Direitos fundamentais

Regras constitucionais conferem caráter social à ordem econômica

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8 de julho de 2004, 16h19

A ordem econômica de um povo ou de uma sociedade pertence ao mundo do ser. A economia não precisa de leis jurídicas para acontecer. No entanto, se o constituinte resolveu designar uma secção especial para esta matéria, é porque decidiu conferir-lhe tratamento regulatório e, diga-se mais, concedeu-lhe um “status” privilegiado porque assentado em norma constitucional.

Com efeito, como bem já anotava Pontes de Miranda: “todo programa de solução do problema social mediante leis ordinárias, ou leis de direito privado, nenhuma probabilidade pode ter êxito. Só no terreno do direito público, do direito constitucional, é que poderá apresentar-se em termos hábeis”. Ensinava ele que, escapando-se à concepção de regular a ordem econômica primeiramente em sede constitucional, todo trabalho por mais reestruturado que fosse resultaria vão, inútil e inconsistente.

Pois bem, havendo o legislador constituinte inserido o assunto nas disposições constitucionais, fez valer que os fatos econômicos por incidência entrassem no mundo jurídico. O total do mundo é composto de fatos, fatos novos. O mundo altera-se constantemente, essa mudança significa a sucessão de fatos acontecidos. Os fatos jurídicos são parte do mundo, este divide-se em fatos físicos e fatos psíquicos. Como psíquicos classificam-se os fatos do mundo do direito, posto que são obra do pensamento. Neste último ponto é que reside o problema da incidência, quando alguns fatos do mundo passam a ser, especificamente, fatos jurídicos. Ou seja, vão pertencer ao terreno do dever ser. Ainda segundo o prof. Pontes de Miranda, com quem nos socorremos abusivamente neste trabalho, essa passagem (ou coloração) acontece na queda dos fatos em contato com a norma de direito: tal como ocorre com a plancha da máquina de escrever. Incidir é cair (incidere, cadere).

De nossa parte, cuidaremos desenvolver a tese de que os direitos fundamentais (normas jurídico-constitucionais) podem, ou na verdade têm por escopo, conferir maior sociabilidade à organização econômica capitalista, esta excludente por imanência. Se conseguirmos provar o que estamos propondo, haverá de lucrar tanto a teoria dos direitos fundamentais, uma vez que poderá estender o seu próprio horizonte de projeção, como também só tem a ganhar uma certa concepção de ordem econômica que esteja pautada na dignidade humana e na justiça social, já que há de tomar por empréstimo dois valiosos aliados: o princípio da aplicação imediata dos direitos fundamentais e o da vinculação dos poderes públicos em sua defesa.

No entanto, cumpre adiantar que esta incidência dos direitos fundamentais, num patamar de resistência à maneira de ser naturalmente opressora da ordem econômica capitalista, já se nos afigura de difícil concreção. Não por conta de quaisquer entraves teóricos, mas porque, como melhor demonstrou Ingo Sarlet, os direitos fundamentais sociais são os mais difíceis de serem realizados, seja por razão de uma crescente descrença que afeta sua identidade e eficácia, seja por pressão de uma massa maior de excluídos que fazem com que os direitos fundamentais sejam encarados como verdadeiros privilégios de certos grupos. Contudo, se o leitor também costuma se iludir com este tipo de deslegitimação discursiva dos direitos fundamentais, de nossa parte só nos restará desenganá-lo: é por aí mesmo que vamos trafegar.

A bem da verdade, a relação expressa entre ordem econômico-social e direitos fundamentais tem início com a Constituição Federal de 1946, que em seu art. 146 já trazia: “a União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade. A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição”. E talvez nem fora necessário fazer menção direta a este âmbito de proteção constitucional, já que alguns de seus princípios sempre vieram relacionados com a regulação econômica. Na Constituição de 1934, art. 115: “a ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica”.

