Novo Código Civil

Nova lei que estabelece cônjuge como herdeiro será muito discutida

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8 de julho de 2004, 12h43

Introdução – De acordo com o novo Código Civil o cônjuge sobrevivente concorre com os descentes (excetuadas algumas hipóteses) e com os ascendentes (sempre) na herança do falecido.

Trata-se de uma inovação muita significativa, foco de grande polêmica no meio jurídico, e que poderá vir a acarretar situações de extrema injustiça. Antes de iniciar nossas considerações a respeito do tema, é oportuno ilustrar a situação com um exemplo do tipo de distorção que o artigo 1.829 pode vir a acarretar.

Exemplo – Uma senhora é casada em primeiras núpcias, pelo regime da comunhão parcial de bens, e dessa união nasceram dois filhos. Durante a vigência desse casamento, essa senhora recebe de seus pais a doação de valioso patrimônio, doação essa que é gravada com a cláusula de incomunicabilidade.

O casal se separa e, em virtude do regime de bens adotado pelo casal, bem como pela cláusula que gravou a doação, os bens recebidos não integram a partilha feita por ocasião dessa separação. Em outras palavras, o primeiro marido dessa senhora nada recebe dos bens a ela doados.

Tempos depois, essa senhora casa-se em segundas núpcias, desta vez pelo regime da separação de bens com pacto antenupcial (não confundir com o regime da separação obrigatória de bens).

Falecendo essa senhora, seu segundo marido será herdeiro dos bens por ela deixados, concorrendo com os dois filhos na sucessão (1/3 para cada um), inclusive no que diz respeito aos bens que haviam sido recebidos por doação.

O texto do artigo 1.829 do Código Civil inexoravelmente aponta para essa solução, tornando inócua a cláusula de incomunicabilidade que gravou a doação e a própria separação patrimonial decorrente do regime adotado no segundo matrimônio.

A motivação — Para a compreensão do problema ora posto em discussão é preciso mencionar as razões de ordem histórica que foram invocadas como justificativas para que o novo Código elevasse o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro.

Até o advento da Lei do Divórcio (Lei nº 6.515, de 21 de dezembro de 1.977), o regime legal de bens era o da comunhão universal — de tal modo que, em regra, falecido um dos cônjuges, o outro permanecia com a sua meação, ou seja metade dos bens que compunham o patrimônio do casal.

Após a edição da Lei do Divórcio, o regime legal passou a ser o da comunhão parcial, ficando excluídos do patrimônio comum (i) os bens adquiridos por cada cônjuge antes do casamento, e (ii) os recebidos por herança ou doação. Em virtude dessa alteração, aumentou significativamente a chance do cônjuge sobrevivente ficar desprovido de bens e recursos. O Código Civil, ao estabelecer que o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário, concorrendo com descendentes e ascendentes, teria visado corrigir essa que seria, segundo os legisladores, uma situação injusta para com o cônjuge sobrevivente.

A ameaça aos planejamentos patrimoniais e sucessórios – Resumindo o quadro que a seguir será detalhado, pelo novo Código Civil, na imensa maioria dos casos, o cônjuge sobrevivente sempre receberá uma parte do patrimônio existente por ocasião do falecimento do outro cônjuge. Ou o cônjuge sobrevivente será “meeiro” ou será “herdeiro” de todo ou de parte do patrimônio.

Não será exagerado afirmar que é costume arraigado em nossa sociedade direcionar o patrimônio familiar exclusivamente aos consangüíneos (filhos e netos), razão pela qual os cônjuges não participavam (quer como “meeiros”, quer como herdeiros), dos bens que compunham a riqueza recebida pelo outro cônjuge de seus antepassados.

Basta ver que o regime legal de bens vigente no Brasil é o da comunhão parcial de bens, regime esse que exclui do patrimônio comum do casal os bens que cada cônjuge herdar ou receber em doação – além é claro dos bens havidos por cada um dos cônjuges anteriormente ao casamento.

Notadamente nas famílias mais abastadas essa tendência é mais evidente, sendo quase corriqueira a adoção do regime da separação convencional de bens, com pacto antenupcial.

