Judiciário em foco

"Canais de representação de interesses coletivos estão em crise."

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13 de janeiro de 2004, 13h50

Há cerca de dez anos, arrasta-se no Congresso Nacional a PEC 92 que trata da chamada reforma do Poder Judiciário. Ao longo desses anos muitas críticas têm sido feitas ao Judiciário, que vem sendo acusado de quase tudo de ruim que acontece no País — e isso acarretou uma incrível crise de legitimidade e credibilidade desse Poder perante a sociedade.

De fato, o Poder Judiciário tem graves problemas e distorções a serem urgentemente corrigidas. Todavia, como já tive oportunidade de afirmar mais de uma vez em artigos sobre o tema, também não é menos verdadeiro que a maioria dessas distorções é fruto de uma crise maior decorrente de um modelo jurídico que já não atende mais as necessidades e os clamores de uma sociedade complexa, de problemas massificados, decorrentes de uma economia globalizada que exclui do processo milhares de pessoas humildes, famintas, doentes, completamente desamparadas que perambulam pelas ruas das cidades aumentando o caldo da violência, da insegurança, do desespero.

A cultura jurídica nacional sempre foi e ainda continua em certa medida, marcada por uma forte tradição monista de evidente matiz kelseniana, ordenada através de um sistema lógico-formal de raiz liberal-burguesa, cuja produção transforma o Direito e a Justiça em manifestações estatais exclusivas. (1)

Decorrente desse extremado legalismo dogmatizado, enquanto fundamento e valor normativo hegemônico, ou, como aparato técnico oficial de controle e regulamentação, as instituições nacionais atravessam, há alguns anos, especialmente a partir do advento da Constituição de 88, que ampliou no campo formal a cidadania sem uma correspondente efetividade no campo material, uma profunda crise paradigmática (2), pois se vêem diante de novos, intrincados e contraditórios problemas que não conseguem absorver, como determinados conflitos coletivos deste início do novo milênio, a exemplo daqueles pela posse da terra, por moradia, saúde, educação, etc.

A meu sentir, a crise das instituições nacionais — e dela o Judiciário não escapou –, resulta especialmente do fato de que todo o centralismo jurídico foi montado e assim praticamente continua, para administrar conflitos de natureza individual tornando as instituições, entre elas o Judiciário, impotentes para apreciar de modo eficaz esses conflitos de dimensão coletiva, de massa, para os quais o modelo individual ainda não foi devidamente aparelhado.

Nesse quadro de legalidade formal e racional para o enfrentamento de uma realidade irracional, a estrutura do Poder tem, histórica e sistematicamente tentado minimizar e até mesmo desqualificar a importância e a relevância de todas e quaisquer manifestações normativas não-estatais, consagradoras da resolução de conflitos por meio de instâncias não-oficiais ou não reconhecidas institucionalmente.

Nesse contexto, fácil verificar que tanto o Poder Judiciário quanto a legislação por ele aplicada, refletem, especialmente entre nós, as condições materiais e os interesses político-ideológicos de uma estrutura de poder consolidada no início do século XX, no contexto de uma sociedade burguesa agrária-mercantil defensora de uma ordenação positivista e de um saber jurídico inserido na melhor tradição liberal-individualista, que continua sendo ensinado pela maioria das universidades e faculdades de direito do País — o que é lamentável, pois esse modelo está completamente esgotado.

O crescimento dos direitos transindividuais e a crescente complexidade social reclamam e clamam por novas posturas dos chamados operadores jurídicos, o que muitos deles ainda não se deram conta, pois a grande maioria limita-se a colocar a culpa na legislação sem se aperceber que a mudança de sua postura também pode contribuir e em muito, para melhor esse trágico quadro em nos encontramos.

Parece evidente que as condições do atual modelo político-econômico mundial — caracterizado por um capitalismo monopolista globalizado — marcado por contradições sociais e crises específicas de legitimidade inerentes à sociedade burguesa, pelo exaurimento do modelo clássico liberal da tripartição dos poderes e pela incontida descrença da sociedade nos mecanismos tradicionais de representação política e de resolução dos conflitos sociais, entre o modelo jurisdicional, têm levado ao aprofundamento da crise nas instituições, e o Judiciário foi afetado em cheio por ela, o que o tem desqualificado perante a sociedade, especialmente junto às pessoas mais humildes que muitas vezes não têm seque condições de entenderem qual é o verdadeiro papel desse Poder deixando-se levar por informações não verdadeiras ou distorcidas.

