Cláusula inválida

Juiz manda Interclínicas pagar transplante de medula a segurado

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3 de julho de 2004, 9h26

O juiz Nuncio Theophilo Neto, da 29ª Vara Cível de São Paulo, mandou a Interclínicas pagar todas as despesas do transplante de medula óssea de seu segurado Daniel Lafer. A empresa terá de pagar multa diária de R$ 2 mil em caso de descumprimento da determinação. Ainda cabe recurso.

O magistrado declarou inválida a cláusula contratual do plano de saúde que desobrigava a seguradora a pagar qualquer tipo de transplante, com exceção dos transplantes de córnea e rim.

Daniel Lafer aderiu ao plano da Interclínicas por intermédio da Associação Paulista dos Magistrados. Descobriu ser portador de mieloma múltiplo e teria necessidade de se submeter a transplante da medula óssea.

O segurado recorreu à Justiça em 2003, depois que teve negado, por duas vezes, seu pedido de autorização para a cirurgia. A Interclínicas contestou a ação com, entre outros argumentos, o de que as condições do contrato eram claras no sentido da exclusão de transplantes.

Ao acolher parcialmente a ação do segurado — o juiz negou o pedido de indenização por danos morais contra a empresa –, Nuncio Theophilo afirmou que “convalidar exclusões recomendadas pelos interesses daqueles que ingressaram na brecha da secular negligência do estado, criando mercado e ‘produtos’ (assim são denominados os planos oferecidos pelas ‘operadoras’ de assistência médica ou de seguros-saúde) e para quem o objetivo é angariar o maior numero possível de ‘vidas’ (é assim que o “mercado” denomina os indivíduos que aderem a um plano de saúde ou seguro-saúde) é, no mínimo, permitir que eles agravem o que lastimavelmente se observa nesta terra: a desigualdade”.

Para o juiz, “a verdade é que se adere a um plano de saúde visando a obtenção de assistência à saúde negligenciada pelo estado e fora do sistema gerido por ele; busca-se uma alternativa custeada pelo esforço individual (não bastasse o pagamento dos tributos), exatamente para que em caso de doença não se tenha de buscar socorro num sistema que é, no mínimo, ineficiente, e que submete diariamente milhões de infelizes à ausência de praticamente tudo (leitos, equipamentos, medicamentos, profissionais etc…)”.

Na decisão, o magistrado citou o Código de Defesa do Consumidor, que garante a proteção contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos ou serviços. E entendeu que “essa limitação ou exclusão, contra expressa prescrição médica, tem razão para ser entendida como abusiva”.

Leia a íntegra da sentença

Vistos e Examinados.

DANIEL LAFER, qualificado nos autos, promoveu a presente Ação de Nulidade de cláusula contratual cumulada com pedido de indenização em face da INTERCLÍNICAS ASSISTÊNCIA MÉDICA HOSPITALAR alegando que em 1988 aderiu a plano de saúde mantido pela requerida, por intermédio da Associação Paulista dos Magistrados. Descobriu ser portador de mieloma múltiplo, com necessidade de transplante autólogo da medula óssea. No dia 10/02/03 pleiteou autorização para realização dessa intervenção, sendo que a ré recusou-se a prestar cobertura. Reiterou o pedido e, novamente, a requerida não o atendeu. Frisou haver indicação médica para a realização do transplante, sendo que a ré não quer atende-la sob o argumento de inexistência de previsão contratual. Frisou a aplicabilidade do CDC ao caso dos autos. Também alegou que os contratos de assistência médica são sujeitos à disciplina decorrente da Lei 6.839/80. Fez alusões a normativos editados pelo Conselho Federal de Medicina. Pleiteou o reconhecimento de nulidade da cláusula que exclui o tratamento da patologia, condenando-se a ré a realizar o pagamento de todo o tratamento, fixando-se indenização por dano moral. Requereu a concessão de antecipação da tutela. Juntou documentos.

A antecipação da tutela pleiteada pelo autor foi deferida a fls. 103/106. Essa decisão foi objeto de agravo de instrumento interposto pela requerida, que foi provido.