Ora, essa ‘existência digna’ a que se fez referência nada mais é do que hoje conhecemos por proteção à dignidade da pessoa humana, ou à dignidade da pessoa do trabalhador. A mesma Carta havia disposto anteriormente, no capítulo Dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu art. 113 § 34 que “a todos cabe o direito de prover à própria subsistência e à de sua família, mediante trabalho honesto. O Poder Público deve amparar, na forma da lei, os que estejam em indigência”. Até aqui, pacífico. Problema maior, porém, é quando são invocadas categorias de conteúdo incerto. Bem mais próximas de regimes totalitários do que do ideal de Estado Democrático de Direito; enumeraremos algumas: necessidades da vida nacional; vontade popular; pensamento dos interesses da Nação representados pelo Estado; e segurança interna. Não estamos dizendo que tais categorias sejam, propriamente, desinteressantes para a consecução de programas sociais, só estamos defendendo que, por se tratarem de conceitos vagos, são termos de difícil precisão, o mesmo não ocorrendo – entretanto – com o anseio de Justiça social. Esta sim dá o que falar.

Primeiramente, traçaremos breves comentários sobre a diferença entre justiça, num exato sentido, e a decantada justiça social, componente principiológico da ordem jurídico-econômica na Constituição de 1988. A primeira, na sua apreensão mais antiga, ganha um sentido comutativo, aplica-se muito bem às trocas, às operações de compra e venda, à devolução de sanções penais, pelo seu caráter eminentemente retributivo. A outra é princípio de justiça distributiva, podendo por isso ser (aparentemente) desigual, já que será sempre uma igualdade secundum quod.

Hobbes, com seu surpreendente raciocínio matemático, relacionou uma às proporções aritméticas; outra, às proporções geométricas. Atualizando o pensamento do filósofo inglês, a mesma discussão – como hoje a conhecemos – ganhou o nome de igualdade material, que poderia ser sintetizada na seguinte máxima: a cada um segundo as suas capacidades e a cada um segundo as suas necessidades. Sobre o ideal de justiça social entre os homens, Pontes de Miranda a considera de designação utópica, mas é o próprio mestre alagoano quem a rebate: “Também é utópico pensar-se que as iniqüidades sociais desaparecem com meia dúzia de medidas facilmente fraudáveis, como a limitação da taxa de juros, as leis sôbre alugueres de casa e sôbre os preços dos víveres”. Ainda: “Um país pode produzir muito, e ser faminto, e outro não ser faminto, produzindo menos do que aquêle: são os casos do povo A, que produz para trocar por objetos de luxo e construir palácios de propriedade e uso individual, e do outro, o povo B, que produz menos e consome o que produz, trocando certa parte da produção por objetos de utilidade coletiva ou geral. A distribuição, e não a produção, é que dá o índice da felicidade material”.

Muito bem, agora retornando ao problema da incidência dos direitos fundamentais, que é o objeto de nosso propósito, indaga-se como operá-los em função da transformação da ordem econômica em uma sociedade mais justa e que assegure a todos os brasileiros uma existência digna? Este é o desafio que ora abarcamos. A disposição do art. 5º, §2º permitiu aos intérpretes jurídicos uma abertura do sistema constitucional perante os direitos fundamentais, ao prescrever que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados…” .

Sendo assim, estamos positivamente autorizados a fazer as inflexões até aqui adiantadas, sem que pareçamos bobos ou nefelibatas. Dessa forma, a busca do pleno emprego, a redução das desigualdades regionais e sociais, e a defesa do meio ambiente são interpretados como direitos fundamentais tal e qual o são a propriedade privada, a livre concorrência e o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte. Poder-se-ia objetar, agora, que esses preceitos por serem colidentes entre si não se prestariam à solução dos conflitos econômicos, senão agravariam as disparidades já existentes. Por exemplo: como o intérprete-aplicador, lançando mão do mecanismo de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º §1º da CF) poderia harmonizar, no caso concreto, os princípios da preservação dos valores sociais do trabalho simultaneamente à proteção da livre iniciativa e da economia concorrencial?

Estou convencido de que esta é uma falsa questão. O intérprete que tiver de decidir qual dispositivo-parâmetro irá eleger para sustentar a validade ou invalidade de uma norma aplicada ao caso concreto, sem dúvida alguma agora muito mais complexo, porque resolvido à luz dos princípios constitucionais, terá adquirido para si ainda um outro ônus: o de justificar fundamentadamente a sua decisão. Ao fazê-lo deverá atender a duas exigências: uma de natureza finalística, tendo em vista que, se o princípio da dignidade humana não é propriamente um ‘resumo’ dos direitos fundamentais, ele certamente confere unidade teleológica aos demais; e outra de ordem sistemática, para que a fundamentação não seja obra de simples transposição tópica de apenas um dos eixos constitucionais, mas a dialética construída por esses interesses antagônicos.

