Primeira etapa

Senado aprova texto básico da reforma do Judiciário por 62 a 1

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7 de julho de 2004, 13h58

O Senado aprovou, nesta quarta-feira (7/7), o texto básico da reforma do Judiciário. A votação foi folgada, com placar de 62 votas a 1. Os destaques à Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que promove alteração na estrutura do Judiciário, serão votados em agosto, segundo informou o presidente da Casa José Sarney. Parte do texto vai à promulgação e outra volta à Câmara dos Deputados, segundo a Agência Senado.

De acordo com informações da agência Senado, Sarney elogiou o trabalho do relator da matéria, senador José Jorge (PFL-PE), louvou o trabalho do presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), senador Edison Lobão (PFL-MA), e agradeceu a todos os senadores que participaram do estudo da reforma do Judiciário e colaboraram para o aperfeiçoamento da proposta.

Uma comissão de líderes definirá o procedimento para a votação do destaques, informou, Sarney.

Principais pontos aprovados

Controle externo da Justiça

Fiscalização administrativa e financeira dos atos dos tribunais e fóruns

Situação atual – Os tribunais têm suas contas examinadas pelos tribunais de contas e atos administrativos por suas respectivas corregedorias. As decisões judiciais não são questionadas, desde que obedecidas as regras processuais.

Como ficou – O Conselho Nacional de Justiça, formado por nove juízes e cinco representantes da advocacia, do Ministério Público e da sociedade estabelecerá regras administrativas e punirá quem as descumprir.

O que muda – As regras gerenciais deverão ser uniformizadas. Acaba a autonomia dos presidentes de tribunais e diretores de fóruns que hoje administram com absoluta independência, principalmente na área de compras. Mantém-se a independência quanto às decisões judiciais. Para o cidadão, o efeito prático direto é nulo. Mas é importante pelos efeitos psicológicos que pode ter.

Súmula vinculante

Verticalização das decisões judiciais adotadas pelo STF

Situação atual – Aplica-se o efeito vinculante em alguns casos específicos, como na Ação Declaratória de Constitucionalidade.

Como ficou – O mecanismo obriga (vincula) todos juízes a seguir o entendimento adotado por, ao menos, dois terços dos ministros do Supremo Tribunal Federal, quando a matéria já foi, repetidamente apreciada.

O que muda – O mecanismo fortalece o STF e facilita a ação do governo que terá de trabalhar no convencimento de onze ministros, o que é mais fácil do que advogar perante milhares de juízes. Aumenta a segurança jurídica do cidadão, que sabe de antemão qual é o seu direito. Mas pode derivar para uma profusão de recursos em defesa da independência do juiz.

Súmula impeditiva de recursos

Bloqueio de recursos nos casos infraconstitucionais

Situação atual – O mecanismo já existe no Tribunal Superior do Trabalho, mas não é regulamentado pela Constituição.

Como ficou – O Superior Tribunal de Justiça e o TST definirão os casos em que deixarão de aceitar recursos.

O que muda – Pode reduzir o enorme volume de recursos cujos autores já sabem que não terão sucesso. Mas pode também gerar recursos contra um alegado cerceamento ao amplo direito de defesa.

Quarentena para juízes

Medida contra o tráfico de influência nos tribunais

Situação atual – Não há regras.

Como ficou – O juiz aposentado ou exonerado fica proibido de atuar, como advogado, no tribunal em que atuava, durante três anos depois do seu afastamento.

O que muda – A medida restringe a competição desleal na advocacia, ao menos em termos formais.

Extinção dos Tribunais de Alçada

Unificação da segunda instância estadual

Situação atual – Os Tribunais de Alçada existem somente em São Paulo (desde 1951), Minas Gerais e no Paraná.

Como ficou – Os juízes de alçada tornam-se desembargadores e serão incorporados aos tribunais de justiça.

O que muda – A mudança afeta pouco o cidadão, mas gera enormes problemas para o TJ-SP que terá de se reestruturar para abrigar seus novos integrantes.

Ponto de vista

Para os menos chegados no assunto, essa etapa da reforma do Judiciário chega com um gosto de frustração e uma pitada de esperança. Frustração, porque as novidades a serem promulgadas não aceleram o processo decisório do sistema judicial. Esperança, porque, agora sim, deve começar a fase das mudanças legais e administrativas, que mexem, efetivamente, com os fatores da morosidade: a farra dos recursos desnecessários e a falta de racionalidade nas regras dos tribunais.

Entender o que acontece é fundamental em um país em que quase tudo acaba no tapetão. Mas os meandros não são fáceis. A reforma deveria se resolver em três etapas: as mudanças na Constituição; a fase das leis ordinárias; e as adaptações nos regimentos e normas dos tribunais e fóruns. Como o jogo embolou na primeira fase, os senadores resolveram “fatiar” as mudanças na Constituição em três blocos. No primeiro, deixaram as propostas aprovadas na Câmara que o Senado manteve. Estas, teoricamente, poderão entrar em vigor imediatamente. O segundo lote são as alterações que deverão voltar para a Câmara. E o terceiro são as matérias nasceram no Senado e sobre as quais os deputados terão que dizer o que pensam.