A requerida foi citada e ofertou resposta. Preliminarmente impugnou a decisão que concedeu a antecipação da tutela, porque as condições do contrato são claras no sentido da exclusão de transplantes. Enalteceu que em razão da expressa exclusão não há abusividade a corrigir, sendo que decisão em contrário viola o ato jurídico perfeito. Que não há qualquer inobservância ao Código de Defesa do Consumidor, sendo que as exclusões encontram apoio nos artigos 10 e 12 da Lei 9.656/98. Fez referência às Resoluções no. 10 e 12 do CONSU, que excluem a cobertura dos transplantes, exceto os de córnea e de rim. O autor estava devidamente informado a respeito da cobertura que o plano a que aderiu proporcionava. Teceu considerações a respeito da natureza do contrato celebrado entre as partes, frisando que deve prevalecer o princípio pacta sunt servanda. Que o direito à saúde garantido constitucionalmente é dever do Estado. Impugnou o pedido de condenação no pagamento de danos morais e também o valor da indenização que é pretendida. Requereu que a pretensão fosse julgada improcedente. Juntou documentos.


A requerida ofertou reconvenção ao requerente. Com base nos mesmos fundamentos da resposta pleiteou a condenação do requerente no pagamento dos valores despendidos pela ré em razão da antecipação da tutela deferida àquele. Anexou documentos.

Réplica a fls. 448/454, remissiva aos termos da inicial.

Designou-se audiência de tentativa de conciliação, que não foi obtida.

Em apenso encontram-se autos de impugnação ao pedido de justiça gratuita, sob o argumento de não ser o autor pobre na acepção jurídica do termo.

Relatados.

Fundamento e Decido.

I.Profere-se julgamento no estado, sem necessidade de outras provas, pois a questão tratada nos autos é só de direito

II.Quanto ao pedido de impugnação da justiça gratuita, não deve ser provido.

O autor declarou-se pobre na acepção jurídica do termo e, em conseqüência, a ele se deferiram os benefícios da gratuidade.

A declaração da parte no sentido de que é pobre forma presunção relativa de veracidade que, no caso dos autos, não restou desfeita por qualquer elemento seguro em sentido diverso.

III.Sempre com o devido e costumeiro acatamento às r. Decisões da Superior Instância continuo entendendo que a razão encontra-se com o autor e, por isso, a pretensão deve ser parcialmente atendida, no mesmo sentido do que já decidi em caso semelhante a este, nos autos do Processo no. 01.116787-4, desta mesma Vara, em que são partes Berenice Maria Aparecida Matuck e ré a própria requerida.

Primeiramente vale assinalar que não se coloca em dúvida o caráter privado do contrato entre as partes.

Não se pretende estender à ré as obrigações do Estado no que toca ao direito à saúde.

Poderia o autor recorrer ao sistema público de saúde para ver atendida a prescrição médica excluída pela ré?

Claro que sim; poderia.

Mas a questão que se coloca é no sentido do autor estar obrigado a isso, se firmou com a requerida contrato de assistência médica exatamente para que não fosse necessário socorrer-se do caótico sistema público de saúde.

No Brasil a socialização da medicina, com a proliferação dos planos de assistência médica e de seguro-saúde, é fenômeno intrinsecamente relacionado com a incompetência estatal no sentido de gerir de forma eficiente recursos decorrentes de uma das mais altas cargas tributárias do mundo, para fornecer à sociedade assistência à saúde; assim, sob o manto da livre iniciativa, organizaram-se empresas com o objetivo de prestar, de forma onerosa, assistência à saúde, aproveitando-se da deficiência da gestão do Poder Público.

A verdade é que se adere a um plano de saúde visando a obtenção de assistência à saúde negligenciada pelo Estado e fora do sistema gerido por ele; busca-se uma alternativa custeada pelo esforço individual (não bastasse o pagamento dos tributos), exatamente para que em caso de doença não se tenha de buscar socorro num sistema que é, no mínimo, ineficiente, e que submete diariamente milhões de infelizes à ausência de praticamente tudo (leitos, equipamentos, medicamentos, profissionais etc…).

