Roda viva

É cruel não termos controle algum sobre a passagem do tempo

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5 de janeiro de 2004, 8h26

Ao final da cada ano, temos a impressão de que o tempo passou mais depressa do que nunca, de que perdemos oportunidades que não retornarão, de que precisamos correr muito mais para chegar onde queremos. A mudança anual no calendário simboliza um período da vida que se encerra, para dar lugar a novo ciclo, com os mesmos dias dos mesmos meses de primavera, verão, outono e inverno, e que todos desejamos que seja mais feliz do que aquele que passou. Nosso corpo e nossa mente habituam-se com essa repetição e tanto melhor viveremos quanto melhor soubermos respeitar e acompanhar as determinações da natureza. Mas a pergunta inevitável é: até quando?

É cruel não termos controle algum sobre a passagem do tempo. Há momentos tão bons que gostaríamos de congelá-los, impedindo que terminassem, mas esses são justamente os que mais rapidamente se escoam pela nossa ampulheta mental. E o passado é irrecuperável. Por isso, o sucesso da fotografia. É o que resta dos acontecimentos que o tempo nos rouba. O retrato do que perdemos é sempre um consolo…

A voz de Milton Nascimento canta lindamente o poema de Fernando Brant, na música Outubro, dizendo: “tanta gente no meu rumo/mas eu sempre vou só/nessa terra desse jeito/já não sei viver/deixo tudo, deixo nada/só do tempo, eu não posso me livrar/ele corre para ter meu dia de morrer”. Sim, o tempo é nosso veículo para a morte. E não podemos saltar dele.

Por isso, não deveríamos, nunca, reclamar de envelhecer. As rugas, os cabelos brancos, as manchas de pele, as pequenas e grandes alterações orgânicas significam, apenas, que estamos vencendo etapas e que o tempo ainda não levou o que temos de mais precioso — a vida.

O capitalismo inventou que “tempo é dinheiro”. Benjamin Franklin escreveu, em 1736, que “aquele que pode ganhar dez xelins por dia por seu trabalho e vai passear ou fica vadiando metade do dia, embora não despenda mais do que seis pences durante o seu divertimento ou sua vadiação, não deve computar apenas essa despesa; gastou, na realidade, ou jogou fora, cinco xelins a mais”.

Hoje, a concepção tempo/dinheiro mudou um pouco, na medida em que aprendemos a dar valor ao lazer, ao relaxamento e à saúde mental, evitando transformar a vida em um inferno consumista, mas é interessante notar como a economia também depende das horas do dia.

A limitada inteligência humana ainda não desvendou a verdade sobre o tempo. Sabemos, porém, que ele é real, é científico, é perceptível através das alterações que produz nos seres vivos e nas coisas. Para os mais jovens, os anos demoram mais a passar, para os mais velhos é o contrário, pois a luta de quem tem mais idade é sempre contra o tempo. De toda a forma, essa noção abstrata, intocável e misteriosa faz toda a diferença.

Viajar no tempo, ir ao futuro ou voltar ao passado, ainda não está ao nosso alcance, embora haja pessoas com o poder de se deslocar mentalmente e prever o que ainda vai acontecer, ou desvendar um mistério passado, através de fenômenos que chamamos de paranormais. No entanto, mesmo quem tem faculdades especiais, não controla seus poderes. Não é verdade que se possa prever o futuro por encomenda; as consultas a videntes costumam ser puro engodo.

As pessoas não viajam no tempo quando e para onde querem. O fato ocorre, mas por obra e graça de algo que não conhecemos e que se relaciona com estados emocionais, não com a vontade do indivíduo.

O poeta Cazuza, que infelizmente morreu cedo, disse em uma de suas músicas que “o tempo não pára”, definindo em poucas palavras a essência de nossas angústias. O filósofo latino Sêneca, em sua obra “Sobre a brevidade da vida”, afirmou que “constrangidos pela fatalidade, sentimos que a vida já passou por nós sem que tivéssemos percebido”. Sim, é esta a sensação. Mas, o que fazer?

O poeta libanês Gibran Khalil Gibran, no livro O profeta, ao falar sobre o tempo, diz: “Aquilo que canta e medita em vós continua a morar dentro daquele primeiro momento em que as estrelas foram semeadas no espaço. Quem, dentre vós, não sente que seu poder de amar é ilimitado? E, porém, quem não sente esse amor, embora ilimitado, circunscrito dentro do seu próprio ser e não se movendo de um pensamento amoroso a outro, de uma ação amorosa a outra? E não é o tempo, exatamente como o amor, indivisível e insondável?”

O tempo é, realmente, um mistério que estamos longe de decifrar. Mas podemos tentar evitar que soframos por ele. Melhor é aproveitar cada ano, cada mês, cada dia, cada hora, espectadores que somos dos movimentos da Terra em torno do Sol. E torcer para que o ano novo seja, como todos, mais um maravilhoso fenômeno da vida.

Que 2004 nos ajude a compreender melhor o universo dentro do qual nos debatemos.

Autores

  • Brave

    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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