Trabalho descentralizado

Terceirização não pode ser usada para burlar direitos trabalhistas

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6 de julho de 2004, 13h06

As fábricas, seguindo o modelo toyotista, se pulverizaram. A produção não mais se faz, integralmente, em um mesmo local, ganhando relevo a terceirização da produção, assim como a atividade de prestação de serviços. A terceirização apresenta-se, assim, como uma técnica administrativa, que provoca o enxugamento da grande empresa, transferindo parte de seus serviços para outras empresas.

Argumenta-se que a terceirização permite à empresa preocupar-se mais intensamente com as atividades que se constituem o objetivo central de seu empreendimento.

Esta técnica transformou-se em uma realidade incontestável por todo o mundo do trabalho, desafiando os estudiosos do direito do trabalho a encontrarem uma fórmula jurídica para sua regulação.

Para conferir um padrão jurídico ao fenômeno da descentralização do trabalho, o Eg. TST editou o Enunciado 331, pelo qual se passou a considerar lícita a terceirização, com a limitação de que esta não atinja a atividade-fim da empresa, preservando, ainda, uma responsabilidade “subsidiária” da empresa tomadora dos serviços.

Dentro do modelo jurídico brasileiro atual, ditado pelo Enunciado 331 do TST, portanto, uma empresa pode oferecer mão-de-obra a outra empresa, para executar serviços no âmbito da primeira, desde que estes serviços não se vinculem à atividade-fim da empresa que contrata a empresa que lhe fornece a mão-de-obra e desde que não haja subordinação direta dos trabalhadores à empresa tomadora. Além disso, no caso de não pagamento dos créditos trabalhistas desses trabalhadores, por parte da empresa prestadora, a tomadora será considerada responsável, subsidiariamente, na obrigação de adimplir tais créditos.

O critério jurídico adotado, no entanto, não foi feliz.

Primeiro porque, para diferenciar a terceirização lícita da ilícita, partiu-se de um pressuposto muitas vezes não demonstrável, qual seja, a diferença entre atividade-fim e atividade-meio. É plenamente inseguro tentar definir o que vem a ser uma e outra. O serviço de limpeza, por exemplo, normalmente apontado como atividade-meio, em se tratando de um hospital, seria realmente uma atividade-meio?

Mas, o mais grave é que a definição jurídica, estabelecida no Enunciado 331, do TST, afastou-se da própria realidade produtiva. Em outras palavras, o Enunciado 331, do TST, sob o pretexto de regular o fenômeno da terceirização, acabou legalizando a mera intermediação de mão-de-obra, que era considerada ilícita, no Brasil, conforme orientação que se continha no Enunciado n. 256, do TST.

A terceirização trata-se, como visto, de técnica administrativa, para possibilitar a especialização dos serviços empresarias. No entanto, o Enunciado 331, do TST, não vincula a legalidade da terceirização a qualquer especialização. Isto tem permitido, concretamente, que empresas de mera prestação de serviços sejam constituídas; empresas estas sem qualquer finalidade empresarial específica e, pior, sem idoneidade econômica.

O padrão jurídico criado desvinculou-se da função histórica do direito do trabalho, que é o da proteção do trabalhador. A perspectiva do Enunciado foi apenas a do empreendimento empresarial. Isto permitiu que a terceirização, que em tese se apresentava como método de eficiência da produção, passasse a ser utilizada como técnica de precarização das condições de trabalho .

Aliás, a idéia de precarização é da própria lógica da terceirização, pois, como explica Márcio Túlio Viana, as empresas prestadoras de serviço, para garantirem sua condição, porque não têm condições de automatizar sua produção, acabam sendo forçadas a precarizar as relações de trabalho, para que, com a diminuição do custo-da-obra, ofereçam seus serviços a um preço mais accessível, ganhando, assim, a concorrência perante outras empresas prestadoras de serviço .

Vários são os exemplos desta precarização. As experiências de formação das empresas de prestação de serviços, no Brasil, demonstram que aquela pessoa que antes se identificava como o “gato”, aquele que angariava trabalhadores para outras empresas (tática que inviabilizava o adimplemento dos créditos trabalhistas, pela dificuldade de identificação do real empregador, reforçado pela ausência de idoneidade econômica do “gato”), foi, como um passe de mágica, transformado em “empresário”, titular de empresas de prestação de serviços. Legalizou-se a prática, mas não se alterou o seu efeito principal: o desmantelamento da ordem jurídica protetiva do trabalhador.