Convalidar exclusões recomendadas pelos interesses daqueles que ingressaram na brecha da secular negligência do Estado, criando mercado e “produtos” (assim são denominados os planos oferecidos pelas “operadoras” de assistência médica ou de seguros-saúde) e para quem o objetivo é angariar o maior numero possível de “vidas” (é assim que o “mercado” denomina os indivíduos que aderem a um plano de saúde ou seguro-saúde) é, no mínimo, permitir que eles agravem o que lastimavelmente se observa nesta terra: a desigualdade.

Não fosse suficiente observar que já há duas castas de doentes, aqueles que são do “SUS” e aqueles que possuem “plano de saúde”, o que se quer agora, por força das exclusões e limitações, é sub-categorizar esses últimos.

É fácil e justificável admitir que certo “operador” tenha esta ou aquela rede credenciada, o que pode dar a dimensão do maior ou menor custo do “produto”; é inadmissível, entretanto, que o que é para ser, não seja, vale dizer, que se excluam tratamentos prescritos por médicos sob o pálio de convenção a respeito, como se o ser humano fosse dotado de premonição, no sentido de saber de que mal poderá padecer desde o instante seguinte àquele em que adere ao “produto” ofertado.

Não se pode esquecer que mesmo uma relação de direito privado se subordina a normas de ordem pública, que são inderrogáveis.

Embora a relação jurídica em questão seja anterior ao Código de Defesa do Consumidor, não há dúvida de que, em razão do seu caráter continuado, é regrada pela sistemática dele, posto que, do contrário, estar-se-ia vivenciando verdadeiro caos jurídico, em que haveria relações de consumo privilegiadas – as contratadas após o CDC –, e outras de segunda classe, a saber, aquelas ajustadas antes da vigência do diploma.


Não se pode, é obvio, apanhar o CDC e aplicá-lo a situações jurídicas definidas e encerradas antes de sua vigência. Ai sim estar-se-ia aplicando retroativamente as disposições da Lei Consumerista. Absurdo seria, entretanto, deixar de aplicar as normas de regência das relações de consumo a uma situação presente, contemporânea à sua vigência, porque se iniciou antes. Aliás, somente se houvesse disposição legal em tal sentido permitido seria proceder dessa forma e, ainda assim, com a ressalva de que a restrição seria invalida se afetasse o sistema.

Posta assim a questão e insistindo, com a devida vênia dos que pensam em contrário, no sentido da aplicabilidade do CDC ao caso em questão, tendo em conta que a situação litigiosa se verificou após a vigência dele, é adequada a aplicação das regras que regulam a sistemática das relações de consumo ao caso dos autos.

O artigo 4º, do Código de Defesa do Consumidor, em decorrência do comando inserto no artigo 170, inciso V, da Constituição Federal, contra quem não se pode pretextar com o ato jurídico perfeito, explicitou os princípios que regem a defesa do consumidor, dentre eles, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado do consumo e a intervenção estatal, inclusive por intermédio do Judiciário, para a manutenção do equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores e a efetiva proteção daqueles.

Note-se que essa vulnerabilidade é normativa e, portanto, pouco importa a questão do contrato ter sido firmado com a Associação Paulista dos Magistrados. Sendo relação de consumo, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é decorrente da regra constitucional.

O mesmo diploma, vale dizer, o Código do Consumidor, no artigo 6º, com fundamento nos princípios do artigo 4º, garantiu a este efetiva proteção contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos ou serviços (inciso III) e a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais (inciso V).

As praticas abusivas restaram definidas pelo legislador no artigo 39, do Código de Defesa do Consumidor, ao passo que as cláusulas abusivas encontram-se mencionadas no artigo 51.

Deste último dispositivo é possível extrair que, dentre outras, são consideradas abusivas as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (inciso IV) e aquelas que estejam em desacordo com o sistema de defesa do consumidor (inciso XV). Também do mesmo dispositivo é possível observar que é considerada exagerada (e, portanto abusiva) a vantagem que restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual (§ 1º, inciso II).

O autor aderiu ao plano de assistência médica mantido pela ré que somente contempla o transplante de córnea e rim, excluindo qualquer outro.

Mas essa limitação ou exclusão, contra expressa prescrição médica, tem razão para ser entendida como abusiva.

