Reforma à vista

"Negociação coletiva implica garantia de ação sindical livre."

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12 de janeiro de 2004, 18h23

Os clássicos diziam que o capitalismo traz em si o gérmen de sua própria destruição porque a burguesia cria o seu duplo negativo, o proletariado. Este vulto sombrio seria a marca da maldição do capitalismo, o filho trágico que irá destruir a casa paterna. Estas palavras um tanto melodramáticas soam hoje em dia, como se fossem constitutivas de um discurso “jurássico”. Uma espécie de “papo de dinossauro”.

No entanto, num exame até que superficial, é fácil perceber que o grande problema do sistema capitalista está na dupla natureza do trabalho.

Neste novo mundo, o trabalho existe num universo de caráter mercantil: é uma mercadoria cujo valor só se materializa em função do mercado.

Definindo trabalho como a aplicação das forças e capacidades humanas para produzir um fim, vemos que esta soma das habilidades de um ser humano é tratada pelo sistema como uma mercadoria, um insumo que se compra e se vende, necessário para a produção de um bem ou serviço.

Este é o lado bom (para o sistema). O lado mau é que esta “mercadoria” é feita de pessoas. Na medida em que a lei da oferta e da procura as leva ao desemprego e à miséria, elas tendem a morrer de fome e, quando podem, oferecem grande resistência a caminhar passivamente para este destino, colocando o sistema sob grande risco.

O Estado Capitalista só sobreviveu porque se abalançou a deixar de ser somente o Estado Gendarme que meramente garantia a continuidade da produção e passou a ser, também, o Estado Providência que tratava estas mercadorias como seres humanos.

O Direito do Trabalho surge para atender a esta contradição revelando o ser humano por detrás da mercadoria, intervindo nas relações de mercado para garantir que cada indivíduo tenha direito ser tratado com respeito, não trabalhar em jornadas excessivas, não ganhar menos do que um patamar mínimo, gozar de descansos semanais e anuais, um dinheirinho a mais no fim do ano, outro tanto quando é despedido sem motivo, um posto de trabalho saudável.

Não parece muito e é aquilo que uns chamam de legislação de sustento e outros até apelidam de “CLT”. Nas eufóricas fases de crescimento brasileiro, este modelo passou a ser odiado pelos trabalhadores porque a ditadura militar o usava não como um ponto de partida, mas, como um ponto de chegada. Através do uso da força, os obreiros eram obstados de obter melhores condições de trabalho através da ação sindical. Libertar os sindicatos destes grilhões e obter a livre negociação era um objetivo estratégico dos assalariados.

O mundo mudou muito desde então. O trabalhador de hoje produz vinte vezes mais do que há duas décadas atrás. É comum citar como exemplo que em 1992, um trabalhador têxtil produzia três toneladas de tecido por ano e hoje em dia, produz quinze toneladas.

A legislação de sustento (o Direito do Trabalho) que era o pacote básico que o Capital colocava como barreira para diante da qual os sindicatos não poderiam caminhar, inverteu sua polaridade. Passou a ser a barreira diante da qual o Capital não consegue fazer os trabalhadores recuarem mais.

Transformou-se num mínimo absolutamente incômodo e que tem sido combatido mediante diversos tipos de fraude. Com roupagens de falsa legalidade (cooperativas, terceirização, precarização) ou na mera força bruta (não registro em CTPS), a subtração de direitos transferiu 1,3 trilhão de reais dos trabalhadores para seus empregadores nas duas últimas décadas (vide Márcio Pochmann in Revista Época nº 284).

A liberdade sindical permitindo que houvesse o uso da greve para resistir a este processo não impediu esta catástrofe.

Da mesma forma que o Direito do Trabalho era o grande obstáculo no caminho dos empregados durante a década de setenta, nos anos atuais, tal instituição tornou-se inconveniente aos interesses econômicos do patronato.

A grande batalha do Capital para derrubar este trambolho, consiste em projetos que afirmam “manter” o que é legislado, limitando-se a permitir que a “negociação coletiva”, ou seja, o livre embate de forças, possa derrogar alguns de seus dispositivos.

A maior performance do capitalismo foi baseada em duas grandes revoluções: libertar o produtor para que ele vendesse a si mesmo no mercado, barateando o custo da mão de obra e aplicar os conhecimentos da ciência ao processo industrial, expandindo em grande escala as forças produtivas.

Durante muito tempo, ele caminhava em ciclos em que o crescimento fazia crescer o número de empregos, aumentava os salários, diminuía os lucros, desembocando numa crise, da qual se saía pagando salários mais baratos, e assim por diante.

