Separação necessária

Independência entre Poderes é fundamental para garantir democracia

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16 de janeiro de 2004, 18h58

A dicotomia, inegavelmente, é um traço marcante no Direito. Nesta seara, dificilmente são encontradas posições e opiniões unânimes e unívocas. Vale aquiescer, sem embargo, que divergências, discussões e pontos de vista diferentes, longe de serem obstáculos e impedimentos, são, na imensa maioria das vezes, salutares e bem-vindos para a elucidação de contendas, bem como são relevantes para o progresso das estruturas sociais.

Destarte, como escreve Ives Gandra (1988:103), “O Direito, em verdade, é sempre maior do que a lei. Mais do que pensam os legisladores legislar. Mais do que julgam os tribunais interpretar. Mais do que entendem os doutrinadores visualizar, posto que o Direito é a própria vida de uma sociedade organizada. E esta vida social normada, se não tender para o justo, se não aprender as lições do passado, se não penetrar no coração do povo, se não refletir as tendências mutáveis e permanentes daqueles princípios maiores que dão estabilidade à sociedade, terminará por gerar crises e por se esfacelar perante valores que a superam, visto que há princípios naturais e supraconstitucionais de Direito que determinam a duração dos textos positivos, tornado-os breves, se estes o desconhecerem, ou de longa duração, se forem respeitados.”

Por estas razões – sem exclusão de outras – é que o Direito fascina e enleva.

A controvérsia que exsurge é a de saber se “O dever de planejar o desenvolvimento nacional, correlato de imposição posta no art. 3º da Constituição Federal, pode e/ou deve ser objeto de contrastação perante o Poder Judiciário?”

Ao ver, para efeitos de entendimento e para que a análise tenha proficiência, a indagação necessita de um pequeno, mas significativo ajuste na seqüência das orações, qual seja: “O Poder Judiciário pode e/ou deve analisar e/ou decidir acerca do dever de planejar o desenvolvimento nacional, (im)posto pelo art. 3º da Carta Magna?”

Diante da complexidade do tema, faz-se mister, pois, efetuar uma redução epistemológica adequada, bem como lançar mão do consagrado princípio da proporcionalidade apregoado por Luís Roberto Barroso (1996:198ss.), acompanhado por Willis Santiago Guerra F.º (2002:175 ss.).

Neste diapasão, tenha-se presente, por conseguinte, que estão em cena, de um lado, a independência, a harmonia e a separação dos Poderes, insertas no art. 2º, da Carta e de outro, a atuação do Poder Judiciário, o qual, como prescrevem, respectivamente, os arts. 5º, inc. XXXV e 102, representado pelo STF, não pode abdicar de apreciar lesões ou ameaças a direitos e é o guardião da Constituição. E, completando o tripé, as atividades e ações dos Poderes Legislativo e Executivo, os quais, por força do próprio texto constitucional positivado como sistema, sobretudo nos arts. 3º (objetivos), 165 a 169 (planos, diretrizes, orçamentos, recursos, dotações, etc.) e 170 ss. (ordem econômica, investimentos, fiscalização, incentivo e planejamento econômico), devem buscar, justamente, o próprio desenvolvimento nacional almejado pelo já mencionado art. 3º, especificamente, em seu inc. II.

Dissertando sobre este último aspecto, Alexandre de Moraes (2002:146) assevera que “A Constituição Federal estabelece vários objetivos fundamentais a serem seguidos pelas autoridades constituídas, no sentido de desenvolvimento e progresso da nação brasileira. A partir da definição dos objetivos, os diversos capítulos da Carta Magna passam a estabelecer regras que possibilitem seu fiel cumprimento. Ao legislador ordinário e ao intérprete, em especial às autoridades públicas dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e da Instituição do Ministério Público, esses objetivos fundamentais deverão servir como vetores de interpretação, seja na edição de leis ou atos normativos, seja em suas aplicações.”