Quem firma contrato de assistência médica ou a ele adere, visa obter atendimento integral em caso de doença, já que o atendimento parcial da prescrição médica evidentemente não tem os efeitos curativos que se espera de um tratamento.

O paciente não escolhe nem a doença a tampouco o tratamento a que se submeterá, sujeita-se a desígnios Superiores quanto ao mal que o afligirá e aos ditames humanos, quando ao tratamento adequado.

A limitação ou exclusão de tratamento decorrente de expressa prescrição médica, ainda que transplante caro, soa tão absurdo como se o consumidor, que em razão de disposição contratual tem certo número de dias por ano de permanência da UTI, decidisse esgotar seu direito pretendendo, sem prescrição médica, internação dessa espécie ou a devolução de valor correspondente ao direito não exercido.

A limitação ou exclusão de que se trata nos autos não é acidental, mas sim essencial, incidente sobre o próprio objeto do contrato.

A conseqüência do não atendimento da prescrição médica é certamente a morte do autor, precedida de todo o sofrimento imposto pela doença que o requerente não quis contrair; assim, é óbvio, que o desatendimento da prescrição médica infirma a própria razão de ser do contrato de assistência médica ou de seguro-saúde.

Reitere-se aqui o que já antes foi dito: o autor não está obrigado a procurar o sistema público de saúde, embora possa faze-lo, exatamente porque de forma onerosa contratou com a requerida plano de assistência à saúde.

Assim, a exclusão ditada pela ré não pode prevalecer, por ser abusiva, sob pena de se permitir que a regra de ordem pública e o próprio sistema de defesa do consumidor verguem em razão da convenção privada.

Pode ser, embora improvável, que o cálculo atuarial realizado pela ré reste afetado pela cobertura ora imposta. Mas essa questão não afeta, diretamente, o requerente, e nem pode servir de pretexto para a exclusão de coberturas, pois afinal de contas o ônus do negócio é do empresário.

Para finalizar registro que apesar de entendimentos em contrário, sempre respeitáveis, continuo a pensar que o CDC, embora não seja formalmente Lei Complementar, substancialmente está no nível desta, já que cumpre diretamente papel destacado no inciso V do artigo 170, da C.F. Não está, assim, na mesma situação da Lei nº 9.656/98, que estabelece regramento referente a certa relação de consumo, a saber, a aplicável aos planos de saúde. E, desta sorte, são inválidos, em razão do princípio da hierarquia das Leis, quaisquer preceitos, inclusive os que permitem exclusões ou limitações essenciais, que possam ser encontrados no diploma de hierarquia inferior em detrimento daqueles direitos assegurados pelo diploma legislativo que, substancialmente, é mais elevado, por dimensionar todo um sistema.

Por essas razões convenço-me da razão do autor, assinalando, tão somente, que o tratamento a ser prestado pela ré fica restrito à rede credenciada por ela.

Pelo que se vê do exposto, a questão debatida nos autos é intrincada, não se podendo afirmar que houve por parte da ré raso descumprimento da lei ou do contrato. Assim, não é o caso de impor à requerida condenação por danos morais, bastando tão somente compeli-la ao cumprimento da obrigação, para reparação do ilícito.

Quanto à reconvenção, pelos mesmos motivos, não encontro fundamento para atende-la, destacando-se que apesar do autor não ter oferecido resposta à ela, evidentemente dissentiu do pedido reconvencional, por força dos mesmos motivos pelos quais pretendeu a procedência da pretensão que deduziu.

Posto isto e pelo mais que dos autos remanesce rejeito a impugnação à justiça gratuita e, ademais, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido, para declarar inválida a regra contratual em que se apóia a requerida para excluir o transplante prescrito ao autor, condenando-se por isso a ré a arcar com todas as despesas decorrentes do transplante, na sua rede credenciada, sob pena de multa diária de R$ 2.000,00, para a hipótese de transgressão do preceito. Pelos mesmos motivos em face dos quais acolhi o pedido, julgo IMPROCEDENTE a reconvenção. Finalmente, condeno a ré a pagar as custas, despesas do processo e honorários advocatícios que fixo em 20% sobre o valor da causa.

P. R. e Intimem-se.

São Paulo, 25 de junho de 2.004

Nuncio Theophilo Neto

Juiz de Direito

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