Liberdade feminina

"É importante desestimular o uso de véu pelas muçulmanas."

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6 de janeiro de 2004, 9h35

A imprensa brasileira vem noticiando o intenso debate que se instalou na França a respeito do uso do véu muçulmano por alunas das escolas públicas daquele país. De acordo com uma decisão da Justiça, em 1989, véus e outros símbolos religiosos são permitidos nas escolas do Estado, desde que não sejam “invasivos”. Em razão da ampla interpretação que a palavra “invasivo” permite, vários conflitos ocorreram entre pais de alunas e diretores de escolas, havendo notícias de algumas expulsões em virtude da insistência no uso do véu.

A discussão a respeito dos limites das determinações religiosas é de interesse geral e deve ser acompanhada pelos demais países laicos em todo o mundo, dentre os quais se insere o Brasil. Trata-se de uma polêmica que, mais cedo ou mais tarde, pode ocorrer entre nós.

De acordo com dados estimativos, existem na França cinco milhões de muçulmanos, a maior comunidade islâmica da Europa. No entanto, além da França, outros países do velho continente, como Alemanha, Espanha, Portugal e Inglaterra, possuem significativa presença muçulmana, decorrente de imigrações. Essas populações resistem tenazmente a assimilar os valores ocidentais, isolando-se em suas comunidades. Não falta quem atribua aos europeus a incapacidade de acolher, sem preconceito, os imigrantes, mas a intolerância maior parece não ser dos países hospedeiros.

Escudadas em princípios religiosos, as comunidades muçulmanas impõem às mulheres regras extremamente opressivas. Impedem-nas de mostrar qualquer parte do corpo, inclusive o cabelo, por vezes chegando ao absurdo de obrigá-las a cobrir o rosto todo com o uso da burca, mesmo que com isso elas tenham dificuldades para enxergar, respirar ou falar.

O tal “véu” não é peça ornamental, tampouco é estritamente religioso. É um “uniforme” feminino, que estigmatiza a mulher.

Por essa razão, a revista “Elle” francesa divulgou um apelo ao presidente Jacques Chirac, assinado por mais de 60 mulheres de destaque, para que apresente projeto de lei proibindo o uso de véu por meninas muçulmanas nas escolas, tendo em vista tratar-se de “um símbolo visível da submissão da mulher”. As atrizes Isabelle Adjani e Isabelle Huppert, a designer de moda Sonia Rykiel, dentre outras, assinaram o manifesto.

Uma pesquisa de opinião sobre o assunto foi divulgada recentemente, tendo-se apurado que 57% dos franceses apóiam a proibição do uso do véu em escolas e repartições públicas. Por outro lado, setores das igrejas Católica, Protestante e Ortodoxa opuseram-se à proibição, temendo restrições que possam, eventualmente, afetá-los também.

O Brasil, assim como a França, é um Estado em que todas as religiões são permitidas e respeitadas, sendo que o poder político não está vinculado a nenhuma delas. É o que nos assegura a Constituição de 1988. Nossa Carta Magna, em seu art. 5º, inciso VIIII, estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. O dispositivo, criado para evitar discriminações em razão de credo, é de ser aplicado, também, para evitar violações de direitos trazidas pelas próprias religiões aos seus seguidores.

Isso significa que não se pode confundir convicção pessoal com opressão; opção religiosa com imposição de subalternidade. Os usos e costumes de determinados grupos sociais, durante muito tempo, foram utilizados para justificar numerosas formas de privar as mulheres de seus direitos fundamentais. Hoje, essas distorções encontram-se desmascaradas internacionalmente. Tanto as alegações fundamentadas em princípios religiosos quanto as calcadas em hábitos culturais não podem ser admitidas quando se prestarem a restringir ou eliminar direitos.

A polêmica que se iniciou na França com relação ao uso do véu islâmico demonstra que chegou o momento de rever princípios e dogmas religiosos usados para tolher as liberdades democráticas de seus seguidores. O véu imposto às muçulmanas tem por objetivo impedir que as mulheres se manifestem livremente, como seres humanos. Além disso, significa que a sexualidade feminina é proibida e “pecaminosa”. Ao contrário do que novelas de televisão andaram mostrando, não há glamour no uso do véu, mas opressão física e intelectual. Por essa razão, é importante desestimular o seu uso. Não se trata, como já se argumentou, de associar islamismo com terrorismo, que deve ser extirpado. O problema do véu está essencialmente ligado ao horror às manifestações do feminino.

No entanto, talvez a melhor forma de diminuir a adesão ao véu não seja a proibição legal nem a expulsão da escola de meninas que entendam necessário adotar a vestimenta de seus ancestrais. A proibição de cobrir a cabeça e o corpo tornaria o lamentável véu um símbolo da resistência cultural e religiosa de uma população já segregada, em terra estrangeira. Surtiria, assim, o efeito oposto ao desejado.

Fortalecer as mulheres, criando para elas mecanismos de auto-defesa e a possibilidade de outra opção de vida, pode ser a melhor saída para esse impasse.

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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