente e perturbadores nos povos de tradição maometana.

Há, entre os povos muçulmanos, uma ideologia de “protesto social” própria das áreas periféricas e inerentes ao mundo islâmico que não conheceu a renascença nos moldes europeu e particularmente italiano.

Os povos islâmicos, após o período colonial, estão em processo de “recuperação da identidade cultural” e este fato, aliado ao anteriormente arrolado, os impede de se integrar em um cenário globalizado.

Deverão os povos islâmicos se manter à parte e exercendo forte pressão sobre os países adeptos da globalização, especialmente os centrais.

Quarta reflexão: conflitos entre valores culturais

Sem preocupação hierárquica, enumera-se como terceiro elemento de reflexão sobre a globalização o conflito entre os valores culturais.

Tome-se dois espaços geográficos e seus respectivos povos e o conflito de valores culturais é claramente identificado.


A América do Norte é produto direto da colonização de povos de natureza individualista e que colocavam nos conflitos religiosos na motivação para o progresso econômico e social.

Ao adepto da reforma, cabe honrar a Deus pelas obras e estas são produto direto da graça. A predestinação conduz os bons e estes, demonstrando sua posição de eleitos, praticam obras e tornam-se mordomos dos bens de Deus que, em uma visão simplista, são os bens pertencentes a cada um individualmente.

O mundo latino americano, formado pela América Católica, possui uma visão diametralmente oposta sobre a presença das pessoas na terra. Todos foram escolhidos para o sofrimento neste vale de lágrimas. Sofrer as agruras aqui na terra é obter salvo-conduto para o Reino Prometido, onde a eternidade nos espera repleta de prazeres. Por aqui, na Terra, o sofrimento como forma de purificação.

Conquistar riquesas não é preciso. Preciso é se manter puro e pobre na busca do futuro perene. Alguns, transmudados em nobres, tornam-se senhores, outros, a grande maioria, devem permanecer em estado de miséria e marginalização, porque, amanhã, serão agraciados pelas cortes celestiais, onde serão participantes da primeira posição entre os agraciados com os manjares.

Na primeira situação, a existente na América do Norte, a pessoa se torna individualista e crente em sua identidade com o sagrado. Aceita o racionalíssimo científico e a ele se dedica e capta uma certeza advinda das proposições básicas originárias da leitura direta da Bíblia. Inexiste, no hemisfério Norte, a certeza da esperança, apresenta-se a certeza da eleição.

Na América Católica, colocam-se dogmas imutáveis e as conquistas da ciência pode conduzir ao conflito entre a fé e a certeza advinda da experimentação.

A honra é tudo; o lucro pecaminoso. Apresenta-se como excremento do diabo e não pode comparecer no ideário de nenhuma pessoa que pretenda conquistar a eternidade.

A par destas constatações, cabe recordar que a Inquisição atormentava os corpos e esgotava as almas. A verdade era apenas a verdade advinda da tradição e dos dogmas. Todo rompimento destes axiomas era fortemente apenada.

Em recente debate sobre o tema realizado em São Paulo, estudiosos apontaram outra vertente para o tema ou indicaram, sem o saber, as consequências do passado latino americano, a saber: a ausência de uma cultura cívico-democrática nos países da América Latina, que é substituída pela cultura que valoriza a esperteza de seus indivíduos, opção que leva a uma “cidadania deficiente”. (7)

Estes duas mundovisões são incompatíveis e elas recaem sobre os exercícios de globalização ora em curso sobre os dois hemisférios das Américas. O conflito entre as posições é inevitável e, se não produz nada semelhante ao 11S, leva os povos a posicionamento adverso, tornando o exercício da governança penoso e a legitimidade, mesmo que obtida por meios democráticos, contestada.

Quinta reflexão: a marginalização dos políticos

A globalização provocou erosão das formas políticas tradicionais. Os tecnomonetaristas, detentores dos comandos financeiros, nas diversas partes do mundo, possuem linguagem e terminologia próprias e, como casta privilegiada, apresentam profundo desprezo pelo comum das pessoas e, particularmente, pelos homens de Estado.

