Primeiro tempo

Veja não precisa indenizar funcionários da Câmara em R$ 900 mil

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20 de fevereiro de 2004, 17h24

A Editora Abril e os jornalistas Alessandro Duarte, Lúcia Monteiro e Otávio Canecchio não precisam indenizar funcionários da Câmara Municipal de São Paulo por danos morais. A decisão é do juiz da 11ª Vara Cível, Alexandre Batista Alves. Ainda cabe recurso.

Os funcionários Maria Alice Figueiredo, Marcella Falbo Giacaglia, Antonio Rodrigues de Freitas Júnior, Raimundo Batista, Breno Gandelman e Yara Darcy Police Monteiro (aposentada) alegaram que se sentiram ofendidos com a reportagem de capa intitulada “Os supersalários da Câmara Municipal”, de julho de 2003. Cada um pediu indenização de, no mínimo, R$ 150 mil. Os valores somados chegam a R$ 900 mil.

Os funcionários também pediram a publicação da íntegra da sentença na Veja São Paulo, onde saiu a reportagem. Argumentaram que a revista publicou notícia falsa porque atribuiu salários acima dos recebidos aos funcionários. Argumentaram, ainda, que houve uso indevido de imagem.

A Editora Abril foi representada pelo advogado Alexandre Fidalgo, do escritório Lourival J. Santos Advogados. Ele alegou que a reportagem veiculada é de interesse público e pretendeu mostrar para a sociedade que o orçamento da Câmara Municipal de São Paulo está comprometido em 70% com o pagamento de altos salários a funcionários.

O juiz entendeu que não houve “exercício abusivo da liberdade de imprensa”. Segundo ele, “cotejando os dados extraídos do referido documento, notadamente o total dos vencimentos dos funcionários, com aqueles divulgados na matéria jornalística questionada, verifica-se que não houve a divulgação de notícia falsa”.

A revista Consultor Jurídico procurou o escritório Bottallo e Gennari Advogados — que representa os funcionários da Câmara. A advogada Elizabeth Vicentino Gennari se limitou a opinar contra a publicação da notícia. Também informou que vai notificar a revista ConJur porque a publicação “prejudica os clientes”.

Processo nº 000.03.126871-4

Leia a decisão:

Vistos. MARIA ALICE FIGUEIREDO, YARA DARCY POLICE MONTEIRO, MARCELLA FALBO GIACAGLIA, ANTONIO RODRIGUES DE FREITAS JÚNIOR, RAIMUNDO BATISTA, BRENO GANDELMAN moveram ação de indenização por danos morais contra EDITORA ABRIL S/A, ALESSANDRO DUARTE, LÚCIA MONTEIRO e OTÁVIO CANECCHIO alegando, em resumo, que: a) em 09 de julho de 2003, a primeira co-ré fez circular a revista semanal VEJA SÃO PAULO com a seguinte matéria de capa: “Os SUPERSALÁRIOS DA CÂMARA MUNICIPAL- Há funcionário com salário de R$48.000,00 – Quinze aposentados ganham mais de R$30.000,00- Para servir aos vereadores, um engraxate recebe R$2652”; b) a matéria jornalística lista os nomes de vinte funcionários da Câmara, dentre os quais os autores, atribuindo-lhes os maiores rendimentos, além do que faz uso indevido da imagem do co-autor Breno Gandelmam; c) as informações publicadas na sobredita revista são falsas, na medida em que os réus incluíram no cálculo do valor bruto do salário dos autores o montante que corresponde ao excedente ao teto de R$ 6.000,00 e divulgaram o valor equivocado do salário bruto; d) quando a notícia foi veiculada, a Câmara já havia aprovado lei que extinguiu a chamada verba honorária; e) a menção aos nomes dos autores, relacionando-os à informação falsa, gera o direito à reparação por danos morais; f) os autores são funcionários admitidos por concurso, exercem atividades acadêmicas, publicam livros em jornais e revistas especializadas.