Em concreto, a terceirização, esta “técnica moderna de produção”, nos termos em que foi regulada pelo En. 331, do TST, significou uma espécie de “legalização” da redução dos salários e da piora das condições de trabalho dos empregados.

Os trabalhadores deixam de ser considerados empregados das empresas onde há a efetiva execução dos serviços e passam a ser tratados como empregados da empresa que fornece a mão-de- obra, com óbvia redução dos salários que lhes eram pagos, com nova redução cada vez que se altera a empresa prestadora dos serviços, sem que haja, concretamente, solução de continuidade dos serviços executados pelos trabalhadores.


O feixe de fornecimento de mão-de-obra entre empresas, aliás, parece não ter fim: o fenômeno da terceirização já se transformou em quarteirização e algumas vozes já começam a sustentar a necessidade de se extrair o limite fixado no En. 331, para fins de permitir o oferecimento de mão-de-obra em todo tipo de atividade.

Sob o prisma da realidade judiciária, percebe-se, facilmente, o quanto a terceirização tem contribuído para dificultar, na prática, a identificação do real empregador daquele que procura a Justiça para resgatar um pouco da dignidade perdida ao perceber que prestou serviços e não sabe sequer de quem cobrar seus direitos. A Justiça do Trabalho que tradicionalmente já se podia identificar como a Justiça do ex- empregado, dada a razoável incidência desta situação, passou a ser a Justiça do “ex-empregado de alguém, só não se sabe quem”.

Aliás, este alguém, em geral, depois de algum tempo de atuação na realidade social, e quando seus contratos de prestação de serviços não mais se renovam, começa a não mais comparecer às audiências e vai para LINS (lugar incerto e não sabido), provocando, em geral, adiamento das audiências, para que se tente a sua localização e não raras vezes a tentativa acaba se revertendo em citação por edital. Custo e demora processual, 10, efetividade, 0.

Quando tudo dá certo, ou seja, a empresa prestadora comparece, junto com a empresa tomadora (isto quando não se acumulam pretensões em face de mais de uma tomadora, que teriam se utilizado de forma subseqüente dos trabalhos do reclamante, em face de contrato com a mesma empresa prestadora, instaurando-se um verdadeiro tumulto processual) e o juiz consegue ultrapassar as mil e uma preliminares de mérito apresentadas pelas empresas tomadoras, que assumem a postura do “num tô nem aí”, preliminares estas que se repetem nas defesas das empresas prestadoras, profere-se decisão condenatória, com declaração da responsabilidade “subsidiária” da empresa tomadora. Na fase de execução, que é a mais complexa, para fins de real efetivação dos direitos declarados judicialmente, inicia-se com a tentativa de executar bens da empresa prestadora (o que pode levar tempo razoável), para somente no caso de não ser esta eficaz buscarem-se bens da empresa tomadora, com nova citação etc.

Não bastassem essas dificuldades jurídicas e econômicas, o fenômeno da terceirização tem servido para alijar o trabalhador ainda mais dos meios de produção. Sua integração social, que antes se imaginava pelo exercício de trabalho, hoje é impensável. O trabalhador terceirizado não se insere no contexto da empresa tomadora; é sempre deixado meio de lado, até para que não se diga que houve subordinação direta entre a tomadora dos serviços e o trabalhador.

Há, ainda, outro efeito pouco avaliado, mas intensamente perverso que é o da irresponsabilidade concreta quanto à proteção do meio-ambiente de trabalho. Os trabalhadores terceirizados, não se integrando a CIPAs e não tendo representação sindical no ambiente de trabalho, subordinam-se a trabalhar nas condições que lhe são apresentadas, sem qualquer possibilidade de rejeição institucional. O meio- ambiente do trabalho, desse modo, é relegado a segundo plano, gerando aumento sensível de doenças profissionais.

Essa foi a realidade criada, ou pelo menos incentivada, pelo Enunciado 331 do TST, razão pela qual torna-se urgente repensá-lo.

Para tanto, a de se enfrentar o desafio proposto pela seguinte indagação: há no ordenamento jurídico uma fórmula que possa ao mesmo tempo proteger os trabalhadores, sem negar a realidade do fenômeno da terceirização?

Parece-me que sim. Aliás, para se chegar a esta resposta não é preciso sequer muita criatividade. Em verdade, o Enunciado 331, do TST, ao dar guarida à reivindicação da economia, no que tange à necessidade da implementação da terceirização, fez letra morta do artigo 2o. da CLT, segundo o qual foi consagrado que se considera empregador a “empresa” que assume os riscos da atividade econômica . Ora, quem se insere no contexto produtivo de outrem, com a mera prestação de serviços, seja de forma pessoal, seja na forma de uma empresa de prestação de serviços, não assume qualquer risco econômico atinente à produção, daí porque, segundo a definição legal, não pode ser considerado empregador.