Ora, largos estudos de hermenêutica jurídica têm trabalhado nesse sentido, não sendo mais admissível hoje em dia o mero apontamento de frações do texto legal, cabendo ao juiz-intérprete a tarefa de densificação conteudística do sentido da norma. Havendo essa compreensão, evidentemente o problema transfere-se de órbita. Isto é, quanto mais públicas e fundamentadas as decisões, maior sua segurança no exercício do controle social e maior seu caráter democrático porque advindas do conflito de interesses, e não apenas da tomada de um único posicionamento ideológico, dentre tantos possíveis. Pois discricionariedade, empregada em sentido técnico, não se confunde com arbitrariedade.

À guisa de finalização, podemos sintetizar as conclusões obtidas no presente ensaio, a partir dos parágrafos que seguem.

Os direitos fundamentais compõem um sistema aberto (art.5º, §2º), sendo perfeitamente possível estender seu raio de ação às demais áreas de regulação presentes na Constituição Federal; no caso, à ordem econômica. Essa afetação temática entre a tutela dos direitos fundamentais e a regulação da ordem econômica se verifica pelo fenômeno da incidência dos princípios daqueles sobre o suporte-fático desta, por razão da proximidade dos objetos jurídicos que ambos cumprem proteger. Daí decorre que a importação deste sistema peculiar a que pertencem os direitos fundamentais traz extraordinárias vantagens a uma regulação da ordem econômica que esteja pautada na concepção de dignidade humana e comprometida com a realização da justiça social, qual seja: a de se dispor livremente do mecanismo de aplicabilidade imediata da proteção aos direitos fundamentais, e demais ferramentas úteis.

A idéia de justiça social, por sua vez, não é um conceito propriamente vago e arbitrário, tais como: vontade popular; interesses gerais representados pelo Estado; segurança nacional e similares, como restou demonstrado. Justo é aquilo que é igual para todos, devendo as distinções serem justificadas perante essa mesma totalidade. Nenhum discrímen é impossível, desde que esteja solidamente fundado. Por conseguinte, ao tomar partido na escolha dos critérios pelos quais conduzirá o roteiro da decisão assecuratória dos direitos fundamentais, ameaçados pela barbarização das relações econômicas, o magistrado terá de onerar-se, também, com a imposição de fundamentar satisfatoriamente a sua decisão. Ao proceder de acordo com este método, o intérprete deixará exposto ao cidadão, em geral, e à comunidade jurídica, em particular, de onde proveio o entendimento adotado e qual o nível de sustentabilidade dos argumentos levantados. Se frágeis, estes tendem a esfarinhar-se.

Por derradeiro, diremos umas últimas palavras sobre a tentativa iniciada no presente artigo. Não acrescentaria em nada que mais um trabalho acadêmico se acomodasse em ficar levantando pretensas dificuldades teóricas irresolúveis, repisando o velho discurso de que as normas programáticas não têm nenhuma eficácia, que são uma quimera constitucional, que nunca chegarão a ser aplicadas, etc., sem que procurássemos apontar saídas para a superação do problema. Pensou-se que aproximando os direitos fundamentais à ordem econômica cons-titucional esta ganharia um caráter mais “social”, por assim dizer. Ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais teriam ampliado seu horizonte de projeção: incidindo sobre uma outra rede de relações jurídicas, as quais, pela novidade aqui intentada, tomariam um novo significado.

Bibliografia

HOBBES, Thomas. Do cidadão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LIMA JR., Edmundo Arruda e GONÇALVES, Marcus Fabiano. Fundamentação Ética e Hermenêutica – alternativas para o direito. 1. ed. Florianópolis: CESUSC, 2002.

MELO, Celso Antonio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed., 8ª tiragem, atualizada. São Paulo: Malheiros Editores. 2000.

MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n.1 de 1969. Tomos I e VI (art. 160 a 200). 2ª. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais.

PACHECO, Cláudio. Tratado das constituições brasileira. vols. X e XI. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1965.

SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na ordem constitucional brasileira. In: Em busca dos direitos perdidos: uma discussão à luz do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2003.

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