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Decreto de Lula amplia reserva de mercado para cinema nacional

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7 de janeiro de 2004, 9h13

No dia 30 de dezembro de 2003, o presidente Lula assinou o Decreto 4.945, fixando um número certo de dias para a exibição de obras cinematográficas de origem brasileira durante o ano de 2004 e dando algumas outras providências. Seu artigo 1º, adiante transcrito, define quantos dias por ano, no mínimo, cada sala de exibição deverá exibir obras cinematográficas inteiramente produzidas no Brasil:

Decreto 4.945 de 30/12/2003

Art. 1º – O número de dias nos quais as empresas proprietárias, locatárias ou arrendatárias de salas, espaços ou locais de exibição pública comercial exibirão obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem no ano de 2004 é fixado em sessenta e três dias por sala, espaço, ou local de exibição geminados ou não, localizados em um mesmo complexo e pertencentes à mesma empresa, segundo consta de seu registro na Agência Nacional do Cinema — ANCINE, realizado conforme o art. 22 da Medida Provisória nº 2.228-1, de 06 de setembro de 2001.

A medida terá reflexos na Agência Nacional de Cinema (Ancine), criada em 2001 pelo presidente Fernando Henrique. A Agência terá papel importante na identificação das empresas exibidoras, mas mesmo depois de dois anos de existência, ainda remanesce trôpega em sua missão de promover a auto-sustentabilidade da indústria cinematográfica nacional e o aumento da produção e exibição das obras cinematográficas brasileiras.

À semelhança da França, que há alguns anos instituiu legislação substancialmente mais rígida, que abrangeu as emissoras de rádio, televisão e até os letreiros, cartazes e outdoors urbanos, o decreto certamente será visto com bons olhos pela classe cinematográfica brasileira. Vale destacar, porém, que ao coro patriótico de aplauso à nova lei certamente se seguirá a reclamação tradicional dos estúdios e produtores internacionais (especialmente os americanos), mas, também, o da classe dos exibidores.

Tomemos como exemplo um local de exibição “geminado”, para usar o termo empregado no artigo 1º do decreto, que identifica as instalações do tipo multiplex, como as operadas pela empresa Cinemark e Severiano Ribeiro em todo o país. Local “geminado” consiste em diversas salas de exibição conjugadas, geralmente próximas ou dentro de um shopping centers, maximizando a exposição dos produtos para os consumidores que constituem o tráfego regular das lojas ali instaladas.

É fato que os exibidores, como qualquer outra categoria em atividade na economia, visam prioritariamente o lucro em sua atividade. Isto pode ser facilmente constatado quando um complexo como o New York City Center, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, da empresa UCI, que possui 16 salas de exibição, em recente lançamento do novo filme do personagem inglês Harry Potter, ostentava nada menos do que oito salas com o mesmo filme.

Impor ao exibidor, que investiu somas consideráveis na modernização desencadeada no Brasil com a adoção do conceito americano das cadeias multiplex é, no mínimo, uma intrusão indesejada no livre mercado. Não custa lembrar que a instalação dessas salas mais modernas foi um contra-ataque ao avanço do home vídeo, que nas duas últimas décadas instalou os cinéfilos confortavelmente nas poltronas de suas casas com substancial queda de freqüência aos cinemas. A equação do lucro em função do investimento é uma premissa fundamental da economia capitalista e, certamente, os exibidores farão de tudo para tentar burlar ou bypassar o dispositivo promulgado pelo Governo.

Se a Lei do Audiovisual, de 1993, que ora completa sua primeira década de vida, levou justamente isso — dez anos — para revelar o primeiro resultado digno de menção na indústria cinematográfica nacional (cresceu 320% em 2003), ainda estamos por ver o que a Ancine e o recém-criado mecanismo dos Funcines (Fundos de Investimento do Cinema abalizados pela CVM) podem fazer para manter esse crescimento e, afinal, deixarem o cinema brasileiro voar livre pelas retinas dos espectadores, com a correspondente contrapartida de bilheteria.

O crescimento do cinema em 2003 ainda é muito inferior ao que realmente necessita a indústria local. O market share de quase 20% alcançado no ano passado, certamente contrasta vivamente com os cerca de 8% de que desfrutávamos em 2002, mas ainda dista estratosfericamente dos mais de 40% da indústria estrangeira, predominantemente norte-americana. O Brasil possui menos de 1.500 salas de exibição — muito pouco para uma nação de dimensões continentais. Existem cidades que não têm sequer uma sala de exibição, mas possuem mais de 30 mil habitantes.