Por essas razões, pleitearam indenização por danos morais em valor não inferior a R$ 150.000,00 para cada autor e a condenação da co-ré Editora Abril S/A a publicar a sentença de procedência na mesma revista VEJA SÃO PAULO, com o mesmo destaque dado à matéria que motivou esta ação. A petição inicial veio instruída com documentos (fls.20/42).

Citados, os réus contestaram (fls. 80/108) e ponderaram que: a) a matéria veiculada reveste-se de inegável interesse público, porquanto se pretendeu mostrar à sociedade as razões pelas quais o orçamento da Câmara Municipal de São Paulo está comprometido em 70% com o pagamento de altos salários a funcionários; b) os salários brutos dos funcionários não foram falsamente inflacionados, tampouco erroneamente publicados, além do que, para a finalidade pretendida da matéria, a divulgação dos salários dos funcionários da Câmara só se justificaria se apresentados no valor bruto, como ocorreu; c) a revista teve acesso ao banco de dados que gera a folha de pagamento dos servidores da Câmara Municipal e lá constatou que os valores brutos dos vencimentos são exatamente os que foram divulgados na matéria em voga; d) é retirado do orçamento público o valor bruto dos salários e não o líquido, é dizer, o Município contabiliza como gasto de folha de pagamento o valor bruto dos salários pagos, exatamente o que focalizou a matéria; e) o mote da reportagem não é atingir os servidores públicos, mas mostrar a questão do comprometimento do orçamento da Casal Legislativa com a folha de pagamento, tanto assim que também se noticiou a propositura de ações judiciais com decisões favoráveis a eles; f) o co-autor Breno disse exatamente o que os réus publicaram, conforme entrevista gravada; g) não houve uso indevido de imagem, uma vez que o co-autor Bruno foi fotografado em uma das sessões do plenário em que participa como assessor legislativo, isto é, em ambiente público; h) agiram autorizados pela Constituição Federal e pela Lei de Imprensa, que asseguram a manifestação crítica e a revelação de fatos de interesse público; i) ainda que fosse cabível alguma indenização aos autores, deve-se observar os parâmetros indenizatórios fixados na Lei de Imprensa. A defesa veio acompanhada de documentos (fls. 109/141).


Sobreveio réplica (fls. 143/158). Por fim, os autores especificaram provas, ao passo que os réus pediram o julgamento antecipado da lide. É o relatório. Fundamento e Decido. A matéria debatida nos autos é somente de direito e de fato documentalmente comprovável, autorizando o julgamento antecipado da lide, nos termos do que dispõe o artigo 330, I, do Código de Processo Civil.

Pretendem os autores obter indenização por danos morais, à argumentação de que: a) a Editora Abril veiculou notícia falsa, na medida em que lhes atribuiu salários acima dos realmente recebidos, incluindo indevidamente no cálculo do valor bruto o montante que corresponde ao excedente ao teto de R$ 6.000,00 e a verba honorária, esta extinta por lei promulgada antes da publicação da matéria jornalística (Lei 13.576, de 13 de maio de 2003); b) houve uso indevido da imagem, pois os jornalistas abordaram alguns funcionários da Câmara Municipal e, sem esclarecer o conteúdo da reportagem que preparavam, solicitaram autorização para tirar fotos deles. Não se desconhece que a coexistência da livre manifestação do pensamento e de informação com a incolumidade de outros direitos, sobretudo com aqueles que integram os direitos da personalidade (honra, imagem, intimidade, vida privada etc), é processo difícil, havendo inevitáveis conflitos. Hipóteses há em que o interesse do indivíduo deve ceder espaço ao interesse público.