Na esteira, como depreende-se do art. 165, a Constituição prevê, em matéria orçamentária, que o Congresso, a partir de leis de iniciativa do Poder Executivo, estabelecerá o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais. Da leitura dos §§ do art. 165 e da abalizada doutrina de Alexandre de Moraes (2002:1794), nota-se que “A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.” Da mesma forma, “A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.” Por fim, “A lei orçamentária anual compreenderá o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público; …”


Segundo Luiz Alberto Araújo (1999:353), “A Constituição brasileira, tal qual boa parte das Constituições contemporâneas (p. ex., a portuguesa e a italiana), possui capítulo especial dedicado à economia, reunindo o plexo de princípios, normas e institutos jurídicos que alicerçam a ordem jurídica econômica. Esse conjunto de preceitos voltados à regulação da economia, em nível constitucional, recebe o nome de “constituição econômica”.” Alexandre de Moraes (2001:629) complementa, expressando que “A ordem econômica constitucional (CF, arts. 170 a 181), fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos expressamente previstos em lei e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios do art. 170.”

Como corolário do estudo até aqui efetuado, restou claro, como leciona Ives Gandra (1990:92), que “Uma Constituição interpreta-se pelo conjunto de normas e de princípios”, de tal sorte que o texto positivado resulta num sistema. André Ramos Tavares (2002:86) ratifica e denota que “o conjunto de normas constitucionais forma um sistema, que no caso é, necessariamente, harmônico, ordenado, coeso, por força da supremacia constitucional, que impede o intérprete de admitir qualquer contradição interna.”

Ora, se o ordenamento jurídico brasileiro é um sistema uno, completo e coerente, se a Constituição é rígida e é a lei suprema do Brasil e se o princípio da supremacia requer que todos as situações jurídicas se conformem com os ditames, princípios e preceitos da Constituição, então é necessária uma apropriada e uma conveniente fiscalização, vale dizer, um efetivo e pertinente controle, seja ele concentrado, seja ele difuso.

Talvez, em vista à análise, mesmo que perfunctória, seja essa tese (a de que, sendo um sistema, então seria permitido ao Judiciário analisar e/ou decidir acerca do dever de planejar o desenvolvimento) que prevaleça. Mas, prudentemente e sem precipitações, passa-se adiante, voltando-se a atenção ao Judiciário.

No dizer de Alexandre de Moraes (2002:1276), “O Poder Judiciário é um dos três poderes clássicos previstos pela doutrina e consagrado como poder autônomo e independente de importância crescente no Estado de Direito, pois, como afirma Sanches Viemonte, sua função não consiste somente em administrar a Justiça, sendo mais, pois seu mister é ser o verdadeiro guardião da Constituição, com a finalidade de preservar basicamente os princípios da legalidade e da igualdade, sem os quais os demais se tornariam vazios. Não se consegue conceituar um verdadeiro Estado democrático de direito sem a existência de um Poder Judiciário autônomo e independente para que exerça sua função de guardião das leis, pois, a chave do poder do judiciário se acha no conceito de independência. Assim, é preciso um órgão independente e imparcial para velar pela observância da Constituição e garantidor da ordem na estrutura governamental, mantendo em seus papéis tanto o Poder Federal como as autoridades dos Estados Federados, além de consagrar a regra de que a Constituição limita os poderes dos órgãos da soberania.”

Esclarece, o mesmo autor, que “A função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, i. é, julgar, aplicando a lei a um caso concreto, que lhe é posto, resultante de um conflito de interesses. Portanto, a função jurisdicional consiste na imposição da validade do ordenamento jurídico, de forma coativa, toda vez que houver necessidade.”

Este pensamento sintetiza com maestria o significado de Poder Judiciário e, indubitavelmente, este encerra em si um papel de vital importância. Deste modo, é consentâneo afirmar que as assertivas supra delineadas poderiam, pois, servir de parâmetro e de supedâneo para que a tese segundo a qual é facultado ao Poder Judiciário a apreciação acerca do dever de planejar o desenvolvimento fosse a ‘eleita’.

No entanto, após um juízo de ponderação pautado no princípio da proporcionalidade enunciado no início deste estudo, bem como sopesados todos os quesitos concernentes ao assunto, entende-se que deve prevalecer o comando incrustado no art. 2º da Carta.

Vislumbra-se que, num futuro talvez não muito próximo, quiçá as duas posições/fundamentações logo atrás elencadas possam emergir e sobrepairar sobre a evidente autonomia apregoada pelo já citado art. 2º. Por ora, é plausível e é coerente afirmar que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Deste modo, portanto, entende-se que não é dado ao Judiciário – pelo menos por enquanto, reitera-se – intervir em assuntos que, pela dicção do próprio Texto Magno, competem ao Executivo, sobretudo nas questões atinentes aos orçamentos, investimentos, planejamentos, etc. Tampouco, tem o Judiciário o condão de determinar e/ou obrigar que o Legislativo institua diplomas normativos, diretrizes ou normas jurídicas nesta ou naquela direção, que promovam e/ou incentivem o desenvolvimento nacional, inclusive.


