Decisão suspensa

Auditores não precisam fazer fiscalização em porto, decide TRF-1.

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21 de janeiro de 2004, 17h56

O presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, desembargador federal Catão Alves, suspendeu na sexta-feira (16/1) decisão proferida pelo Juízo Federal da 5ª Vara de Belém, que determinava à Receita Federal o deslocamento de auditor para fazer a fiscalização no porto de Breves (PA), sob pena de multa diária.

O pedido foi feito em suspensão de segurança ajuizada pela Procuradoria Regional da Fazenda Nacional da 1ª Região, sediada em Brasília.

A empresa Robco Madeiras, arrendatária do Porto de Breves, impetrou mandado de segurança contra o inspetor da alfândega do Porto de Belém. Alegou que a Receita Federal estaria descumprindo a obrigação legal de fiscalizar as operações portuárias, dentre as quais uma partida de mais de 5.000 m3 de madeira. Impedida, assim, de cumprir os contratos pela conduta omissiva da Receita, viria a suportar elevados prejuízos financeiros.

O inspetor da alfândega justificou a suspensão dos serviços de fiscalização com o Decreto nº 4.900, de dezembro de 2003, o qual limita o empenho de despesas do governo federal. O argumento não foi acatado pelo juiz Francisco de Assis Castro Júnior, que deferiu a liminar para que a Receita providenciasse o envio de fiscal ao Porto de Breves, no prazo de 48 horas, sob pena de multa diária de R$ 10 mil.

O procurador regional da Fazenda Nacional, Pedro Raposo Lopes, ajuizou, então, pedido de suspensão de segurança no qual invocou a teoria da “reserva do possível” e da “ponderação de interesses”. Para o procurador, a teoria impõe para “a concretização das normas constitucionais que veiculam direitos a prestações materiais, a atuação exclusiva do administrador para a eleição dos programas e metas a serem cumpridas, sobretudo em épocas de restrições orçamentárias”.

O presidente do TRF da 1ª Região acatou os argumentos da Procuradoria da Fazenda. Catão Alves afirmou: “Não me parece crível que o Poder Judiciário possa proferir decisão de caráter eminentemente administrativo, determinando deslocamento de servidor público para o exercício do poder de polícia à míngua dos indispensáveis recursos orçamentários, principalmente porque cabe, tão-somente, ao Poder Executivo eleger as prioridades, entre muitas, em decorrência da discricionariedade que a lei lhe atribui na escolha da conveniência e na oportunidade da prática de ato administrativo”.

SS 2004.01.00.000847-3

Veja a íntegra da petição inicial:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO

A UNIÃO (Fazenda Nacional),

pessoa jurídica de direito público interno com domicílio no Distrito Federal, por seu Procurador Regional, com endereço na cidade de Brasília, DF, no Setor de Autarquias Sul, quadra 2, bloco “e”, ed. P.G.U., gabinete, onde recebe intimações, vem apresentar o presente pedido de SUSPENSÃO DA LIMINAR deferida pelo Juízo Federal da 5ª. Vara da Seção Judiciária do Estado do Pará, nos autos do mandado de segurança nº 2004.39.00.000055-1, impetrado por ROBCO MADEIRAS LTDA., com fulcro no artigo 4º da Lei 4.348/64 e nas razões de fato e de direito que passa a expor:

I

Os fatos

ROBCO MADEIRAS LTDA., na qualidade de arrendatária de terminal portuário, por seu nobre patrono, impetrou mandado de segurança contra conduta omissiva do INSPETOR DA ALFÂNDEGA DO

PORTO DE BELÉM, colimando provimento liminar que determinasse à autoridade apontada como coatora que “providencie o deslocamento de seus fiscais para o Porto Alfandegado de Breves de propriedade da impetrante, para exercerem suas atividades de fiscalização e desembaraço aduaneiro de 5.339,344 m3 de madeiras”, e, alfim, segurança que lhe assegurasse o direito de exercer sua atividade econômica, determinando-se o deslocamento de autoridade tributária para aquela localidade e a abstenção da prática de “qualquer ato que impossibilite a fiscalização e o despacho aduaneiro no porto da impetrante”.

Aduziu, em síntese, que as atividades que ali desenvolve requerem, ex vi legis, a participação de agentes do fisco, por intermédio de prévia solicitação, e que tais atividades fiscalizadoras sofreram solução de continuidade a partir de 08.DEZ.2003, conforme mensagem eletrônica encaminhada à impetrante pela autoridade coatora, ipsissima verba:

“Participo que por determinação superior, a partir de 08/dez, todas as despesas com diárias e passagens, no âmbito da Secretaria da Receita Federal, estão suspensas devido à (sic) restrições orçamentárias.

