Fora de foco

"MP utiliza compulsivamente interceptações telefônicas".

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23 de janeiro de 2004, 15h11

Há ditado popular rezando: “Em rio que tem piranha, jacaré nada de costas”. Para este cronista, o tempo disso já passou. Os articulistas mais jovens, ou mais politizados, abroquelam-se, em parte, num outro preceito: “O cliente passa, mas a polícia, o juiz e o Ministério Público ficam”. Cuida-se de conselho sábio porque as manifestações visando aspectos da persecução ou da distribuição da Justiça costumam ser registradas com desagrado quando constituem críticas ao sistema ou mesmo ao comportamento de alguns.

Evidentemente, todos têm seus pecados, classificados como pequenos, médios ou graves. Assim, dentro do hipotético período em que o Brasil se redemocratiza, os erros de uns e outros precisam ser apontados, até para que o povo os conheça e exerça o adequado juízo de valor. Nessa medida, o conflito recém-inaugurado entre José Dirceu e o Ministério Público exige comentário sintético, não se justificando que a grande maioria dos órgãos de imprensa, sem exceção das empresas de televisão, mantenha discrição cautelosa, pois as figuras em litígio são das mais influentes na história política da nação.

De um lado, pontifica um ministro plenipotenciário, herdeiro da convenção de Ibiúna, onde apareceu, jovem ainda, fazendo discursos contra a ditadura; de outro lado surge a instituição que incorpora, hoje, a maior soma de autoridade já concretizada no país, fruto tal potencialidade, diga-se de passagem, da inércia com que as denominadas facções liberais se postaram em Brasília enquanto se discutia e votava a Constituição de 1988, refletindo-se tal omissão na própria Lei Orgânica da entidade referida.

Evidentemente, o Ministério Público merece respeito, como merecem o Poder Judiciário, a Polícia e a Ordem dos Advogados, porque todos se esmeram na restauração da ética indispensável à condução dos nossos destinos. Note-se que a expressão usada é “ética” e não “legalidade”, pois seguidamente, até como rotina em países que se livram do jugo autoritário, o esforço de recomposição de preceitos éticos leva ao ultrapassamento dos limites legais, constituindo-se, isso, num autêntico paradoxo.

Nesse contexto, o ministro José Dirceu tem razão. Usou a tribuna da Ordem dos Advogados para tecer críticas adequadas, referindo-se a alguns setores do Ministério Público. Estes, de acordo com o discurso feito pelo ministro, não poupam a dignidade, a honra e privacidade de pessoas ou órgãos submetidos a uma ou outra investigação importante, violando-se costumeiramente o segredo de justiça já decretado. Em revide, o procurador-geral de Justiça em exercício no Estado de São Paulo asseverou que o ministro pretendia cercear a independência da instituição, constituindo, tal atitude, ofensa grave à autonomia daquele órgão corporativo. Em síntese, o procurador-geral de Justiça interino quer que a divulgação de infrações penais seja plena, cabendo-lhe a atribuição de decidir sobre as alternativas existentes.

É preciso levar algumas feridas a arder. Verdadeiramente, a cúpula do Ministério Público precisa entender que não pode pretender numa parte divulgação escandalosa, mantendo, em relação a outra atividade, um soturno segredo que violenta, seguramente, os pressupostos constitucionais atinentes ao respeito à privacidade, dignidade e segurança do cidadão, direitos e garantias, aliás, postos na Constituição Federal. Diga-se, nesse sentido, que os denominados Inquéritos Civis Públicos se desenvolvem seguidamente em segredo absoluto, proibindo-se os advogados dos investigados de examinar os autos respectivos.

Em São Paulo, acresça-se, há excrescência maior: criou-se um abstruso “procedimento preparatório de inquérito civil público”, apresentando providência absolutamente inconstitucional.

Adiante, o Ministério Público vem utilizando compulsivamente as denominadas interceptações telefônicas, levando-se tais atividades a extremos constitutivos, já, de escândalo judiciário gerador do afastamento, há alguns meses, de eminente magistrado do DIPO. Em seqüência, algumas áreas da augusta instituição colhem provas no sacrário dos gabinetes com extrema unilateralidade, não respondendo por anomalias constatadas depois.

Tudo se torna mais fácil, pois o próprio Ministério Público detém o direito de punir, em abstrato, qualquer deslize de conduta na colheita de indícios. No meio disso, o sigilo é mantido quando há interesse, sendo desvestido, às escâncaras, quando é preciso convocar a atenção da imprensa. Por fim, o segredo determinado pelo Poder Judiciário é diuturnamente desprezado, fazendo-se pouco caso da Jurisdição. Não foi sem motivo, portanto, que o Supremo Tribunal Federal afirmou que o Ministério Público não pode substituir a polícia nas investigações. E não é sem razão que o Poder Executivo constituiu comissão para análise da lei que disciplina, hoje, as interceptações telefônicas, havendo anteprojeto em ebulição, tudo sob a batuta de ilustres processualistas penais, remanescentes, uns e outros, do grupo que levou a lei vigente ao mundo concreto. Os pais e a mãe da lei número 9296/96 devem estar, agora, cobrindo as frontes com sal grosso, em purgação da imprudência com que se conduziram.

No fim de tudo, o fenômeno representado pela divulgação desenfreada de fatos hipoteticamente ilícitos é a seqüência do que acontece em qualquer nação que pretenda libertar-se da ditadura.

Isso é universal. Recorde-se que as anomalias citadas não são privilégio do retorno à democracia. Aconteceu coisa igual após o golpe de 1964. Criaram-se Comissões Gerais de Investigação presididas por cultos persecutores. Houve supressão de direitos e garantias. O Poder Judiciário perdeu força. Os órgãos persecutórios se potencializaram, reduzindo-se o controle sobre os mesmos, porque era difícil, naquelas circunstâncias –, e ainda o é –, submeter-se o fiscal a fiscalização.

É preciso, com urgência extrema, a assunção de medidas aptas à estabilidade do binômio acusação-defesa. Nesse padrão, convém deixar muito claro que muito mais tranqüilo será acompanhar o caudal. A posição censória amedronta a maioria. Cria-se um enovelamento profundo, embora curável com o tempo, na medida em que o remédio é constituído pela própria falta de censura externa. O poder sem limites leva fatalmente à decadência. É esperar para ver.

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