Já se vê que essa novela, aos doze anos de idade, ainda é uma criança. Ou seja, vai demorar muito para ser concluída.

Adjetivos e Substantivos

Quem vê de perto, se confunde um pouco com a profusão de assuntos em discussão. Quem vê de longe, se confunde ainda mais. Afinal, como é que um país em que o Judiciário favorece mais quem lesa o direito alheio do que às vítimas, pode adiar tanto a solução do problema?

O problema desse tipo de questionamento, digamos, filosófico, é que é exatamente o excesso de adjetivos e falta de substantivos que tem atrapalhado o andamento das soluções. Misturam-se questões éticas e morais — importantíssimas, aliás — com entraves de ordem prática.

O cidadão medianamente informado e as vítimas da justiça emperrada são levados a crer que soluções como o controle externo do Judiciário e do Ministério Público, por exemplo, pode resolver a morosidade, o que não é verdade.

No mesmo capítulo entram outras tantas novidades, como a quarentena para juízes aposentados. Eles passam a ser proibidos de atuar como advogados nos tribunais de onde saíram durante três anos. Outra medida é a abertura ao público das sessões administrativas dos tribunais, que deixam de ser secretas ou, ainda, a extinção dos tribunais de alçadas, cujos juízes serão incorporados aos tribunais de justiça. Não é preciso ser jurisconsulto para concluir que não tem muita coisa aí para as principais vítimas do Judiciário: os seus usuários.

A principal estrela da fase constitucional da reforma é o chamado controle externo da Justiça e do Ministério Público. Os respectivos conselhos de fiscalização vão uniformizar os procedimentos administrativos e financeiros dos tribunais, fóruns e órgãos do Ministério Público.

Arquipélagos

Hoje, os dirigentes desses organismos têm autonomia para produzir seus editais licitatórios, contratação de serviços e atos similares. Para a compra de vassouras e sabonetes há um avanço no campo do que se chama de moralidade administrativa. No campo operacional, abre-se caminho para, por exemplo, orientar a informatização dos múltiplos sistemas. Exemplos da torre de babel, nesse campo, é o peticionamento eletrônico e o acompanhamento processual pela Internet, atualmente sem padronização. É o que o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Édson Vidigal chama de “arquipélagos forenses”.

Podem até ser boas medidas. O ruim é que, funcionalmente, a justiça continuará emperrada. O péssimo é que, ao constatar essa realidade, o cidadão se achará vítima de um engodo.

O chamado controle externo, no caso da Justiça, será feito por nove juízes e cinco representantes da advocacia, do MP e da sociedade. Só que esses cinco forasteiros, ao chegarem ao Conselho passam a ter todos os direitos e deveres da magistratura. Ou seja, tornam-se juízes.

Outro aspecto, que pode sair pela culatra é a expectativa de que os fiscais do Judiciário e do MP atuarão como caça-corruptos ou, ainda, que terão poderes para interferir em decisões judiciais ou iniciativas consideradas suspeitas, o que não acontecerá uma vez que, exceto por erros técnicos, no sentido formal, o juiz e o procurador são independentes para agir e decidir de acordo com sua consciência.

Arma da repetição

Pelo menos dois ministros do Supremo Tribunal Federal temem que novidades concebidas para enxugar os trâmites judiciais acabem gerando novas levas de recursos.

A novidade que se cerca de mais expectativa, no meio dessa discussão, é a do efeito vinculante. Esse mecanismo pretende eliminar o que os ministros Nelson Jobim e Gilmar Mendes, os dois integrantes do STF que mais têm trabalhado na reforma, consideram o grande drama do sistema, a “crise de repetição”. Ou seja: o fato de a maioria dos processos serem idênticos mas, ainda assim, tramitarem como se fossem únicos.

O efeito vinculante faria com que matérias recorrentes, uma vez suficientemente discutidas no Supremo e, desde que decididas com os votos de, pelo menos, oito ministros, passassem a ser obedecidas, compulsoriamente, por todos os juízes do país. Lavrada a súmula, ou seja, a descrição da regra, ela não poderá ser contrariada, sob pena de punição.

Isso faria com que o caso, desde que envolva matéria constitucional, não saísse da primeira instância. O exemplo mais usado para isso é o do reembolso de parcelas gatunadas do FGTS pelos planos econômicos das últimas duas décadas. Mais de 600 mil processos foram ajuizados e, ao menos teoricamente, tiveram que ser examinados individualmente em cada instância até chegar ao Superior Tribunal de Justiça.

