Tiro pela culatra

Estatuto do Desarmamento sancionado tem vários exageros

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20 de janeiro de 2004, 18h50

Com sua publicação em 23 de dezembro de 2003, o Estatuto do

Desarmamento, Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003, passou a integrar o ordenamento jurídico pátrio. Entre vários exageros existentes no Estatuto, como, por exemplo, considerar ilícito penal o porte de “munição”, o novel estatuto tornou inafiançável o delito de porte de arma, “salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente” e proibiu a liberdade provisória para os delitos tipificados nos artigos 16 (posse ou porte de arma de uso restrito), 17 (comércio ilegal de arma de fogo) e 18 (tráfico internacional de arma de fogo).

O artigo 21 da referida lei dispõe que os delitos capitulados nos

artigos 16, 17 e 18 “são insuscetíveis de liberdade provisória”. A matéria ventilada no referido artigo não é recente, posto que o artigo 2º, inciso II da malsinada Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90), igualmente, vedava a liberdade provisória para os delitos que elencou como tal.

No entanto, para diversos doutrinadores e julgadores a liberdade

provisória, ou seja, a possibilidade do acusado aguardar solto o desfecho de seu processo criminal, é garantia constitucional (art. 5º, inciso LXVI combinado com o inciso LIV), coadunando-se, ainda, com o princípio constitucional da presunção da inocência (art. 5º, inc. LVII).

De modo, que não foram poucos os que, quando da promulgação da Lei Hedionda, questionaram a constitucionalidade do dispositivo que impedia, abstrata e absolutamente, a liberdade provisória.

Em 1990, Odoné Sanguiné analisava: “A liberdade provisória por ser

um direito fundamental constitucional sempre será garantida para todo e qualquer crime em caráter geral, mas será ou não admitida pelo juiz ou tribunal conforme o caso concreto, segundo as pautas indicadas, tal como hoje reguladas pelo CPP (…)”

O mesmo mestre questionava: “Pode a lei ordinária admitir ou não a

liberdade provisória, conforme circunstâncias concretas, mas não porém sempre vedá-la em caráter genérico e absoluto para certa tipologia de crimes” (Inconstitucionalidade da proibição da liberdade provisória, Fascículos de Ciências Penais, volume 3, n. 4, out/dez. 1990, pg. 18).

Passados mais de treze anos da promulgação daquele conjunto de

normas, o legislador novamente apresenta ao mundo jurídico uma nova proibição, genérica e absoluta, de se conceder a liberdade provisória, desta feita, aos elementos presos por portarem armas de uso restrito e por outros motivos (artigos 17 e 18, Lei n. 10.826/2003).

É bom que se ressalve que a quizília quanto à constitucionalidade do

inciso II do artigo 2º da Lei n. 8.072/90 se mantém, posto que, apesar do STF ter reconhecido a constitucionalidade do dispositivo, costumeiramente, diversos Tribunais realizam um equacionamento de valores humanos e princípios constitucionais e fazem tábula rasa daquele comando.

Outra questão polêmica que se realça a respeito do artigo 21 da Lei

n° 10.826/2003 é a ofensa ao princípio da razoabilidade e da

proporcionalidade, posto que, todas penas indicadas pelo preceito secundário dos tipos penais (artigos 16, 17 e 18) admitem a aplicação do regime inicial aberto, caso o sentenciado seja primário (artigo 33, parágrafo 2º alínea “c” do Código Penal).

Observe-se, outrossim, que é possível a substituição da pena

privativa de liberdade pela restritiva de direitos, nos termos do artigo 43 e seguintes do Código Penal. Por conseguinte, o comando do artigo 21 da Lei 10.826/03 traz o seguinte dilema: ao mesmo tempo em que impede o elemento preso pela prática da figura típica do artigo 16, 17 ou 18 de responder ao processo criminal em liberdade, permite ao magistrado, ao condenar esta pessoa, soltá-la (desde que a pena não ultrapasse os 04 anos). E mais, dependendo da análise das condições subjetivas do sentenciado, o magistrado poderá substituir a pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, concluindo-se, neste último caso que a prisão cautelar foi uma antecipação do cumprimento de pena com regime mais severo do que o estipulado na sentença final. Obviamente, que tais situações dependem da análise dos casos em concreto, mas podem, seguramente, ocorrer.