Hoje em dia, o quadro é diferente porque o crescimento reduz a quantidade de empregos ao invés de aumentá-la. Basta pensar naquele exemplo: se um empregado têxtil produz cinco vezes mais do que antes, o que aconteceu com os outros quatro empregados utilizado originariamente para produzir a mesma quantidade?

A humanidade vive um momento mágico em que se obteve enormes ganhos de produtividade e se usa muito menos tempo para produzir até mais do que antes. Estes ganhos de tempo, todavia, não são apropriados pela humanidade mas, pelo patronato.

Ao invés de tais ganhos fazer com que todos trabalhem menos, fazem com que muitos fiquem sem trabalhar. Nas duas últimas décadas, os economistas afirmam que o Brasil obteve um ganho de produtividade à base de 8% ao ano e é esta uma das principais razões pelas quais contamos com oito milhões de desempregados.

No entanto, os mesmos economistas, afirmam que não haveria crise de emprego no Brasil se a jornada de trabalho fosse reduzida para 38 horas semanais. Seria uma socialização destes ganhos de produtividade.

Ao invés de se pensar neste tipo de caminhos, as classes dominantes pensam em remover o Direito do Trabalho que está em seu caminho e apostam na flexibilização através da perversão do sistema de negociação coletiva.

Os sindicalistas equivocados que ainda pensam o mundo como se ele fosse o mesmo da década de setenta, marcham entusiasmados com esta bandeira, conduzindo seus liderados para uma região ainda mais aflitiva do inferno em que estão mergulhados.

Toda a confusão sobre o tema poderia ser clareada se voltássemos aos velhos tempos das conversas de dinossauros. No sistema capitalista, o trabalho é uma mercadoria cujo preço é quantificado pelo mercado, ou seja, pela lei da oferta e da procura.

Num país em que a indústria consegue produzir hoje em dia, cerca de vinte vezes mais do que há duas décadas atrás, com a mesma quantidade de homens-hora, é bem claro que, deixando as coisas por conta da lei da oferta e da procura, o trabalhador está perdido e somente a intervenção estatal neste mercado é que pode virar o jogo nesta fase dramática.

Idéias como a redução da jornada de trabalho ou da criação de um fundo nacional do trabalho solidário é que são as grandes oportunidades de saída.

O problema do emprego, portanto, precisa ser atacado sem atacar a legislação de sustento. E se quiserem a reforma da legislação relativa à negociação coletiva, é preciso vê-la sob outro ângulo, imaginando como é possível fortalecer a ação sindical para que esta possa ajudar a manter os direitos existentes e ampliar em direção a novas conquistas.

Nesta linha, as medidas pensáveis poderiam assentar em algumas sugestões:

1- garantir a continuidade da vigência dos contratos coletivos até que advenha uma nova norma, hipótese que obrigaria ambas as partes a negociar sob pena de ficarem “empacadas” na norma anterior;

2- garantir o direito à informação sobre a situação da empresa e não dados gerais sobre negociações;

3- adoção do sistema francês de constituir em cada empresa um delegado nomeado pelo sindicato e um representante eleito pelos trabalhadores;

4- proibição e apenamento das práticas negociais desleais e atos anti-sindicais;

5- manutenção do poder normativo da justiça do trabalho como instrumental de arbitramento estatal, vedada a concessão de efeito suspensivo;

6- criação de uma lei de regulação das demissões em massa, exigindo a prévia negociação com o sindicato, como propõe a convenção 158;

7- promulgação de legislação regulamentando os incisos XX (proteção do mercado de trabalho) e XXVII (proteção contra a automação) do artigo 7º da CF-88 que até hoje esperam o beijo do príncipe encantado para acordar de seu sono de 15 anos;

8- repúdio à idéia de que é possível criação de empregos através de políticas públicas centradas em retoques no Direito do Trabalho.

Os projetos que vem sendo desenhados em locais soturnos como o Fórum Nacional do Trabalho ou nos porões ministeriais, desprezam o referencial que nos parece mais importante: negociação coletiva é a ação sindical e qualquer reforma tem que ser pensada com o objetivo de potencializar tal ação.

Falar num “sistema ágil que favoreça o equilíbrio de forças e dê segurança jurídica para os dois grupos” é um discurso de deixar os dinossauros com urticária.

Parte do pressuposto de que os dois grupos são fraternos parceiros que dispõem das mesmas forças e querem firmar um tratado de paz. Não é verdade. São dois grupos inimigos disputando duramente uma maior participação na renda num cenário de imenso desequilíbrio de forças em favor do Capital.

Então, a reforma tem de ser pensada em termos de compensar este desequilíbrio, caso contrário, vai cair na vala comum dos projetos de país que vimos desenrolando nos últimos cinqüenta anos sem alterar em nada a desigualdade de renda.

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