Consentido ao Judiciário controlar e destinar recursos orçamentários, bem como contingenciar e limitar despesas, então o Executivo perderia, em grande parte, a sua razão de ser. Permitido ao Judiciário fixar e ordenar ao Legislativo que exerça, obrigatoriamente, sua respectiva função, da mesma maneira o trabalho deste restaria sobremaneira amesquinhado.

O próprio STF já se posicionou, como é notório nos meios jurídicos e acadêmicos, em situações análogas, no sentido de que não é admitido a ele, o próprio guardião da Constituição, deliberar a respeito de temas pertinentes aos outros Poderes. São os casos da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADINO, art. 103, § 2º), do Mandado de Injunção (art. 5º, inc. LXXI) e, especificamente, das Argüições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que versavam, uma sobre o veto de Prefeito a aumento de IPTU e outra sobre o valor do salário mínimo, conforme termos do inc. IV, do art. 7º, da Constituição. Nestas situações, basicamente e em linhas gerais, o Supremo declarou-se incompetente para determinar como outro Poder deveria agir dentro do seu competente e constitucionalmente delimitado campo de atuação.

A respeito da independência e da harmonia entre os poderes, LUIZ ALBERTO ARAÚJO (1999:228) narra que “Essas funções do Estado, depois de identificadas enquanto tais por Aristóteles, foram ao encontro do pensamento de Montesquieu, em seu célebre trabalho O espírito das leis. A grande inovação na obra de Montesquieu consistiu exatamente em demarcar que tais funções deveriam ser exercidas por órgãos distintos, estabelecendo uma divisão orgânica do Estado. A idéia subjacente a essa divisão era criar um sistema de compensações, evitando que uma só pessoa, ou um único órgão, viesse a concentrar todo o poder do Estado. […], estaria criado, portanto, o sistema de “freios e contrapesos”, pois, tais poderes – os órgãos do Estado – deveriam ter uma inter-relação harmônica, porém, cada qual mantendo o respectivo âmbito de independência e autonomia em relação aos demais.” KARL LOEWESTEIN (In MARTINS:1992, 54) mostra que “La dicotomía fundamental aquí propuesta de distribuición y concentración en el ejercicio del poder político sugiere un examen crítico de uno de los dogmas políticos más famosos que constituye el fundamento del constitucionalismo moderno: la así llamada ‘separación de poderes‘, esto es, de los ‘poderes’ legislativo, ejecutivo y judicial.”

Por fim, de acordo com ALEXANDRE DE MORAES (2001:363), “Não existirá, pois, um Estado democrático de direito, sem que haja Poderes de Estado e Instituições, independentes e harmônicos entre si. Da mesma maneira, com base nas palavras de IVES GANDRA (1990:100), é possível afirmar que “Nem o Estado é Presidente da República, nem a Democracia sobrevive se harmonicamente os três Poderes não estiverem exercendo independentemente suas funções, …”

Sendo assim, cabe aos Poderes constituídos da República desempenhar da melhor forma possível os respectivos papéis e funções atribuídos pela Constituição. Decorridos quinze anos da entrada em vigor desta que é uma das Constituições mais extensas do mundo, é dever das autoridades estabelecidas zelar pelo fiel cumprimento dos comandos constitucionais nela contidos.

Procedendo-se desta forma, como já exposto logo atrás, a possibilidade de que seja facultado ao Poder Judiciário contrastar o dever de planejar o desenvolvimento nacional, inerente ao Poder Executivo e, por extensão, ao Poder Legislativo, ficará cada vez mais distante no tempo.

Basta, apenas, que ambos – o Executivo, principalmente – ajam de maneira responsável e com estrita observância dos deveres a eles expressamente conferidos e determinados.

E que o desenvolvimento integral e irrestrito da nação brasileira não seja, tão-somente, um direito, mas, sim, uma realidade, o que, sem embargo, permitirá que o Brasil seja, na prática e como todos almejam, um verdadeiro Estado Social Democrático de Direito.

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