Estatuto da criança

Há 14 anos poderes públicos são omissos em relação ao ECA

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7 de julho de 2004, 14h58

No dia 13 de julho de 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, em cujo artigo 7º, foi instituída uma promessa generosa do legislador aos jovens brasileiros: “a criança e o adolescente tem direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso em condições dignas de existência”. No entanto, passados quatorze anos, a cidade de São Paulo registra uma média de vinte assassinatos mensais entre os jovens infratores.

A violência praticada pelos jovens pode ser medida pelas últimas estatísticas a respeito divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública paulista, correspondente ao ano de 2002. Os adolescentes são responsáveis por 2,7% do total de crimes registrados pela Polícia Civil. A participação deles é mais importante em três tipos de delito: o porte de drogas, pelos quais respondem por 18,7% do total de casos, o porte de armas (11,8%) e o tráfico de drogas (9,6%).

No Brasil, a taxa média de homicídios corresponde a 23,9 por 100.000 habitantes e em Portugal, por exemplo, a taxa é de 4,4 por 100.00. Em São Paulo, na faixa entre os 15 e 24 anos, a taxa é de 138,8 por 100.000. Como se vê, os jovens respondem por 2,7% dos crimes mas, correspondem a cinco vezes a taxa média de vítimas de assassinato em nossa cidade.

É bem possível que até em países longínquos, o ECA seja estudado com admiração, servindo de exemplo de legislação avançada, progressista e racional. No entanto, por aqui, o que se vê é o massacre diário da população jovem pela falta de políticas públicas que promovam a inserção efetiva deste contingente. Na Lei e, no Orçamento, o poder público fica muito bem mas, na prática, os programas previstos são liquidados pela inexecução ou execução parcial. Os maiores gastos se dão com políticas compensatórias em que se paga um quarto de um salário mínimo para que a pessoa continue mais ou menos viva e a chafurdar na miséria. Tudo isto, praticado diante de uma carta política em cujo artigo 227 se estipulou prioridade absoluta para o acolhimento à criança e ao adolescente.

A articulação entre os níveis de governo engata-se ao contrário, na medida em que a União contingência as verbas, o município não cumpre as metas anunciadas, o Estado mantem os malignos esforços da instituição do tipo Febem. Esta última é um caso que merece menção à parte, já que comemora o aniversário do ECA enfrentando mais uma greve de seus funcionários. Parece incrível mas, segundo divulgado nos jornais, uma das reivindicações é o pagamento de salário atrasado referente a horas extras prestadas e não remuneradas.

Este é um detalhe extremamente significativo: uma entidade com uma missão tão delicada, às voltas com o atraso no pagamento do salário dos empregados. A política da Febem avulta aos olhos da sociedade civil como um dos pilares de sua incapacidade de desempenhar o papel que lhe cabe: uso excessivo de mão de obra terceirizada, 1.157 cargos de confiança, imputação de funções de chefia e de diretoria a terceiros de livre nomeação e estranhos à carreira na empresa, ausência de uma progressão funcional ligada à educação continuada, falta de um projeto pedagógico unificado e discutido com a sociedade civil. Então, acaba por ser uma rede de prisões para jovens, extremamente eficaz para realimentar o ódio daqueles que para lá são recolhidos.

Como se vê, a expressão “a lei é para ser cumprida” somente é alardeada e concretizada pelos nossos governantes quando os sem-teto invadem algum imóvel abandonado. Na falta de políticas públicas que dêem efetivo cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o resultado é uma juventude que, em grande parte é seduzida pelo narcotráfico, cooptada pelas grandes empresas do crime, e sobrevivendo a meio caminho entre os pequenos biscates e as empreitadas criminosas autônomas (as “fitas”). Entrar neste ramo de atividade exige pouco investimento, já que para praticar um seqüestro basta alugar um revólver, material amplamente disponível no sub-mundo. A conseqüência é que, segundo a Polícia Civil, 75% dos praticantes de seqüestro tem entre 15 e 30 anos.

O perfil do homem jovem, pobre, negro ou pardo, corresponde à maioria do criminoso brasileiro e à maioria das vítimas de homicídio doloso. Obviamente, o descumprimento do ECA está conduzindo à criminalização da juventude pobre e, no cenário atual, não se vê luz no fim do túnel, uma vez que não há uma política pública intersetorializada endereçada ao ataque deste problema. Nesta seara, estivemos sempre a cultivar, apenas, o ódio e a vingança, e estamos colhendo todas as flores da desgraça que a omissão dos poderes públicos ficou a semear por anos a fio. Reverter este destino perverso exige a construção de um olhar crítico da opinião pública e a permanente cobrança quanto ao cumprimento da lei.

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