Os planejamentos patrimoniais e sucessórios, na imensa maioria dos casos, foram baseados nas seguintes fórmulas: a) doação dos bens aos filhos, com cláusula de incomunicabilidade e reserva do usufruto desses mesmos bens pelos doadores; e b) testamento gravando os bens com cláusula de incomunicabilidade.

Tendo o novo Código Civil instituído o cônjuge sobrevivente como herdeiro, essas fórmulas de planejamento patrimonial e sucessório estão ameaçadas. Antes de adentrar no exame das alterações introduzidas pelo novo Código Civil, é recomendável deixar claro que em caso de separação judicial prevalecem plenamente as regras relativas ao regime de bens adotados pelos cônjuges, bem como as restrições impostas pelo doador ou testador quanto a incomunicabilidade.


No exemplo acima citado, se aquela senhora viesse a se separar de seu segundo marido, ele nada receberia na partilha dos bens em virtude do regime adotado (separação convencional) e da cláusula de incomunicabilidade que gravou a doação por ela recebida de seus pais. Também não haveria problema, por óbvio, se o segundo marido daquela senhora viesse a falecer antes dela.

O texto da lei – Além da idéia do cônjuge concorrer com os descendentes ser, por si, polêmica, a indiscutivelmente infeliz redação do inciso I do artigo 1.829 do Código Civil contribui para aumentar a controvérsia a respeito do tema.

Dispõe o referido artigo do novo Código Civil brasileiro que:

“Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1640, parágrafo único); ou se, no regime dacomunhão parcial, o autor não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.”

Como se vê, o texto da lei deixa claro que o cônjuge sobrevivente não será herdeiro caso o regime de bens seja o da comunhão universal — hipótese em que ele é “meeiro”.

Também não será herdeiro, se o cônjuge sobrevivente era casado pelo regime da separação obrigatória de bens. A respeito desse regime de bens não será demais lembrar o disposto na Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “no regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

O foco da polêmica diz respeito aos casos em que os cônjuges voluntariamente adotaram o regime da separação total de bens, com pacto antenupcial, bem como aos bens recebidos pelo cônjuge falecido com cláusula de incomunicabilidade.

Embora esses sejam os dois pontos de maior controvérsia, deve ser mencionado que também há divergência no que tange aos casos em que o regime de bens é o da comunhão parcial.

Separação total de bens por convenção dos cônjuges – Ao tratar das hipóteses em que o cônjuge sobrevivente não é herdeiro, o inciso I do artigo 1.829 refere-se textualmente a separação obrigatória de bens e, ainda mais, faz remissão (aliás, incorreta) ao artigo que trata da separação obrigatória.

Portanto, a se tomar pelo texto expresso da lei, o cônjuge sobrevivente será herdeiro caso o regime de bens seja o da separação convencional (não a obrigatória). Essa é a razão que leva boa parte da doutrina, a exemplo de Nelson Nery Júnior, a afirmar que não há espaço algum para que se amplie o que a lei restringiu.

Em outras palavras, como a regra geral é a de que o cônjuge é herdeiro (diz o art. 1829, inc I que ele é herdeiro “salvo …” nas hipóteses ali elencadas), não poderia o intérprete criar exceções não previstas na lei, maxime quando elas são restritivas de direito.

Já o Prof. Miguel Reale sustenta que a sistemática do disposto no Código Civil levaria à conclusão de que os casos de separação convencional de bens estariam, sim, incluídos nas exceções em que o cônjuge sobrevivente não é herdeiro.

Afirma, ainda, que quando os nubentes optam, antes do casamento, pela separação de bens ela se torna “obrigatória” posto tratar-se de conseqüência necessária do pacto antenupcial. Aduz, ainda, que interpretação diversa praticamente acabaria com o regime da separação de bens, contemplado pelo artigo 1.687 do mesmo Código.

Nessa linha de raciocínio, a questão também poderia ser enfrentada sob o seguinte enfoque: É ponto pacífico que em certas hipóteses, a lei torna obrigatória a adoção do regime da separação de bens (Código Civil, artigo 1.641), de tal modo que mesmo que os cônjuges desejassem adotar outro regime que permitisse a comunhão total ou parcial do patrimônio, eles não poderiam fazê-lo. E, tratando-se de separação obrigatória, não há dúvida, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro – circunstância essa que demonstra que a lei civil pretendeu proteger o cônjuge supérstite, mas não a qualquer custo e em todos os casos.