É certo que as recentes nomeações para o Oscar de melhor filme estrangeiro e os sucessos de “Cidade de Deus” e “Carandiru”, para citar apenas dois dos excelentes filmes brasileiros contemporâneos, são elementos estimulantes para a definitiva consolidação do setor depois de escândalos como “Chatô” e “O Guarani”.

O Estado, contudo, não pode ficar eternamente apadrinhando um mercado dinâmico e multiplamente variado como o cinema, que não pode depender de publicação de decisões no Diário Oficial nem da reunião plenária das estatais para definir o orçamento de um filme. A própria Ancine se tornará, esperamos, em algum momento do futuro, um organismo obsoleto e desnecessário, quando o cinema nacional adquirir asas sólidas e longas o bastante para alçar vôo por suas próprias penas, criando e solidificando mecanismos econômicos de alavancagem e viabilização das produções nacionais.

Recebemos com extrema simpatia, mas alguma reserva o decreto 4.945/2003, na esperança de que a Ancine e os órgãos competentes cumpram seu papel fiscalizador e os exibidores, ciosos da importância de seu lucro mas empenhados em transformar também os filmes brasileiros em blockbusters (campeões de bilheteria), abram o necessário espaço às obras nacionais, na certeza de que a cultura é a carteira de identidade de um país, a forma de projetar seus usos e costumes em escala global, de que tanto o Brasil precisa neste momento em que o processo de globalização econômica começa a excluir aqueles que não se “antenaram” com a modernidade.

Leia a íntegra do decreto:

DECRETO Nº 4.945, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2003.

Fixa o número de dias para a exibição de obras audiovisuais cinematográficas brasileiras no ano de 2004 e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 55 da Medida Provisória no 2.228-1, de 6 de setembro de 2001,

DECRETA:

Art. 1o O número de dias nos quais as empresas proprietárias, locatárias ou arrendatárias de salas, espaços ou locais de exibição pública comercial exibirão obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem no ano de 2004 é fixado em sessenta e três dias por sala, espaço, ou local de exibição geminados ou não, localizados em um mesmo complexo e pertencentes à mesma empresa, segundo consta de seu registro na Agência Nacional do Cinema – ANCINE, realizado conforme o art. 22 da Medida Provisória no 2.228-1, de 6 de setembro de 2001.

Parágrafo único. A exibição do total de dias fixado no caput deverá ocorrer proporcionalmente no semestre, podendo o exibidor antecipar a programação do semestre seguinte, sendo-lhe vedado o inverso, conforme determina o § 1o do art. 55 da Medida Provisória no 2.228-1, de 2001.

Art. 2o A empresa responsável pelo cumprimento da obrigatoriedade disposta no art. 1o poderá solicitar previamente a ANCINE a transferência parcial do número de dias de obrigatoriedade a ser exibido em um determinado complexo de salas para outro, desde que as salas estejam registradas em nome da mesma empresa e sejam obedecidos índices, prazos, parâmetros e condições dispostos em instrução expedida pela ANCINE.

Parágrafo único. A solicitação para a transferência prevista no caput somente será autorizada pela ANCINE para cada semestre e quando formulada previamente.

Art. 3o As empresas proprietárias, locatárias ou arrendatárias de salas, espaços ou locais de exibição pública comercial apresentarão semestralmente à ANCINE, nos termos do § 2o do art. 55 da Medida Provisória no 2.228-1, de 2001, as informações relativas ao cumprimento do disposto no art. 1o deste Decreto.

Art. 4o O não-cumprimento da obrigatoriedade de que trata este Decreto, aferido pela ANCINE, sujeitará o infrator à multa prevista no art. 59 da Medida Provisória no 2.228-1, de 2001, correspondente a cinco por cento da renda média diária de bilheteria, apurada no semestre anterior à infração, multiplicada pelo número de dias em que a obrigatoriedade não foi cumprida.

Parágrafo único. A ANCINE aplicará a penalidade prevista no caput mediante processo administrativo, assegurados o contraditório e a ampla defesa.

Art. 5o A ANCINE, visando promover a auto-sustentabilidade da indústria cinematográfica nacional e o aumento da produção e da exibição das obras cinematográficas brasileiras, regulará as atividades de fomento e proteção à indústria cinematográfica nacional, podendo dispor sobre a quantidade mínima de títulos a serem exibidos nos dias determinados pelo art. 1o e o período de sua permanência, em função dos resultados obtidos.

Art. 6o A ANCINE procederá a todos os demais atos administrativos necessários ao cumprimento deste Decreto.

Art. 7o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 30 de dezembro de 2003; 182º da Independência e 115º da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Gilberto Gil

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