Portanto, estamos impossibilitados de atender aos embarques em Breves até que ocorra a liberação de recursos suplementares, sem previsão até o momento.”

(omissis)

Narrou que a omissão vem se protraindo até a presente data, encontrando-se na iminência de sofrer pesadas perdas financeiras, tendo em vista os contratos já entabulados e as partidas aprazadas para este mês.


A decisão cuja suspensão se requer encontra-se vazada nos seguintes termos, na parte que interessa ao desate do presente pedido, litteratim:

“7. Defiro, portanto, a postulação liminar formulada, pronunciando a autoridade impetrada na operacionalização, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas a contar da notificação, sob cominação de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para o caso de descumprimento ou de retardamento (CPC 14/V), dos serviços aduaneiros requisitados para viabilizar a exportação, através do Navio M/V/IGARKA, das mercadorias depositadas no porto explorado pela impetrante, localizado na cidade de Breves/PA.”

II

Do Direito

Ao determinar o deslocamento de servidor público para o exercício do poder de polícia, conforme postulado na inicial, mesmo à míngua dos indispensáveis recursos orçamentários, prolatou o Juízo decisão que, de fora parte inexeqüível, afronta de maneira lancinante a ordem jurídica.

A decisão é inexeqüível porquanto não dispõe a Administração Alfandegária de recursos materiais para fazer frente ao deslocamento dos servidores, tais como: passagens, hospedagem, e toda sorte de despesas que uma empreitada desse jaez requer.

Com efeito, a 26.NOV.2003, fez o chefe do Executivo baixar o Decreto nº 4.900, limitando o empenho a 12.DEZ.2003, prazo esse que foi alterado pelo Decreto nº 4.936/2003.

É como explica a autoridade impetrada no Ofício nº 09/2004/SRRF 2ª. RF/GABIN, de 14.JAN.2004, verbatim:

“Ocorre que esta Regional da Secretaria da Receita Federal encontra-se sem recursos orçamentários para aquisição de passagens e pagamento de diárias para os servidores designados, motivados pelos Decretos nºs 4.900/2003 e 4.936/2003 e no aguardo da sanção presidencial à Lei Orçamentária (…)”

O atendimento às necessidades públicas se sujeita à reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen), conceito haurido na jurisprudência da Corte Constitucional Federal tedesca no BverfGE n. º33, S. 333, e que predica, para a concretização das normas constitucionais que veiculam direitos a prestações materiais, a atuação exclusiva do Administrador para a eleição dos programas e metas a serem cumpridos, sobretudo em épocas de restrições orçamentárias.

É claro que a reserva do possível não pode servir de panacéia para todos os males da Administração Pública. É mister que, à luz da teoria da argumentação, demonstre o Poder Público, ex ante, a inexistência de recursos para atender a tal ou qual despesa.

Na hipótese vertente, tal pressuposto restou satisfeito com a edição dos decretos acima aludidos.

Também não se está a propugnar que o absenteísmo administrativo no exercício do poder de polícia possa ser coonestada com argumentos doutrinários, colhidos na jurisprudência alienígena. É claro que a omissão abusiva dá azo a conseqüências indesejadas pelo Administrador. O que não se pode chancelar (não sem afronta ao princípio da separação de Poderes insculpido no art. 2º, da CR/88, e pedra basilar de nosso sistema constitucional), é que o Judiciário determine ao Administrador o exercício de determinada atividade que somente lhe impende, usurpando função que não lhe foi constitucionalmente assegurada.

Assegura-se ao jurisdicionado a inafastabilidade do controle judicial (CR/88, art. 5º, XXXV), que nada mais é do que o direito à obtenção de provimento efetivo e adequado àquele que ostenta uma posição jurídica de vantagem, mas sempre salvaguardando-se a separação de poderes, tão arduamente conquistada.

Não desconhece a requerente os candentes debates travados em sede doutrinária a respeito da chamada colisão de princípios constitucionais e os remédios alvitrados para a sua solução, dentre os quais o princípio da proporcionalidade e o da ponderação de princípios, tão bem expostos pelo talentoso DANIEL SARMENTO, em seu festejado “A ponderação de interesses na constituição federal”[1].

O Judiciário tem permanecido atento às situações nas quais princípios como os da solidariedade, da dignidade do ser humano, da proteção à saúde e a criança colidam com o da separação de poderes, prestigiando aqueles sem incorrer na negativa de vigência deste.