Anota Celso Fernandes Campilongo (3) que o “processo de institucionalização do conflito” nas sociedades avançadas apresenta sinais nítidos de exaurimento. A incapacidade de representação dos interesses coletivos pelos canais da democracia representativa e as dificuldades de defesa e garantia dos direitos sociais pelos mecanismos de adjudicação da dogmática jurídica colocam a magistratura diante de um problema sem precedentes: seu instrumento de trabalho, o direito positivo, torna-se um dos principais objetivos do conflito social.


Trocando os termos: a “institucionalização do conflito” que tinha um leito tranqüilo nos tribunais, na lei e na ordem passa a ser questionada, politizada e transformada em agitado instrumento de expansão da cidadania. Os tribunais deixam de ser a sede de resolução das contendas entre indivíduos e passam a ser uma nova arena de reconhecimento ou negação de reivindicações sociais. Ainda que os magistrados não desejem tal situação — quer por padrões de formação profissional, quer pela ruptura que a situação provoca no sistema de rotinas e procedimentos jurisdicionais — a politização que as partes (autores e réus) com freqüência e conscientemente, imprimem aos processos.

Assim, pode-se tranqüilamente afirmar que a crise do Judiciário é, antes de tudo, uma crise dos canais de representação dos interesses coletivos presentes nas democracias burguesas representativas. (4)

A ruptura com as velhas formas e práticas tradicionais de representação política, a dinâmica de expansão do exercício da cidadania coletiva e a implementação de políticas reformistas têm proporcionado nos chamados países centrais, uma espécie de rearticulação das funções do Judiciário, transformando-o em um novo centro de produção”de Direitos”.

Enquanto nos chamados paises centrais os tribunais têm sido quase sempre chamados para efetivar e reconhecer novos direitos originários dos movimentos sociais vinculados às minorias, ao desarmamento, ao meio ambiente, entre outros, na América Latina ocorre exatamente o contrário: o Judiciário enquanto instância única bucrocrática-estatal, dependente e praticamente inoperante — e no Brasil principalmente em face de um cipoal de leis confusas, contraditórias, injustas e em manifesto descompasso com a realidade decorrente de um sistema econômico globalizado e de conflitos massificados — não só é entravado pela crise que atravessa o Estado e suas instituições sociais, mas, especialmente, é acionado constantemente a responder — o que quase sempre não consegue — por conflitos de massa de natureza social e patrimonial.

Assim, a crise de identidade que atravessa o Judiciário é, acima de tudo, fruto das contradições da equivocada cultura jurídica nacional que tem como base uma racionalidade técnico-dogmática, fundada em procedimentos lógicos formais, e que, sob falsa retórica formal, infelizmente já não tem mais condições de responder e nem mesmo acompanhar o ritmo das transformações sociais e as especificidades dos conflitos coletivos, cada vez mais complexos.

É preciso, pois, romper com esse modelo para que o Judiciário deixe de ser uma instância que se não é submissa, ainda continua dependente da estrutura do poder dominante. (5) É necessário e urgente que o Judiciário se transforme em um Poder verdadeiramente atuante que além de suas funções usuais, assuma também o controle da constitucionalidade e do caráter democrático das regulações sociais. É preciso que o juiz assuma um papel verdadeiramente ativo de modo a resgatar a dimensão social da sua relevante função, o que entre nós ainda não aconteceu.

Em um Estado verdadeiramente democrático, se espera do Judiciário uma posição ativa e independente frente aos demais Poderes. O juiz não pode ser apenas a boca da lei: tem de ser a boca não só da lei, mas do Direito, da Justiça.

Precisamos nos modernizar, nos reciclar e rever posturas. É necessário que escutemos os clamores dos desvalidos, dos desempregados, dos famintos, dos velhinhos — que o atual governo covardemente os taxou de fraudadores da Previdência Social, em uma atitude imperdoável — enfim, daqueles que acorrem diariamente aos gabinetes, às salas de audiências, às secretarias dos Juízos e Varas, que se acotovelam nos corredores dos diversos órgãos do Judiciário em busca de justiça, para que sejamos capazes de proferir decisões verdadeiramente comprometidas com o sentimento de justiça da comunidade em detrimento da letra fria das normas estatais, nem sempre as legítimas.

O Judiciário não pode continuar a ser desqualificado perante a população como um Poder eqüidistante dos dramas da sociedade, especialmente daqueles mais humildes que esperam de seus juizes decisões corajosas que sejam capazes de aplicar o Direito sem deixar resquícios de injustiças.