Observe-se que diferentemente da Lei de Crimes Hediondos, o Estatuto do Desarmamento não possui dispositivo determinando que a pena dos réus condenados pelos delitos tipificados nos artigos 16, 17 e 18 seja cumprida “integralmente em regime fechado” (art. 2º, parágrafo 1º da Lei n. 8.072/90). Daí ser evidente a antinomia criada pelo artigo 21 da Lei n. 10.826/2003.

Sobre leis restritivas que incidem sobre a harmonia jurídica,

Canotilho já salientava: “…uma lei restritiva mesmo adequada e necessária pode ser inconstitucional quando adote ‘cargas coativas’ de direitos e garantias ‘desmedidas’, ‘desajustadas’, ‘excessivas’ ou ‘desproporcionais’ em relação aos resultados obtidos” (José J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4ª Edição, Almedina, 1987, p. 488).

Com efeito, a possibilidade de concessão, ou não, da liberdade

provisória não pode ficar adstrita ao comando genérico de determinado artigo de lei, mas sim basear-se em critério fáticos e objetivos, vinculados aos requisitos e condições já existentes no Código de Processo Penal (artigo 310, parágrafo único e artigo 312).

É de se salientar que a jurisprudência moderna tem flexibilizado seu

entendimento relacionado à possibilidade de concessão de liberdade

provisória em determinadas prisões em flagrante, inclusive em crimes ditos hediondos, no intento de se evitar injustiças.

É como vem entendendo, reiteradamente, a 6ª Turma do Superior

Tribunal de Justiça que tem decidido que o fato de se tratar de crime

hediondo, por si só, não impede a liberdade provisória, desde que ausentes os requisitos da prisão preventiva (garantia da ordem pública etc.) (cf. STJ, HC 18.832-MG, Fernando Gonçalves, DJU de 04.03.02, p. 301, j. 07.02.02). No mesmo sentido: STJ, HC 18.635-DF, Fernando Gonçalves, DJU de 25.03.02, p. 311, j. 05.03.02; STJ, HC 14.119-SP, Hamilton Carvalhido, DJU de 25.06.01, p. 245, j. 06.02.01). Todas decisões plenamente aplicáveis à proibição estabelecida pelo artigo 21 do Estatuto do Desarmamento.

Portanto, a liberdade provisória poderá ser concedida desde que,

após prudente análise, o juiz ou tribunal verifique que a soltura do

indivíduo processado não irá prejudicar a sociedade, ou tumultuar a

instrução processual. Os julgadores não estão adstritos ao comando de um dispositivo francamente desproporcional e incoerente com o arcabouço jurídico.

O dispositivo apresenta duas vicissitudes de nível constitucional. A

primeira de forma, descende da Lei de Crimes Hediondos, refere-se à

competência do legislador infraconstitucional para formular leis proibindo genérica e abstratamente a liberdade provisória, pois tal instituto é listado no capítulo dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal, cláusula pétrea, portanto. Admite-se, ainda, a discussão sobre o conteúdo da citada norma, porquanto a mesma não se harmoniza com o conjunto de normas gerais do Código Penal e com princípios da Constituição Federal.

O comando do referido dispositivo fere o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade ao estabelecer a manutenção de uma pessoa presa durante toda uma instrução processual, mesmo quando factível que, ao final do processo, tal pessoa, ainda que seja condenada, possa receber uma pena passível de ser cumprida em regime inicial aberto e, quiçá, de ser substituída por pena restritiva de direitos.

Destarte, em razão do que foi exposto, entendo que o artigo 21 da

Lei n. 10.826 de 22 de dezembro de 2003 não impede em absoluto a análise dos pedidos de liberdade provisória que forem feitos em relação aos crimes previstos nos artigos 16, 17 e 18, devendo ser analisada a necessidade da segregação cautelar do indivíduo preso com base nos requisitos existentes no Código de Processo Penal.

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