As suas verdades são absolutas e procuram demonstrar uma superioridade desmedida sobre as demais pessoas que, em sua visão cibernética, só atrapalham suas operações financeiras, oferecendo, aqui e ali, demonstrações sobre seus equívocos e desequilíbrios provocados pelos surtos monetários que invadem as diversas partes do planeta, de acordo com os comandos centrais situados em posições inacessíveis às pessoas comuns.

Os políticos e os dirigentes dos estados nacionais são, como as demais pessoas, considerados seres comuns e como tal incapazes de compreender a linguagem dos detentores do capital financeiro, volátil e existente apenas nos registros contábeis eletrônicos.

Tornaram o planeta um grande cassino, onde as transferências se fazem dia-e-noite, independente dos fusos horários e localizações geográficas.

Dizem-se iniciados nas alquimias financeiras. Exigem transparência de todos os atos alheios, mas suas auditorias, concebidas para apontar acertos e erros dos registros contábeis, são corruptas e imorais, como mostrou a promiscuidade existente entre Arthur Andersen e os dirigentes da Enron, relacionamento ilícito chamado ironicamente de “capitalismo de amiguinhos” por Joseph Stglitz (8) e, ainda mais recentemente, o episódio da WorlCom, sociedade por ações, que teria acrescido de US$ 3 bi e 800 mi em receitas falsas à sua contabilidade, tornando a governança corporativa das empresas americanas alarmantemente deteriorada.


Ora, neste quadro deteriorado, os dirigentes dos estados nacionais não importam. Nada valem, apesar de sobre eles recaírem os grandes desafios impostos pelas sociedades e retratados nos direitos sociais presentes em constituições nacionais e entre eles cita-se: o direito a educação, à saúde, ao trabalho, a morada, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e á infância, a assistência aos desamparados, como informa o caput do artigo 6º da Constituição Federal brasileira.

Na verdade, os direitos sociais espelham as necessidades básicas do ser humano no desenvolver da vida, desde a concepção até a morte. É exigência do Direito Natural preservá-los e incrementá-los, possibilitando às pessoas o mínimo para a sobrevivência e convivência social.

Esta obrigação — de preservar e incrementar o rol dos direitos sociais — recai sobre os políticos e estes, por perda do controle financeiro para os agentes globais, se encontram impedidos de formular políticas e desenvolvê-las.

Tornam-se, consequentemente, frágeis e, quando se opõe a realidade financeira criada e dirigida por terceiros, alheios ao controle do Estado, são fragilizados e tornam-se figuras decorativas, quando não descartáveis.

Só resta aos políticos aceitarem as regras do jogo instrumentalizado além de seus limites de atuação e, neste caso, nada podem fazer e se tornam espectadores de uma cena onde deviam ser atores e autores.

O já citado Stiglitz, em outro passo de sua entrevista antes mencionada, afirma:

“El FMI y el Tesoro de EEUU aprovechan la situación del país en crisis para promover su ideologia y sus intereses” …. (os políticos) Tenian miedo de que, si no estaban de acuerdo com el FMI, éste les suspendería. Y entonces, no solamente no recibirán el dinero que les iba a dar el Fondo, sino que tampoco recibirián el del Banco Mundial ni el de la EU.

Peor además tenian miedo de que mero hecho de hablar com franqueza diera los mismos resultado; de que el FMI pensara que se le estaban enfrentando, contestando de mala manera al Fondo, y que el Fondo les castigara, se vengara de ellos”.

Tudo isto leva à ausência de estadistas — pessoa com grande saber e experiência em assuntos de Estado — que são substituídos por figurantes ocasionais e secundários advindos do show business, a indústria do entretenimento, e expostos pelo rádio e pela televisão, após trabalho de especialistas na transformação de um qualùnque — qualquer um — em homem de Estado.