Segundo ensina Gilberto Haddad Jabur: “O interesse público inequívoco deve ser o termômetro da imprensa. Só há interesse público genuíno quando a informação, pressupondo a verdade de seu conteúdo, é necessária, ou relevante à sociedade, útil, qualidade que indica o efetivo proveito profissional, político, cultural, artístico, científico, desportivo, ou para o lazer sadio da informação. Deve, além disso, ser veiculada de maneira adequada, sinônimo de harmonização entre a natureza e o conteúdo da informação e local, espaço, amplitude e destaque que a ela se pretende destinar” (Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada, Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 367). Também a propósito é precisa a lição de Freitas Nobre: “A liberdade ilimitada, distanciada do interesse social e do bem comum não é conciliável no mundo contemporâneo, porque se o pensamento é inviolável e livre, a sua exteriorização deve ser limitada pelo interesse coletivo, condicionado seu exercício ao destino do patrimônio moral da sociedade, do Estado e dos próprios indivíduos” (Comentários à lei de imprensa 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 6).

Portanto, a livre manifestação das idéias haverá de ser pautada pela veracidade e pelo interesse público, de modo que cabe ao informador ser diligente e cauteloso na colheita de dados, servindo-se de fontes de informação válidas e seguras. Feitas essas considerações iniciais, passa-se à análise do caso posto em debate. Em que pesem os argumentos expendidos pelos autores, à vista da matéria veiculada na revista Veja São Paulo, não se vislumbra exercício abusivo da liberdade de imprensa. Com efeito, os réus, valendo-se de documento do Sistema de Gestão Integrada de Pessoal da Câmara Municipal de São Paulo, obtiveram informações relativas à folha de pagamento do mês de maio de 2003, emitida em 05.06.2003 (fls. 110/114).

Cotejando os dados extraídos do referido documento, notadamente o total dos vencimentos dos funcionários, com aqueles divulgados na matéria jornalística questionada, verifica-se que não houve a divulgação de notícia falsa. É certo que os holerites juntados a fls. 28/34 apresentam valores inferiores aos exibidos na matéria. Não é menos correto, porém, que o total do bruto do vencimento, para efeito de demonstração no contra-cheque, deduz do campo “vencimento” o valor relativo ao que se denomina artigo 37, inc. XI Constit., apontado no código 570. Como explicitou o patrono dos réus, “ou seja, da coluna de vencimentos há uma dedução que corresponde à rubrica acima, quando na verdade todos os valores deduzidos deveriam constar na coluna de descontos. Aritmeticamente não há nenhuma alteração, pois o valor contabilizado no orçamento da Câmara contempla o código 570 do contra-cheque como despesa e, portanto, de forte impacto nas contas públicas” (fls. 86).

As questões concernentes ao valor excedente do artigo 37, IX, da CF, que foi considerado no salário bruto dos servidores públicos, e às verbas honorárias, foram também bem esclarecidas pelos réus em contestação, valendo salientar que não se omitiu a existência de ações judiciais promovidas pelos servidores públicos questionando esses pontos.

Em realidade, os jornalistas e a editora visaram realçar os elevadíssimos salários de alguns funcionários da Câmara Municipal de São Paulo em comparação com os defasados salários recebidos pela imensa maioria dos servidores deste país, bem como apontar o comprometimento de 70% do orçamento do poder legislativo municipal com a folha de pagamento. Os temas tratados na matéria são palpitantes e revestem-se de inegável interesse público, sobretudo no momento em que o Estado Brasileiro, por meio de reformas constitucionais, estabeleceu como teto máximo para os servidores públicos a remuneração de Ministro do Supremo Tribunal Federal, objetivando eliminar distorções salariais lamentavelmente existentes e que dia a dia sangram os cofres públicos da nação.