Para as matérias infra-constitucionais, ou seja, aquelas que o direito reivindicado está em leis ordinárias, o mecanismo em criação é a Súmula Impeditiva de Recursos. Nesse caso, o STJ e o Tribunal Superior do Trabalho definiram os temas que, depois de inúmeras vezes decidido, não comportariam mais recursos. O problema de mais essa boa idéia é que ela já está prevista há tempos, mas não entrou em vigor, o que levanta a inevitável pergunta sobre sua chance de reedição.


Afinal, os mesmos juízes que se levantam para apontar o dedo para o excesso de recursos desnecessários, ou procrastinatórios, como se diz nos fóruns, são os mesmos que deixam de aplicar as penalidades previstas para os artifícios agrupados no capítulo da litigância de má-fé ou nas aventuras das lides temerárias.

Reforma paralela

A desumana incapacidade de os congressistas brasileiros apresentarem uma boa proposta de formato do Judiciário não pode ser creditada apenas aos deputados e senadores. Ainda que eles sejam, em grande parte, formados em Direito.

Contribuíram bastante, para atrapalhar, muitos juízes, advogados e integrantes do Ministério Público. Nesse passo, foram elevados à categoria de temas fundamentais a discussão sobre se o procurador deve ser chamado de promotor; se o juiz federal ou trabalhista de segunda instância devem ser chamados de desembargadores e questões de cunho corporativo equivalente.

Mas a verdade é que, assim mesmo, o debate amadureceu. E pode-se dizer que, mesmo longe de um desfecho satisfatório, o diagnóstico do emperramento já está pronto.

O que se discute no âmbito do Congresso perdeu terreno para iniciativas que os próprios tribunais adotaram mexendo tão somente em seus regimentos. A começar pelo STF. Ali, o ministro Maurício Corrêa, antes de se aposentar, introduziu nas regras da casa prazo para devolução de processos que ministros pedem para examinar melhor antes de votar (voto-vista) e que já atrasou julgamentos por mais de dez anos. Corrêa cravou prazo também para a publicação de acórdãos — as sínteses de decisões que, sem publicação no Diário Oficial, não entram em vigor, o que também levava anos para acontecer.

O efeito dessas medidas internas é de grande extensão no dia-a-dia do tribunal. Afinal, como nota um ministro do STF, nem mesmo a poderosa Súmula Vinculante pode com a burocracia: fora do Diário Oficial ela não entraria em vigor.

O fato é que o efeito psicológico da pressão nacional surte efeito. Em São Paulo, o Tribunal de Alçada Civil, em vias de extinção, resolveu concentrar em câmaras especializadas matérias afins. No mês de julho, doze grupos de três juízes cada, vão se debruçar apenas sobre processos que envolvem danos e indenizações de acidentes de trânsito — assunto que responde por enorme volume de recursos.

Também ao largo da reforma, junto com outras leis esparsas trabalha-se na extinção da fase das execuções judiciais — aquele segundo processo que um credor deve iniciar para receber o que é seu, depois que a justiça reconheceu o seu direito.

Com medidas como essa, o Brasil pode não chegar ao melhor Judiciário do Mundo. Mas se deixar de ser refúgio para aqueles que não querem cumprir suas obrigações, sem dúvida, já será um grande passo.

Cabo de força

Outro fator que ajudou a emperrar a tramitação da reforma é a disputa entre os diversos ramos do Judiciário pela ampliação ou contra a redução de sua competência. Competência, processualmente, é a quantidade de jurisdição que cada órgão do Poder Judiciário possui.

Na prática, ter mais ou menos competência significa mesmo ter mais ou menos poder, com as suas respectivas conseqüências. Assim, a Justiça do Trabalho briga para poder passar a julgar, também, questões criminais relacionadas com a matéria trabalhista (o que eles imaginam pode lhes render mais status), mas os estaduais e federais não querem perdem a competência criminal que já possuem para a Justiça do Trabalho.

A competência para crimes contra os direitos humanos passa para a Justiça Federal, mas os estaduais se consideram diminuídos com isso e vão reclamar com os parlamentares. As disputas internas do Judiciário deságuam, inevitavelmente, nos gabinetes de deputados e senadores, que são os juízes da reforma.

Como não interessa à classe política comprar uma briga direta com nenhum dos ramos da Justiça, via de regra o projeto empaca, com cada lobby puxando a corda para um lado. Nem se cogita em se verificar qual ramo do Judiciário é o mais capacitado para julgar cada tipo de demanda, pois isso pesa muito pouco na solução não só desse, mas de qualquer conflito no âmbito do Legislativo.

O que conta, mesmo, é a força política que cada parte em disputa possui. Nesse cabo de força, a única coisa certa é que a conta será paga pelo lado mais fraco: a população que não tem e continuará a não ter acesso à Justiça.

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