Nesse contexto, me parece auspiciosa a noticia veiculada pela imprensa de que na pauta de convocação extraordinária do Congresso Nacional, tenha sido incluída a discussão e votação da chamada reforma do Poder Judiciário, que esperamos que seja finalmente aprovada. Todavia, a Reforma além de não enfrentar os graves problemas acima exemplificativamente elencados e são na verdade a causa das muitas queixas e críticas da sociedade contra o sistema de administração e distribuição de justiça, não é suficiente para tornar o Judiciário mais célere e democrático, simplificar os procedimentos, reduzir o escandaloso volume de recursos que eterniza as demandas, a efetividade das decisões judiciais, especialmente na fase de execução das sentenças. Além da reforma nos velhos e ultrapassados Códigos de Processo Civil e Penal e na CLT de modo a tornar mais céleres, menos formais e mais efetivas as decisões.


O processo como instrumento através do qual se encaminha e concede-se a tutela jurisdicional deve, para ser efetivo, oferecer condições ao decisor e às partes nele interessadas, para que o pronunciamento sobre o conflito concretize-se com economia, celeridade e seja verdadeiramente efetivo de tal forma que possa garantir ao vencedor aquilo que o ordenamento jurídico abstratamente previu e prometeu (6). Para isso, para alcançar esse desiderato, no campo da realidade, deve estar provido de mecanismos adequados e aptos para realizar o direito material, a ser conhecido ou que já o foi ao litigante.

Logo, não é a mera previsão legal ou constitucional suficiente para o alcance desse objetivo, evidentemente: é indispensável que o ordenamento jurídico seja adequado à realidade social, o que a evidência o sistema processual brasileiro não é, pois muitas das alterações nele introduzidas nas últimas Reformas, especialmente aquelas que foram feitas no Código de Processo Civil a partir de 1994, em que pese o mérito e o reconhecido saber jurídico de seus idealizadores, quase sempre não passaram de meros transplantes de dispositivos de Códigos de países europeus com uma realidade social totalmente diversa da brasileira, o que terminou por torná-las ineficazes no campo da realidade prática quando de sua implementação.

Assim, é preciso estar atento à nossa realidade para que as reformas que agora se anunciam sejam finalmente votadas e tenham o condão de, no campo da efetividade, serem capazes de assegurar a verdadeira justiça aos que dela têm sede.

Notas de rodapé:

(1) Antonio Carlos Wolkmer. Pluralismo Jurídico. São Paulo: Editora Alfa Omega, 2001, p. 96-97.

(2) Na visão de Thomas S. Kuhn, paradigma “é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”. In: A Estrutura das Revoluções Científicas. Tradução: Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora Persperctiva, 2000, p. 219.

(3) Magistratura, sistema jurídico e sistema político. In: José Eduardo Faria (Org.). Direito e Justiça. A função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1989, p. 118-119.

(4) Antonio Carlos Wolkmer, ob. cit. p. 98.

(5) Anota Antonio Carlos Wolkmer que “Na sua caracterização, o poder pode ser impulsionado pela força física representada pelos aparatos institucionalizados que fazem valer suas decisões ou pela legitimidade fundada no consenso, advinda da maior parte de seus integrantes. O poder, enquanto coerção que produz efeitos, resulta da força e da violência. Na perspectiva da legitimidade, o poder é aquela capacidade ou possibilidade de ação que se processa enquanto função dos valores e normas aceitáveis para a sociedade; conseqüentemente, o poder será ilegítimo quando violar os valores dominantes compartilhados e priorizados numa determinada organização política. De qualquer modo, o poder nas sociedades diversificadas ou complexas, dependendo de sua situação com relação aos “fatores efetivos de poder”, pode abranger formas legítimas e ilegítimas”. In: Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: RT, 2000, p. 77.

(6) Como conjunto de garantias constitucionais, o princípio do devido processo legal determina o procedimento adequado, vale dizer: aquele realizado com a observância do contraditório e adaptado a realidade social e a relação jurídica de direito material discutida no processo. Apresenta um duplo aspecto, pois consiste em uma garantia relativamente às partes envolvidas no conflito de interesses, assegurando o exercício de direitos públicos subjetivos e faculdades e poderes processuais, de mesma forma que corresponde, assim como o princípio da necessária motivação das decisões judiciais e princípio da publicidade do processo, a um instrumento de legitimidade do exercício da função jurisdicional.

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