Veda-se, contudo, a intervenção desmedida, anti-democrática, conforme apontamentos doutrinários de Paulo Fernando Silveira, em obra intitulada Freios e Contrapesos (Del Rey, 1999, p. 99-100), dedicada exclusivamente à temática aqui abordada:

“Debaixo do princípio da separação, esclarece Jonathan Rose, cada ramo do poder foi provido de independentes meios de exercer checks on and to balance as atividades dos outros dois, assim garantindo que nenhum ramo pudesse alguma vez exercer autoridade ditatorial sobre os trabalhos do governo. Desse modo, os três ramos do governo são separados e distintos um do outro. Os poderes dados a cada um são delicadamente controlados pelo poder dos outros dois.”


Na hipótese vertente, contudo, em que a colisão se dá entre o interesse privado ao exercício de atividade econômica, o livre acesso ao Judiciário e o princípio da separação de poderes, este há de preponderar, assegurando-se ao impetrante, todavia, seu interesse juridicamente protegido por outros meios, que não importem em invasão da seara constitucionalmente reservada ao Executivo.

A norma do artigo 2º da Constituição da República é complementada pela do artigo 84, inciso II, segundo o qual compete ao chefe do Executivo “exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal”, razão pela qual não poderia o nobre magistrado determinar ope iudicis a atuação de agentes públicos, devendo conferir ao caso outra solução mais consentânea com o caso concreto.

Deveras, a preferência por um princípio constitucional – o da separação dos poderes – não significa que o preterido seja afrontado, resolvendo-se a questão sob o prisma da momentânea precedência de um sobre o outro no caso concreto, como assevera o jurista Robert Alexy, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais (apud Márcio Fernando Elias Rosa. Princípios constitucionais na concepção sistêmica do ordenamento jurídico. Revista de Direito Constitucional e Internacional, nº 39, São Paulo, RT, p. 205), ao explanar, sobre o conflito entre princípios, que:

“[…] sob certas circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira diversa. É isto o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras resolvem-se na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – têm lugar para além da dimensão da validade, na dimensão do peso.”

São essas hipóteses-limite que devem ser trilhadas pelo magistrado com criatividade, e redobrada cautela. Não é por outro motivo que em situações de paralisação de atividades públicas vem determinando o Judiciário a liberação de mercadorias retidas indevidamente, o desafogo alfandegário e quejandos, sem interferir, contudo, no bom andamento do serviço.

Essa Presidência, em recentíssima decisão que guarda total parecença com a presente, teve a oportunidade de averbar, com precisão capilar:

“9 – Não fora isso, não me parece crível que o Poder Judiciário possa proferir decisão de caráter, eminentemente, políico-administrativo, nem interferir nas relações internacionais que o País mantenha no cenário mundial para não implicar ingerência na aferição dos critérios de oportunidade e conveniência, ínsitos ao Poder Executivo.” (SS 2004.01.00.000206-8/MT, requerente o Município do Rio de Janeiro).

Como é de trivial sabença, o exercício da polícia administrativa é atividade que se insere dentro no conceito de Administração Pública em sentido objetivo ou material, sendo certo que a omissão de seu exercício poderá ensejar a responsabilização estatal na forma do artigo 37, §6º, da Lex Legum, (faute du service) mas o que não se pode conceber é a indevida intromissão judicial, ainda que sub color de salvaguardar legítimos interesses privados.

Sobre o conteúdo da expressão ordem pública, de que trata o artigo 4º do permissivo legal do presente pedido, EDILSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR[2] pontifica, com acuidade:

“Chamando a atenção para o conceito de ordem pública, mister não confundi-lo com o de segurança pública, até porque a lei refere-se aos dois vocábulos como representativos de significados diferentes. Deve-se interpretá-lo numa acepção vasta, compreendendo no mesmo a ordem administrativa em geral, ou seja, a regular execução dos serviços e atribuições do Poder Público.”

A decisão encontra-se, pois, a ofender a ordem administrativa, razão pela qual merece ser suspensa por essa Presidência, alforriando-se a autoridade coatora do risco da desobediência.

III

Pedido

Na réstia do exposto, confia a UNIÃO se digne V.Exa. determinar a imediata suspensão da decisão referida, comunicando-se de imediato ao Juízo prolator.

Sem provas a produzir. Questão unicamente de direito.

Dá-se ao presente o valor de R$ 1.000,00.

N. termos,

p.deferimento.

Brasília, 15 de janeiro de 2004

PEDRO C. RAPOSO LOPES

Procurador Regional da Fazenda Nacional – 1ª. Região

Notas de rodapé

[1] Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 53, passim.

[2] Algumas Considerações sobre Medida Liminar em Mandado de Segurança. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, a. 14, vol. 82. São Paulo: Jurid Vellenich, novembro 1990, pp. 33-54

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