Há, inicialmente, um apoio a figura produzida, mas, depois, a experiência do cotidiano conduz à sua fragilização e verdadeira dimensão. Acontece, então, o cansaço político e o desinteresse dos cidadãos pela política. Estes, apesar de considerarem que as decisões políticas afetam as suas vidas, deixam a política á margem de seus interesses e atenções.

O fenômeno subseqüente a este desinteresse da cidadania pela política é a privatização da (9) política, onde os interesses particulares sobrepujam os do Estado e, portanto, dos cidadãos, afastando-os da participação e do engajamento efetivo, ainda porque, com a ausência das ideologias, inexistem idéias forças que permitam a vibração individual e o trabalho coletivo por uma idéia.

Há analistas que explicam o fenômeno a partir de três premissas: o individualismo possessivo, a cidadania consumidora de bens e pessoas e a ausência de cultura política.

As premissas arroladas indicam a presença dos valores advindos da globalização que, como se sabe, tem matriz de cultura anglo-escocesa e, portanto, muito diversa das culturas de cerne ibero-americano ou latino-romano.

O estudioso, com fundamento neste tema específico, deve se lançar à análise de novas formas de participação, pois a simples e engenhosa concepção do Abade Sièyés, a representação popular, esgotou-se.

Em tempos de instrumentalização eletrônica, as sociedades não podem abdicar de consultas populares por via da internet, tornando interativas as ações governamentais e possibilitando aos administradores do Estado dar prontas respostas aos anseios da sociedade.

Um sistema de tomada de decisões coletivas deve reunir condições para garantir os objetivos intencionados, como registra Criado, a partir da leitura R. Dahl, indicando que, neste caso, deve existir:

(a) participação efetiva de todos os cidadãos,

(b) igualdade de votos nas etapas decisórias,

(c) conhecimento pleno do tema examinado,

(d) controles do programa de captação de vontades e;

(e) critério de inclusividade, ou seja, todos os cidadãos devem ser incluídos no processo.

Caso contrário, há risco de recaídas autoritárias por toda a parte, particularmente em razão do terrorismo gerado pelos fundamentalismo e pela pobreza, apesar das firmes opções populares, em pesquisas, pela democracia como forma de governo.


Sexta reflexão: o esgotamento das formas tradicionais de convivência internacional.

Esgotaram-se as formas de convívio internacional no modelo clássico. A Organização das Nações Unidas, como se apresenta na atualidade, já não permite a convivência entre estados e povos de diferentes culturas e graus de desenvolvimento econômico.

Os acordos bilaterais, apesar de indicarem traços de união entre estados, mostram-se estreitos para os grandes horizontes da atualidade.

A formação de blocos economicos — a União Européia desde seus primórdios é exemplo positivo — é o caminho a ser desenvolvido pelos povos de culturas similares e valores harmônicos.

Parece difícil a possibilidade de uma convivência pacífica, na ONU, por exemplo, de estados antagônicos em razão de posições religiosas extremadas, mas, certamente, é possível e desejável que estados com povos orientados por valores semelhantes se unam em blocos. Este é o primeiro passo para a saída da atual situação de caos para um coletivo organizado, como, é sempre bom reafirmar, indica a experiência da Europa dos quinze.

Mas, os meros blocos econômicos, mesmo quando se unem fortemente por meio de um moeda comum, como é o caso do euro, são figuras deformadas se não adotarem sistemas de governos com regras precisas e definições de espaços precisos.

As sociedades, com valores assemelhados ou comuns, devem se unir em blocos e estes blocos devem se transformar em federações, mesmo que assimétricas, em razão da diferença econômica e geográfica dos estados que as compõem, para permitir um governo comum e a existência de parlamentos com efetiva condição de legislar sobre toda a comunidade integrante da federação.

É significativo o tema e sua presença se encontra viva na atualidade da União Européia. No ano de 2004, os europeus deverão se reunir em Conferência Inter-Governamental e, segundo se constata, os estados participantes não desejam adotar, naquela oportunidade, a idéia de um Constituição européia. Optariam por um Tratado Constitucional .(10)

Este tema leva a controvérsia expressiva e um dos argumentos para a não adoção de uma Constituição, na visão clássica, é a inexistência de um demos comum — um povo comum — e, em resposta aos opositores desta tese, afirma-se que é o documento constitucional que identifico o povo.