A vinculação da figura do empregador ao risco da atividade econômica tem sentido porque é este que, gerindo a produção, possui os bens corpóreos e incorpóreos necessários à consecução dos fins empresariais. Estes bens, por sua vez, ao mesmo tempo, possibilitam a satisfação do fim empresarial e constituem-se como os garantes naturais do passivo trabalhista que é gerado.

Uma terceirização, ou seja, a transferência de atividade que é indispensável à realização empresarial, de forma permanente – seja ela considerada meio ou fim, pouco importa, – não pode, simplesmente, se transferir a terceiro, sem que se aplique a tal negócio jurídico a regra de definição do empregador fincada no artigo 2o., da CLT, isto é, a consideração de que aquele que se utiliza de trabalhador subordinado e que assume os riscos da atividade econômica é o real empregador, sendo este, no caso, evidentemente, a empresa tomadora dos serviços.


Neste sentido, a seguinte ementa:

“Terceirização Atividade indispensável. Salvo situações expressamente previstas na Lei nº 6.019, o instituto da terceirização não pode alcançar atividade indispensável ao empreendimento econômico, porque desvirtua a aplicação da lei trabalhista (art. 9º). Nesta situação a relação de emprego forma-se com o tomador dos serviços” (TRT 3ª R 1ª T RO nº164/96 Rel. Cunha Avellar DJMG 19.07.96 pág. 16).

Ainda que a transferência da atividade se faça em estabelecimentos distintos de pessoas jurídicas diversas, a situação pouco se altera, pois a identificação da efetivação de uma produção organizada em cadeia, mesmo sem a formação de uma empresa controladora, gera a configuração do grupo de empresas, com responsabilidade solidária entre as empresas pelos créditos trabalhistas.

Assim, a terceirização só se concretiza, validamente, no sentido de manter a relação de emprego entre os trabalhadores e a empresa prestadora, quando a prestadora de serviços possua uma atividade empresarial própria, assumindo o risco econômico, que é próprio da atividade empresarial, e a sua contratação se destine à realização de serviços especializados, isto é, serviços que não sejam indispensáveis ou permanentes no desenvolvimento da atividade produtiva da empresa contratante (tomadora), configurando-se, por isso, uma situação excepcional e com duração determinada dentro do contexto empresarial da empresa tomadora.

Além dessa situação, a terceirização continuaria sendo possível nas hipóteses legalmente previstas do trabalho temporário (Lei n. 6.019/74) e serviços de vigilância (Lei n. 7.102/83), respeitados os limites ali fixados.

Aliás, nos países europeus, as intermediações de mão-de-obra são restritas as hipóteses do trabalho temporário . Na França, por exemplo, a intermediação de mão-de-obra, com fim de lucro da empresa prestadora, é considerada como tráfico de mão-de-obra, nos termos das definições dos artigos 125-1 e 125-3, do Code du Travail .

Na Espanha, segundo informa Roberto Vieira de Almeida Rezende, “a jurisprudência acolhe como autêntica a subcontratação de trabalhadores quando verifica que, além de deter o poder de comando e gerenciamento diretos do trabalho, a empresa subcontratada tem atividade empresarial própria, com patrimônio e instrumental suficiente e compatível para consecução de seus fins”.

E, prossegue, o mesmo autor: “Para o Direito Espanhol, a subcontratação de trabalhadores é considerada lícita, mas, normalmente, virá acompanhada da responsabilidade solidária da empresa principal quanto às obrigações da subcontratada com seus trabalhadores e com a Seguridade Social. O art. 42 do Estatuto dos Trabalhadores estabelece que os empresários que contratem ou subcontratem com outros a realização de obras ou serviços correspondentes à própria atividade daqueles deverão comprovar que ditos contratados estejam com o pagamento das cotas de Seguridade Social em dia.”

Ainda, que não se queira aplicar a regra trabalhista que impede a transferência do vínculo jurídico da empresa produtiva (tomadora) para a empresa agenciadora (prestadora), não se pode negar a vocação do direito do trabalho, extraindo de suas normas e princípios uma resposta humanista à prática da terceirização, como forma de reservá-la para as situações concretas em que ela se justifica como forma de maximização da produção e não como mera técnica de redução dos custos do trabalho.