Ora, porque, então, seria herdeiro o cônjuge que voluntariamente – e não por força de regime obrigatório – optou pelo regime da separação de bens? Não haveria justificativa plausível para aquinhoar àquele que sponte propria submeteu-se a um determinado regime que, quando obrigatório, exclui a participação na herança deixada pelo cônjuge pré-morto.

Embora a questão seja polêmica, é preciso alertar que diante dos termos da redação atual do inciso I do artigo 1.829 do Código Civil, o mais provável é que no regime da separação convencional o cônjuge sobrevivente seja considerado herdeiro do falecido.


Bens recebidos com cláusula de incomunicabilidade – Entendemos que o fato do cônjuge falecido ter recebido bens gravados com cláusula de incomunicabilidade não impede que o cônjuge concorra, como herdeiro, na sucessão desses bens.

Parece claro que o espírito da lei foi o de estabelecer, como regra geral, que o cônjuge seja herdeiro dos bens que não integram o patrimônio comum — dos quais, não custa repetir, ele é meeiro.

Ora, a cláusula de incomunicabilidade faz com que o bem não integre o patrimônio do casal, e é justamente esse o tipo de bem em que o cônjuge sobrevivente concorre à sucessão na qualidade de herdeiro.

Regime da comunhão parcial – A parte final do inciso I, do artigo 1.829 do Código Civil (“…ou se, no regime da comunhão parcial, o autor não houver deixado bens particulares.”) tem sido interpretada pela maior parte da doutrina de maneira harmônica indicando que o cônjuge não será herdeiro, no regime da comunhão parcial, se o falecido não tiver deixado bens particulares.

Inexistindo bens particulares, o sobrevivente seria meeiro do patrimônio comum. Existindo bens particulares, o cônjuge sobrevivente seria herdeiro destes e meeiro dos bens que integram o patrimônio comum.

Note-se que existiria aqui, também, uma incongruência na medida em que, optando pelo regime da comunhão parcial, os cônjuges voluntariamente estariam excluindo determinados bens do patrimônio comum, não havendo sentido em derrogar essa manifestação voluntária de vontade quando, como já visto acima, a lei considera que o cônjuge não é herdeiro nas hipóteses de separação obrigatória.

Voltando ao tema, embora majoritária, essa interpretação não é uníssona. A desembargadora Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sustenta que a pontuação do texto do inciso I do artigo 1.829 não deixaria margens para dúvida: se o regime é o da comunhão parcial e não existem bens particulares, isso significa que todo o patrimônio foi amealhado pelo casal, razão pela qual o cônjuge sobrevivente seria meeiro e herdeiro. Com relação aos bens particulares, o cônjuge não seria herdeiro e muito menos meeiro.

Uma observação final – Convém mencionar que o cônjuge somente poderá participar da sucessão se não estava separado judicialmente, ou se não estava separado de fato há menos de dois anos. Se a separação de fato ocorreu há mais de dois anos, o cônjuge somente será herdeiro se provar que não deu causa ao rompimento.

Conclusão – A alteração legislativa aqui comentada poderá trazer graves conseqüências no âmbito sucessório, atingindo inclusive planejamentos patrimoniais anteriormente concretizados.

Embora haja um clamor para que seja dada nova redação ao artigo 1.829 do Código Civil, não se tem qualquer garantia de que isso efetivamente venha a ocorrer, muito menos de quando ocorrerá.

Por outro lado, tratando-se de lei nova, somente daqui a alguns anos começará a ser formada jurisprudência a respeito do tema. Por mais que se tenha convicção a respeito de que esta ou aquela interpretação seja correta, haverá sempre o risco de sobrevir orientação jurisprudencial em sentido contrário.

Se a possibilidade do cônjuge sobrevivente ser herdeiro representar risco grave ao planejamento sucessório, é recomendável que seja feito um estudo, caso a caso, de eventuais alternativas que, a princípio, devem ser focadas em transferências patrimoniais em vida e em disposições testamentárias.

As alternativas para solucionar ou, ao menos, minorar os problemas decorrentes do novo regime sucessório introduzido pelo artigo 1.829, inciso I, deverão ser estudadas caso a caso.

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