Tiranias e tribunais

Julgamento de Saddam pode reverter quadro de intolerância e ódios

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5 de julho de 2004, 20h54

Eram 10 condenados à forca: um conseguiu suicidar-se horas antes da execução, outro fez a saudação hitlerista, dois deles desejaram paz ao mundo, o marechal declarou que morria como soldado, o sanguinário umedeceu os lábios antes de vestir o capuz, outro tropeçou quando subia os degraus do patíbulo. Os restantes submeteram-se ao castigo.

Pouco mais de um ano depois do fim da 2ª Guerra Mundial, o “Julgamento do Século” em Nurenberg, puniu alguns dos culpados pelos 55 milhões de mortos, mas sua missão verdadeira era revelar à humanidade a desumanidade que o nazifascismo perpetrou na Europa.

O Tribunal Militar Internacional, presidido pelos vitoriosos (EUA, França, Inglaterra e URSS) fez ainda mais: criou os conceitos e paradigmas das ações multilaterais para a recém-nascida Organização das Nações Unidas.

Mencionado com insistência em quase todos os processos, o burocrata do genocídio Adolf Eichmann só foi enforcado treze anos depois em Jerusalém. Sua espetacular captura na Argentina pelos agentes secretos israelenses e o julgamento televisionado (o primeiro da história) mostraram em toda a extensão algo apenas esboçado em Nurenberg – o extermínio massivo e metódico de civis inocentes pela simples razão de serem diferentes.

A filósofa Hanna Arendt que acompanhou o julgamento insurgiu-se contra o que considerava “banalização do mal”. Mas o mal para ser erradicado precisa ser exposto, encarado e esmiuçado.

Juízo, justiça, direito (jus) fazem parte de uma das árvores etimológicas mais ricas na cultura ocidental. Julgamento é o momento supremo na busca da verdade, processo que não se esgota com o veredicto sobre o acusado. É o encontro entre uma sociedade e os códigos que a regem. Ato político e, sendo público, essencial para a formação de uma consciência democrática.

Por mais falaciosas que tenham sido as razões para invadir o Iraque e, por mais precária que seja a manutenção da tranqüilidade no território ocupado, é preciso não esquecer nem minimizar os crimes cometidos pelo tirano Saddam Hussein dentro e fora do seu país. Bush e Blair escolheram as armas de destruição em massa como casus belli — motivo da guerra — porque o Iraque não era exceção num quadro regional marcado pela opressão e desrespeito aos direitos humanos.

A maneira raivosa com que Saddam se referiu aos kuwaitianos na primeira sessão do seu julgamento na quinta-feira em Bagdá, é o contraponto real, concreto, à farsesca dignidade que pretendeu exibir. Patético ver o tirano contestar a legitimidade da corte. Mas as respostas que deu ao juiz nos remetem diretamente à guerra de 1990, legitimada pela ONU e apoiada por diversos países árabes, para libertar o Kuwait.

O empenho de Saddam para parecer um estadista altivo e presidente legítimo do seu país faz parte de um show demagógico do qual o ingrediente anti-Bush será a peça principal. O astuto Saddam está sendo visto nos cinco continentes, mas está interessado primordialmente nos iraquianos, depois no mundo islâmico e, finalmente, nas legiões de desgraçados e insatisfeitos que clamam por um bode-expiatório.

Assim como sabia que perderia a guerra mas poderia causar com a sua derrota um estrago no prestígio americano maior do que o causado pelos vietnamitas, agora, certo de que será condenado, pretende tirar todo o partido da imensa exposição que lhe oferecem.

A altivez faz parte desta estratégia, digamos marqueteira. Também a aparência da vítima alquebrada pelo sofrimento. Recursos legítimos, usados em tribunais por advogados e réus para comover jurados e magistrados, no entanto, não podem disfarçar os horrores que cometeu.

Qualquer que seja a sentença, este julgamento inicia o processo de democratização do Iraque e do mundo árabe. O espetáculo da administração da justiça será mais útil e mais edificante do que a simples extinção da justiça sumária. Dar voz ao acusado, deverá deslanchar o irrefreável processo de reconhecer os direitos de todos. O respeito ao contraditório não serve apenas para animar o debate serve, sobretudo, para confrontar o preconceito e o fanatismo.

Assim como os 22 altos dirigentes nazistas em Nurenberg e o verdugo calculista em Jerusalém, o julgamento de Saddam Hussein em Bagdá pode reverter drasticamente o quadro de intolerância e ódios que envolve a região. Indispensável que seja conduzido corretamente, imperioso que seja justo.

*Artigo publicado no portal iG — Último Segundo

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