Limite discutível

"Até que ponto incumbe ao Judiciário tomar decisões políticas?"

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6 de janeiro de 2004, 18h44

Recente decisão oriunda da Seção Judiciária do Mato Grosso do Sul ganhou as páginas dos principais jornais brasileiros ao determinar que, no prazo máximo de dez dias, a União, através do Departamento de Polícia Federal, passasse a colher digitais e fotos de todos os norte-americanos que adentrassem em solo brasileiro. O ilustre Juiz Federal atendeu, assim, ao requerido pelo Ministério Público Federal, em medida cautelar inominada preparatória de ação civil pública, fundamentando-se no princípio da reciprocidade.

Não há como negar que a decisão foi bastante polêmica, causando bastante surpresa e perplexidade. Afinal, no Brasil, sempre perdurou a imagem do magistrado passivo, alheio a decisões que tivessem conotação excessivamente política. A decisão, ao contrário, adotou tom bastante crítico das medidas adotadas pelo governo norte-americano taxando-as de “absolutamente brutal, atentatório aos direitos humanos, violador da dignidade humana, xenófobo e digno dos piores horrores patrocinados pelos nazistas”. A decisão foi tão polêmica que chamou a atenção de telejornais internacionais como a BBC e a CNN.

Como fundamento de sua decisão, o ilustre Juiz invocou o princípio da reciprocidade, “garantidor do que o mesmo tratamento dado por um Estado à determinada questão também será concretizado por outro País afetado pela decisão do primeiro. Significa dizer que a relação internacional entre países não pode se realizar de forma desigual, principalmente em se tratando de princípios norteados da dignidade da pessoa humana e de proteção e resguardo dos direitos humanos”.

A grande questão que deve ser posta atualmente é até que ponto incumbe ao Poder Judiciário tomar decisões carregadas com cores tão políticas como esta. Até que ponto os magistrados possuem legitimidade popular para estabelecer que determinada retaliação deva ou não ser adotada?

“Não podemos esquecer que nem mesmo a Organização Mundial do Comércio, quando julga um painel versando sobre subsídios internacionais, não determina que o país deva obrigatoriamente retaliar, ao contrário, apenas autoriza. A decisão de retaliar ou não cabe ao dirigente político de cada país.”

Sem dúvida alguma parte do equívoco, tanto do Ministério Público quanto do Judiciário, foi motivado pela ojeriza que a sociedade brasileira possui pela identificação criminal, tida como humilhante e constrangedora. Daí o motivo pelo qual o constituinte brasileiro ter estabelecido o comando normativo, segundo o qual “o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal” (art. 5°, LVIII, CF).

Todavia, cumpre salientar que a decisão norte-americana de colher as digitais e fotografar aqueles que adentram no país com visto nada tem a ver com identificação criminal. Esta ocorre somente nos casos em que um delito é atribuído a uma pessoa, passando-se a individualizá-la através das digitais dos dez dedos, cor de pele, altura, etc por algum policial.

O processo de colheita das digitais e fotografia do sistema norte-americano é eletrônico e tem por fim muito mais a identificação para fins de controle de entrada e saída de cada indivíduo do que a identificação para fins criminais. Trata-se, portanto, de uma identificação civil e não criminal, assemelhando-se ao fato de deixarmos as nossas digitais quando vamos retirar o documento de identidade.

É claro que, numa cultura tão antiamericana como a nossa, qualquer medida que somente inclua países subdesenvolvidos neste controle é visto com maus olhos, contudo, não podemos perder de vista que o que ocorreu de fato foi somente a informatização do controle de entrada e de saída de estrangeiros que necessitam de visto para ingressar aos Estados Unidos.

A decisão do ilustre magistrado ocorreu de tal forma que a União não pôde organizar arquivos, comprar equipamentos, enfim, criar o ambiente para que o controle efetivo dos estrangeiros pudesse de fato ocorrer. Causou, ainda, constrangimento internacional, pois restou difícil justificar para o mundo o porquê dos juizes tomarem as decisões políticas, ao invés do Congresso ou do Presidente da República.

Talvez seja a hora de trabalharmos mais para que o Ministério Público e o Judiciário se tornem cada vez mais órgãos defensores da democracia, ao invés de titulares desta.

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