Regras do jogo

Paixão e medo envenenam julgamentos políticos no Brasil

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26 de janeiro de 2004, 13h41

* Texto extraído da Enciclopédia Jurídica de autoria de Leib Soibelman. A íntegra pode ser encontrada no CD-ROM em www.elfez.com.br

O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde. (Rui Barbosa)

Existe ou não existe justiça política? Carrara encerrou o seu Programa de Direito Criminal recusando-se a tratar dos crimes políticos, com a famosa alegoria de que quando a política penetra no templo da justiça, esta foge pelas janelas espavorida. É um assunto altamente difícil não só para o direito, mas também para a filosofia, a moral e a teologia.

Queiramos ou não, existe em todos os países uma justiça dedicada a punir os atentados contra a segurança dos regimes políticos vigentes. Toda revolução vitoriosa institui os seus tribunais para julgar os vencidos e garantir a permanência do novo governo. Toda revolução vitoriosa julga. Toda revolução vencida é julgada.

A revolução e o golpe de Estado são os únicos crimes que só são punidos em grau de tentativa e impuníveis quando vitoriosos. São crimes impuníveis na forma consumada. O revolucionário consciente não pode contar com benevolência da justiça do regime contra o qual atentou e nunca aceita a validade do julgamento a que é submetido, mesmo quando este se processa dentro de todas as formas e garantias legais. Não aceita as regras do jogo, pois ele quis justamente mudar estas regras. Ou não se defende, começando por dizer “Nego” assim que lhe perguntam o nome no interrogatório, ou “Apelo” antes que o juiz profira a sentença, ou tenta fazer da tribuna de defesa uma tribuna política.

Mas a verdade que temos hoje, é que nada existe que escape à política. Tanto é político o julgamento de um atentado ao regime quanto o julgamento de uma simples ação de despejo, porque esta também se baseia em última análise em um regime político que garante a alguém o direito de propriedade.

Já Napoleão tinha percebido que o antigo destino que movia os personagens da tragédia grega se havia transmudado em política, quando declarou: “O destino é a política”. Mas, qual a função que se pode atribuir à justiça política, já que ela existe? Quais os requisitos mínimos de justiça que ela deve ter? Já que não existe uma justiça humana perfeita, e já que não se pode saber qual o juízo da posteridade, o juízo da história, que tem revisto centenas de julgamentos, parece-me que a única segurança indispensável para a garantia dos direitos do acusado está na pessoa do juiz. Mas mesmo assim ainda há grandes problemas: é preciso que o juiz seja homem de grande coragem moral, o mesmo se exigindo do jurado quando é um júri o encarregado de julgar estes crimes.

O fato de o juiz ser um homem enquadrado honesta e conscientemente numa escala de valores que apóia a punição destes crimes, é uma contingência da vida humana, mas é preferível a honestidade a serviço da punição do que a punição a serviço do carreirismo. E estes problemas não são privativos do julgamento político, mas de todo e qualquer processo. Todas as leis processuais dependem em última instância da pessoa do juiz.

O acusado pode não aceitar o julgamento, mas se o juiz reflete os valores vigentes na média da sociedade em que funciona, não se pode recusar a validade do julgamento. E hoje como ontem existem uma série de princípios de justiça universalmente aceitos. Note-se ainda que é preferível um julgamento a uma execução sumária com base apenas na vitória ou na vingança.

A democracia prefere arcar com os riscos de um processo, os totalitarismos executam ou fazem processos dirigidos nos quais o juiz arrisca a própria cabeça se não fizer o que o executivo deseja. Só no juiz está a salvação. Ninguém melhor que Rui Barbosa, no imortal artigo “O justo e a justiça política” (1899) demonstrou isto: “Não há tribunais que bastem para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados”.

“E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública (grifado no original), o pretexto que renasce, para exculpar as transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue que vão derramar, do atentado que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde.”

Se todo juiz for homem de coragem, não adianta o poder substituí-lo por outro. O cidadão pode contar ainda com a força da opinião pública nacional e internacional, o poder da imprensa e das associações jurídicas mundiais. Os regimes totalitários já não podem fazer hoje o que bem entendem, porque a moderna comunicação de notícias entre países impede os segredos absolutos do passado.

O mal não é a justiça política. São os juízes políticos ou quando a justiça deixa de ser justiça para transformar-se apenas em baixa política.

A paixão e o medo é que envenenam os julgamentos políticos. Maior prova disso é que, quase sempre, os criminosos políticos julgados anos depois dos fatos são absolvidos. O impeachment (V.) é um julgamento político onde campeia a paixão partidária.

Para terminar, eis algumas considerações de Jacques Isorni, o grande advogado francês: “O processo político só serve moralmente ao condenado ou a sua memória. Jamais a quem o intenta, mesmo que com razão”. “Aparecendo quase sempre como uma vítima, o acusado está próximo do martírio, antes de ser condenado.” “A acusação sempre tenta transformar os fatos políticos em crimes comuns para atingir o adversário. ” “Se o processo político é inevitável, a melhor solução é dar-lhe como juízes os homens políticos”, com o que se evita a conspurcação da justiça ordinária, civil ou militar. “Eles tomarão as responsabilidades de homens políticos e não a responsabilidade de magistrados aplicando a lei e conferindo às suas decisões a autoridade da coisa julgada.”

Isorni conta o seguinte fato: De Gaulle encontrou-se com o grande historiador Madelin e disse-lhe que estava satisfeito porque o processo contra Pétain estava terminado. Resposta de Madelin: “Terminado! Oh! Meu General! Nesses processos o caso começa sempre após o veredicto”.

Bibliografia recomendada: – Jacques Isorni, Témoignages sur un temps passé. Flamarion ed. Paris, 1953; Rui Barbosa, Coletânea literária. Ed. Nacional. São Paulo, 1945; Bernard Morice, Les procès de haute justice au palais du Luxembourg. France Empire ed. Paris, 1972.

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