A implementação desta “técnica administrativa” não pode, em hipótese alguma, representar a impossibilidade dos trabalhadores adquirirem e receberem integralmente os seus direitos trabalhistas pelos serviços que prestem.

Como conseqüência, ainda que se permita a terceirização, considerando que o trabalhador seja empregado da empresa prestadora e não da empresa tomadora, há se fixar alguns parâmetros jurídicos, chamados de limites civilizatórios por Gabriela Neves Delgado, para impedir que a terceirização aniquile toda a história de conquistas da classe trabalhadora.

O primeiro efeito jurídico a ser fixado é o de que se devem respeitar os mesmos direitos para os trabalhadores da empresa tomadora e os da empresa prestadora, nos termos das seguintes ementas:

“A evolução que admite a terceirização não pode, validamente, implicar em desigualdade social, ou em acirrar a sociedade injusta para atrair a prevalência de menor custo em detrimento do trabalhador com aumento de lucratividade do empreendimento. Os objetivos da terceirização não se lastreiam em lucro maior ou menor. Utilizá-la para pagar salários menores que os observados pela tomadora quanto aos seus empregados que exercem a mesma atividade é ilegítimo, constituindo-se em prática voltada à distorção dos preceitos protetivos da legislação trabalhista. Dentre as suas vantagens não se inclui a diversidade salarial ou de direitos individuais do empregado e independente da pessoa que seja seu empregador. O empregado de terceirizante, que desenvolve seu trabalho em atividade terceirizada, tem os mesmos direitos individuais e salários dos empregados da tomadora dos serviços exercentes da mesma função.” (TRT – 3ª R – 2ª T – RO nº 16763/95 – Rel. Ricardo A. Mohallem – DJMG 29.03.96 – pág. 40)


“A analogia legis implica no reconhecimento de que a questão sub judice, apesar de não se enquadrar no dispositivo legal, deve cair sob sua égide por semelhança de razão (ubi eadem legis ratio, ibi eadem dispositio). Se os trabalhadores temporários, por força do artigo 12, a, da Lei nº 6.019/74, fazem jus a remuneração equivalente à paga aos empregados da mesma categoria profissional da empresa tomadora de seus serviços, com muito maior razão os trabalhadores contratados de forma permanente por empresa interposta para a prestação de serviços essenciais à empresa cliente terão direito a todas as vantagens asseguradas à categoria dos empregados da mesma. A terceirização de mão-de-obra, mesmo quando lícita, não pode servir de instrumento de redução dos custos de mão- de-obra se isto implicar em violação do princípio constitucional da isonomia”. (TRT – 3ª R – 3ª T – RO nº 08157/94 – Rel. Freire Pimenta – DJMG 29.08.95 – pág. 56)

Além disso, se é verdade que o pressuposto técnico da idéia de “terceirização” é a especialização dos serviços, em nome da qualidade, para atendimento desta característica de tal modelo produtivo é essencial que a empresa prestadora tenha uma atividade empresarial própria, sendo, portanto, especializada no serviço a que se propõe prestar. Isto, sob o prisma do direito do trabalho, não pode resultar em redução do ganho do trabalhador ou eliminação de responsabilidades das empresas pelo adimplemento dos direitos trabalhistas.

Assim, quando não se puder vislumbrar, juridicamente, a formação de um grupo econômico entre as diversas empresas que se utilizam dos serviços de um mesmo trabalhador, há de se identificar o fenômeno da terceirização jurídica. A formação de uma cadeia produtiva, que se faz horizontalmente, implica, necessariamente, a construção, na mesma proporção, de uma teia jurídica que possibilite a fixação de uma responsabilidade entre todos aqueles que se aproveitam, conjuntamente, do trabalho exercido pelo trabalhador, seja pelo instituto do grupo econômico (art. 2o., parágrafo 2o., da CLT), seja pela “terceirização”.

A responsabilidade imaginada, seja na terceirização interna, quanto na externa, deve ser sempre solidária.

Previsão no sentido pode ser encontrada no artigo 249, da Lei de Contrato de Trabalho da Argentina: “La responsabilidad solidaria consagrada por este artículo, será también de aplicación cuando el cambio de empreador fuese motivado por la transferencia de un contrato de locación de obra, de explotación u otro análogo, cualquiera sea la naturaleza y el caráter de los mismos”.

Vale lembrar que há solidariedade quando existe pluralidade de credores ou de devedores. No caso de pluralidade de devedores, a solidariedade, denominada passiva, ocorrerá quando cada um dos devedores for responsável pelo pagamento de toda a dívida.