Ainda que se admitisse a existência de imprecisões na matéria em apreço, não se exige que os fatos ou expressões sejam rigorosamente verdadeiros. É mister que o jornalista tenha se valido de fontes de informação confiáveis, empenhando-se na busca da informação verdadeira. Ao abordar essa questão, Paulo José da Costa Júnior adverte: “Com efeito, a verdade poderá não ser verdadeira. Vale dizer, a verdade divulgada, num momento sucessivo, poderá demonstrar ser diversa. O que se faz indispensável, porém, é que o jornalista se tenha servido de uma fonte de informação válida e reconhecida, caso não tenha tido conhecimento direto do fato. Trata-se, pois, de uma verdade objetiva, tal qual foi recebida pelo jornalista, direta ou indiretamente” (O direito de estar só, RT, 2. Edição, p. 68). No mesmo sentido é a lição Antonio Jeová dos Santos: “A regra da veracidade não exige que os fatos ou expressões contidas na informação sejam rigorosamente verdadeiros, mas que imponha um específico dever de diligência na comprovação razoável de sua veracidade, no sentido de que a informação retamente obtida e difundida seja digna de proteção, embora sua total exatidão seja passível de controvérsia ou se incorra em erros circunstanciais que não afetem a essência do informado…” (Dano Moral Indenizável, 3a edição, Editora Método, p. 332). Acresça-se a isso que nenhuma crítica foi desferida a qualquer pessoa mencionada na reportagem.

Procurou-se, é importante reiterar, informar os leitores acerca de tema de relevância nacional, não havendo o intuito de ferir a honra ou imagem dos autores. Quanto à alegada violação ao direito de imagem, especificamente do autor Breno Gandelman, melhor sorte não lhes resta. Sustenta o autor acima referido que os réus solicitaram autorização para tirar fotos suas com o intuito de ilustrar a matéria, cujo verdadeiro conteúdo foi omitido. Afirma ter negado autorização tanto para a realização das fotografias, quanto para eventual uso de sua imagem.

A doutrina e jurisprudência têm consagrado a indenizabilidade do dano advindo do uso não consentido da imagem para fins comerciais, promocionais, publicitários. Todavia, não se recrimina a publicação, mesmo desautorizada, de fotografia de pessoa pública, em revista, com a finalidade ilustrativa ou informativa, sem objetivo de lucro e com nenhum propósito de injuriar (4ª Câmara do TJRJ, apel. 5.779/96, 25.02.1997, DJRJ I 21.08.1997, p. 192, e Rep. IOB Jurisp. 3/13.625). Yussef Said Cahali bem sintetiza a questão: “Em linha de princípio, permite-se afirmar, como Antonio Jeová Santos, que é isenta de responsabilidade a difusão de imagens que tenham interesse geral, utilizadas em matérias com fins didáticos, científicos, desportivos etc., ainda que o meio de publicação da imagem objetive lucros, não há impedimento à sua utilização, desde que a finalidade seja a divulgação de tais fatos; é do interesse geral não somente a difusão da imagem de artistas e políticos, como também de qualquer pessoa que desperte interesse público em outras áreas de atividade; a publicação de fotografia que denota interesse geral prescinde da autorização do retratado” (Dano Moral, 2a edição, RT, p. 562/563).

No caso vertente, a fotografia do autor em tela foi tirada em ambiente público, nas sessões do Plenário na Câmara Legislativa de São Paulo, seu local de trabalho, e sem nenhuma evidência de constrangimento. Além disso, a publicação da fotografia teve finalidade ilustrativa e informativa, razão pela qual prescinde da autorização do retratado. Nesse contexto, a improcedência do pedido é medida de rigor, não sendo o caso de se acolher o requerimento de desentranhamento dos documentos que acompanham a contestação, em especial porque poderão servir de subsídio ao juízo ad quem na hipótese de eventual interposição de recurso.

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido formulado por MARIA ALICE FIGUEIREDO, YARA DARCY POLICE MONTEIRO, MARCELLA FALBO GIACAGLIA, ANTONIO RODRIGUES DE FREITAS JÚNIOR, RAIMUNDO BATISTA, BRENO GANDELMAN contra EDITORA ABRIL S/A, ALESSANDRO DUARTE, LÚCIA MONTEIRO e OTÁVIO CANECCHIO e extingo o processo com julgamento de mérito, o que faço com fundamento no artigo 269, I, do CPC. Vencidos os autores, arcarão com o pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios, arbitrados estes por equidade, à falta de condenação, em 3% do valor atualizado da causa (CPC, art. 20, parágrafo 4º). P.R.I. Valor do preparo R$ 18.234,99.

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