Aborto legalizado

Para ministro Marco Aurélio, criança sem cérebro não tem vida.

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12 de julho de 2004, 15h28

Por ato de um único ministro do STF, a prática do aborto eugênico (no caso de criança anencéfala) foi declarada “legal”, com proibição expressa de outros juízes ou tribunais decidirem em contrário. O meio para levar o assunto ao STF foi uma ação denominada Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O autor da ação foi a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). A causa foi patrocinada pelo advogado Luís Roberto Barroso.

A ação (ADPF 54) foi protocolada junto ao STF no dia 17 de junho de 2004 e distribuída para o ministro Marco Aurélio. Argumentava a parte autora (CNTS) que, ao se proibir o aborto de crianças anencéfalas, estava-se descumprindo um preceito fundamental da Constituição (!).

É difícil imaginar que preceito fundamental é descumprido quando se protege a vida de um deficiente. Segundo a entidade impetrante, ao se obrigar a gestante a não matar seu filho gravemente deficiente, estaria sendo violado o princípio da dignidade humana (!), da legalidade (!), da liberdade e autonomia da vontade(!), bem como os princípios relacionados com a saúde (!).Todas as decisões judiciais têm que ser fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX, Constituição Federal). Qual foi a fundamentação da decisão do ministro?

Segundo suas próprias palavras, quando é detectada a anencefalia em um bebê, “a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo (sic). Se assim é – e ninguém ousa contestar (sic) -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade”.

Note-se que, para o ministro Marco Aurélio, a criança anencéfala não é viva e nunca poderá tornar-se viva. Embora ela tenha um coração pulsando, embora reaja a estímulos nervosos, embora movimente-se dentro do útero, embora se alimente e respire pela placenta, ela não tem vida! E mais: a ela nunca poderá tornar-se um ser vivo!

Continuará sem vida, ainda que nasça, que respire com os próprios pulmões e que continue com o coração batendo por alguns minutos ou por alguns dias! E o ministro está tão certo disso que, segundo ele, “ninguém ousa contestar”! (1ª parte) (2ª parte) Ausente vida humana intra-uterina, conclui o ministro, que não há que se falar em aborto. Ao contrário do que afirmou o ministro, há quem ouse contestar suas afirmações: a CNBB, em nota oficial.

Quem lê a Lei 9882/1999, que dispõe sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, observa que seu artigo 5º prevê a concessão de liminar “por decisão da maioria absoluta de seus membros”. Como então o ministro concedeu a liminar sozinho? É que o parágrafo 1º do mesmo artigo diz que “em caso de extrema necessidade ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar ad referendum do Tribunal Pleno”.

Entendeu, portanto, o ministro relator que havia uma necessidade extrema (!) ou um perigo de lesão grave (!) que justificava impor a todo o país a obrigação de não proteger os mais deficientes de todos os deficientes: os nascituros anencéfalos.Tal decisão é provisória. O

Ministério Público Federal (representado pelo Procurador Geral da República — Cláudio Fonteles) nem sequer ainda foi consultado. Os outros dez ministros poderão confirmar ou cassar a liminar.

No entanto — e isto é o mais grave — a liminar já está em vigor e tem efeito vinculante: nenhum juiz ou tribunal poderá emitir uma decisão contra ela, até que o Tribunal Pleno se manifeste. Se, por absurdo, o STF confirmar a liminar do ministro Marco Aurélio, tal decisão, além de ser vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3º, da Lei 9882/1999) será irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória (art. 12 da mesma lei).

Estará assim “legalizado” o aborto eugênico no país. E o autor dessa “legalização” não terá sido o Poder Legislativo, mas o Judiciário, que não tem a faculdade de legislar, mas tão-somente de aplicar a lei ao caso concreto.

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