Nos termos do art. 896, do Código Civil (artigo 265, do novo Código Civil), a solidariedade não se presume e resulta da lei ou da vontade das partes. No entanto, no que se refere à solidariedade passiva, que nos interessa mais de perto, tem ganhado força entre os doutrinadores a noção que admite a presunção da solidariedade, para satisfação mais eficiente da obrigação, como se dá em outros países , muito embora tal noção ainda não tenha sido incorporada pelo nosso ordenamento.

O En. 331, do Eg. TST, alude a uma responsabilidade subsidiária. O termo, “data venia”, é infeliz.

Quando há pluralidade de devedores e o credor pode exigir de todos a totalidade da dívida, se está diante da hipótese de solidariedade, instituto jurídico que traduz tal situação.

Quando a sentença reconhece a responsabilidade do tomador dos serviços, a sua responsabilidade, perante a Justiça do Trabalho, é por toda a dívida declarada e não por parte dela. Há, portanto, uma hipótese de solidariedade, indiscutivelmente, pois o credor (reclamante) pode exigir de ambos (prestador e tomador) a totalidade da dívida.

O que poderia haver, na relação entre tomador e prestador, como ocorre no caso da fiança, seria o exercício daquilo que se denomina, benefício de ordem (art. 1491, CC), pelo qual o fiador tem direito a requerer que primeiro se executem os bens do devedor principal. Mas, o benefício de ordem depende de iniciativa do fiador – parte no processo – e deve ser requerido, nos moldes do art. 1491, do Código Civil, conforme lembra Caio Mário da Silva Pereira: “Demandado, tem o fiador o benefício de ordem, em virtude do qual lhe cabe exigir, até a contestação da lide, que seja primeiramente executado o devedor, e, para que se efetive, deverá ele nomear bens a este pertencentes, sitos no mesmo município, livres e desembargados, suficientes para suportar a solução do débito (Código Civil, art. 1491).”

Mesmo assim, essa hipótese não se configura no caso da terceirização, pois não há previsão legal expressa neste sentido e uma vez declarada a solidariedade o benefício de ordem se exclui, como regra. Ensina Caio Mário: “é da essência da solidariedade que o devedor possa ser demandado pela totalidade da dívida (totum et totaliter) e sem benefício de ordem”.


Assim, por imperativo jurídico, a responsabilidade do tomador dos serviços trata-se de uma responsabilidade solidária, sem benefício de ordem. Solidariedade esta que não seria presumida, mas declarada judicialmente, com base no postulado jurídico da culpa “in eligendo”.

Aliás, mesmo o elemento culpa pode ser abandonado, atraindo- se a noção de culpa objetiva decorrente de responsabilidade civil, nos termos do artigo 927 do novo Código Civil e seu parágrafo único, que passaram a considerar o ato que antes é ato meramente culposo (vide o artigo 186, do novo Código) como ato ilícito.

E, para aqueles mais renitentes, que se apegam a um formalismo jurídico, extraído do teor do art. 896, do Código Civil, formalismo este que em concreto não existe, vale lembrar o disposto no artigo 455, da CLT, que pode ser aplicado analogicamente ao presente caso.

Dispõe tal artigo: “Nos contratos de subempreiteira responderá o subempreiteiro pelas obrigações derivadas do contrato de trabalho que celebrar, cabendo, todavia, aos empregados, o direito de reclamação contra o empreiteiro principal pelo inadimplemento daquelas obrigações por parte do primeiro.

Parágrafo único. Ao empreiteiro principal fica ressalvada, nos termos da lei civil, ação regressiva contra o subempreiteiro e a retenção de importâncias a este devidas, para a garantia das obrigações previstas neste artigo.”

Vê-se, portanto, que a lei trabalhista fixou a solidariedade nas relações de terceirização, na medida em que conferiu ao trabalhador o direito de ação em face do tomador dos serviços – empreiteiro – e sem benefício de ordem, pois o que se garantiu a este foi a ação regressiva contra o prestador – subempreiteiro. Neste sentido, a seguinte Ementa: “Destituída a intermediadora de mão-de-obra de idoneidade econômica e financeira, tem-se a empresa tomadora do serviço como responsável solidária pelos ônus do contrato de trabalho, pelo princípio da culpa in eligendo, o mesmo que informa e fundamenta a regra do art. 455, do estatuto obreiro”. (TRT – 8ª R – Ac. nº 4947/95 – Rel. Juiz Itair Sá da Silva – DJPA 23.01.96 – pág. 05)

Aliás, a solidariedade entre tomador e prestador de serviços está expressamente prevista em outros dispositivos legais, a saber: art. 15, parágrafo 1o. da Lei n. 8.036/90 e art. 2o., I, do Decreto n. 99.684/90, sobre FGTS; e Ordem de Serviço n. 87/83, sobre contribuições previdenciárias.