Avançam mais os defensores de uma Constituição.

Afirmam que as normas integradas em um documento constitucional são melhor identificadas e, por via de consequência, conferem maior grau de credibilidade ao direito e, sem credibilidade do Direito, as sociedades se tornam frágeis.

O argumento desta corrente — dir-se-ia constitucionalista — é que um tratado de Direito Internacional Público tem menor credibilidade que uma Constituição e, como suporte de seus argumentos, indicam a ONU, acima citada, como a melhor caracterização dcsta posição teórica.

Ora, a opção por uma Constituição conduziria a criação do Estado Europeu e este só seria viável mediante a instituição de federação.

Epílogo

Estas algumas poucas reflexões sobre a globalização e seus efeitos sobre os povos e as culturas locais. O tema – globalização – é estimulante e apresenta facetas infindáveis. Cabe a cada um, no interior de suas academias, ver e antever as conseqüências desta dominação internacional advinda da globalização centrada em uma potência hegemônica e omnipresente.

Salvar as individualidades dos vários povos é algo imprescindível sob pena de se transformar em monotonia o viver no interior do planeta Terra, pasteurizado e sem sabores, sons e vidas diversas. A homogeneidade leva a fadiga e a fadiga a um viver sem vibração.

Bibliografia

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Editorial Espasa — Madri — 2001

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Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

Editora Objetiva – Rio de Janeiro – 2001

Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa

Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro – 1986

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Editora Vida – Deerfield, Florida, E.U.A – 1993

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Rodrigo Broja

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Léxico de la Política –

Laura Baca Olamendi e os.

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O Brasil e o dilema da globalização

Rubens Ricupero

Editora Senac – São Paulo – 2002

Diários

El País –

15 de junho de 2002, entrevista de Javier Echeverria

22 de junho de 2002, artigo de Antonio Estella de Noriega: Por qué Europa necessita una Constitución

23 de junho de 2002, entrevista de Joseph E. Stiglitz in EP[S]

O Estado de S.Paulo

17 de junho de 2002 – matéria sob o título: Juízes debatem riscos da Alca para o sistema jurídico do País

19 de junho de 2002 – matéria sob o título: Em debate, o que é ser latino-americano

26 de junho de 2002 – matéria sob o título: WorlCom é alvo de acusação de fraude finaneira

Diário do Comércio

18 de junho de 2002 – artigo da advogada Eliana G. Simonetti : “A legislação brasileira é inadequada à globalização”

Notas de rodapé

1- O Brasil e o dilema da globalização, obra lançada pela Editora Senac – São Paulo – 2002

2- Caravela mexeriqueira era especializada em transmitir ordens, avisos ou ountras mensagens entre as náus de uma esquadra

3- vide Les Grandes dates du Droit – François de Fontette – Presses Universitaires de France – 1997

4- a respeito, Javier Echeverría, Ciencia y Valores – Destino – Barcelona – 2002 e entrevista em El País, Sábado, 15 de junho de 2002

5- vide: O Estado de S. Paulo, A7, edição de 17 de junho de 2002, Diário do Comércio, edição de 18 de junho de 2002, artigo da advogada Eliana G. Simonetti (A legislação brasileira é inadequada à globalização)

6- vide: Demetrio Velasco Criado, Pensamento Político Contemporáneo – Universidad de Deusto – Bilbao – 1997

7- vide: O Estado de São Paulo, edição de 19 de junho de 2002, B5 – participaram, entre outros: Celso Lafer, Pedro Malan, Marcos Aguinis e Hector Aguillar Camín

8- Entrevista de Joseph E. Stiglitz in El País, edição de 23 de junho de 2002, in EP[S], Premio Nobel de Economia

9- não consta

10- vide: Antonio Estella de Noriega in El País edição de 22 de junho de 2002 – artigo : Por qué Europa necesita una Constitución.

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