Frise-se ainda que eventual cláusula do contrato firmado entre as empresas, que negue qualquer tipo de solidariedade, é nula de pleno direito, pois sua aplicabilidade pode impedir o adimplemento de obrigações trabalhistas (art. 9o., da CLT).

Neste sentido, aliás, merece destaque o disposto no artigo 187, do novo Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Ora, realizar negócios jurídicos cujo propósito é afastar-se de responsabilidade pelo adimplemento de direitos de terceiros, evidentemente, não pode ser considerado como ato lícito, nos termos da atual visão social do próprio direito civil.

Neste aspecto da responsabilidade civil por ato ilícito, merece relevo o artigo 934 do novo Código Civil, que estabelece o direito de ressarcimento para aquele que indenizar o dano provocado por ato de outrem, conduzindo à idéia de que não há benefício de ordem possível no que tange à busca de indenização quando na prática do ato ilícito concorrerem mais de uma pessoa. Esta conclusão, aliás, é inevitável quando se verifica o teor do artigo 924, que assim dispõe:

“Art. 924. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932.”

Essas regras, obviamente, possuem pertinência total no fenômeno da terceirização. Assim, uma empresa que contrata uma outra para lhe prestar serviços, pondo trabalhadores à sua disposição, ainda que o faça dentro de um pretenso direito, terá responsabilidade solidária pelos danos causados aos trabalhadores pelo risco a que expôs os direitos destes, tratando-se, pois, de uma responsabilidade objetiva (parágrafo único do art. 927).

Não há incidência possível nesta situação da regra de que “a solidariedade não se presume, resultando de lei ou da vontade das partes” (art. 896, antigo CC; art. 265, atual Código), porque a solidariedade em questão é fixada por declaração judicial de uma responsabilidade civil, decorrente da prática de ato ilícito, no seu conceito social atual. Aliás, neste sentido, a regra do artigo 265 não parece nem mesmo ser afastada, vez que a solidariedade declarada, com tais parâmetros, decorre, agora, da própria lei (art. 924 e seu parágrafo).

Lembre-se, ademais, que já na Declaração dos Objetivos da Organização Internacional do Trabalho, de 1944, foi firmado o princípio, até hoje não superado no contexto jurídico internacional, de que o trabalho não é mercadoria.

Tal sentido pode ser encontrado, também, na Declaração da OIT, relativa aos princípios fundamentais do trabalho, ao dispor que “a justiça social é essencial para assegurar uma paz universal e durável” e que “o crescimento econômico é essencial mas não é suficiente para assegurar a eqüidade, o progresso social e a erradicação da pobreza, e que isto confirma a necessidade para a OIT de promover políticas sociais sólidas, a justiça e instituições democráticas”.

Esses preceitos, aliás, foram o fundamento para que a OIT, em 1949, adotasse a Convenção n. 96, estabelecendo que as agências de colocação de mão-de-obra, com finalidade lucrativa, deveriam ser suprimidas da realidade social dos países membros de forma progressiva e definitiva

Mas, como esclarece Bruno Siau: “Une pays, le Brésil, n’est plus signataire de la convention n. 96 mais l’a été de 1957 à 1972. Les raisons de la dénonciation de cette convention par le Brésil ne sont pas une surprise: ce pays n’a pas réussi à tenir la date limite de suppression des bureaux de placement payants à but lucratif…”

O fato concreto é que, não se reservando um tratamento jurídico à terceirização, que preserve a função primordial do direito do trabalho de proteção da dignidade do trabalhador, ao mesmo tempo em que lhe garanta a possibilidade da melhoria de sua condição social, esta, a terceirização, continuará sendo utilizada como mera técnica para fraudar direitos trabalhistas – e, muitas vezes, para desviar obrigações administrativas, quando formuladas no setor público.

O manuseio dos fundamentos, princípios e normas do Direito do Trabalho, sob uma perspectiva humanista, permite que se mantenha a vocação protetiva deste ramo do direito mesmo diante de novos e cada vez mais criativos modelos de produção que se criam para atender apenas aos reclamos da economia, dos empresários e de todos nós, vorazes consumidores.

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