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Juiz do Distrito Federal faz audiência de apenas um minuto

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17 de fevereiro de 2004, 17h43

A crítica que formulo considera o objetivo da seção Crítica Construtiva, que é a de apresentar posturas que se entendam equivocadas, sem indicação de nomes ou referências concretas, cujo objetivo não é atacar, ofender ou menosprezar pessoas, mas de se analisar condutas, oportunizando o aprofundamento da reflexão e a compreensão sobre equívocos de comportamento que possam ajudar inúmeros profissionais a corrigir seus procedimentos futuros e até mesmo a subsidiar eventuais medidas jurídicas que precisem adotar para corrigir mazelas semelhantes.

Nesse escopo, relato um fato inusitado, embora absolutamente verídico, ocorrido recentemente em um processo trabalhista, na Justiça do Trabalho em Brasília, onde um colega advogado é patrono do Reclamado, tendo-me noticiado o acontecido, exibindo, inclusive, o documento que confirmava sua narrativa, que foi em síntese a seguinte:

Designada a primeira audiência, para as 14:25 de um certo dia do mês de junho, compareceram ao fórum trabalhista ambas as partes, acompanhadas de seus respectivos advogados, que se viram naquele momento, acenando com um sutil cumprimento. A audiência não teve início no horário designado, eis que a pauta encontrava-se com um certo atraso, com a realização de audiências que precediam àquela na ordem enumerada na pauta de audiências.

O advogado do reclamado, então, cioso de seu ofício, adentrou a sala de audiência e solicitou o processo para uma “rápida olhada”, como costuma fazer, sempre antes das audiências, verificando se havia nos autos algo novo, de que não tivesse conhecimento, evitando surpresas na hora da audiência.

O processo lhe foi confiado pelo secretário da audiência na presença do juiz, que a tudo assistiu, e após a básica conferência, restituiu o processo àquele juízo, retirando-se então da sala de audiência.

Ocorre, que como de costume, os corredores do fórum trabalhista encontravam-se abarrotados de partes, advogados e testemunhas aguardando suas respectivas audiências, e não era diferente naquele corredor, onde se espremiam as pessoas, acotovelando-se por um espaço na Justiça, razão porque o advogado convidou seu cliente, ora Reclamado, a aguardarem na sala de espera, um pouco menos lotada, onde o sistema de som do pregão também tem alcance, sendo, aliás, a sala apropriada para aguardar-se a convocação para as audiências.

Aguardaram pacientemente a realização do pregão, atentos ao sistema de som, até que enfim foi realizado o pregão, aproximadamente uns 20 minutos depois do horário agendado para a audiência. Logo que ouviram a única chamada da audiência, se dirigiram até aquela sala, para tanto tendo que vencer uma multidão de pessoas que permeavam aquele corredor, repetindo inúmeras vezes “com licença”… “com licença”, até que chegassem ao recinto, o que deve ter durado aproximadamente uns 30 segundos, entre o término do chamamento e a chegada à sala de audiência.

Todavia, aí ocorreu o inusitado: adentrando à sala de audiência, o advogado e seu cliente, ora Reclamado, ao procurar sentarem-se para a realização do ato processual, eis que percebiam que a outra parte e sua advogada sequer haviam terminado de se acomodar em seus assentos, foram advertidos pelo Juízo de que a instrução já havia sido encerrada, e que só recomeçaria se houvesse a concordância da parte adversária, o que foi repelido pela mesma, com um breve comentário dizendo que a audiência já se encontrava atrasada na pauta do dia. Tentou argumentar o advogado, salientando que só ouvira uma única vez o pregão, e assim que ouviu imediatamente dirigiu-se à sala de audiência, o que não tardou mais do que alguns segundos, mas restou infrutífera a tentativa, recebendo apenas a confirmação do Juízo de que é procedimento, naquela Vara, realizar o pregão uma única vez, devendo as partes entrarem imediatamente na sala de audiência. Irresignado, o advogado tentou que o Juízo recebesse a contestação escrita, o que foi recusado, insistindo que registrasse em ata o acontecido, tendo o juízo feito constar na ata, após a deliberação em que consta “encerrada a instrução processual” … “Neste momento, adentraram a sala de audiência o Reclamado e seu advogado”, e só.

O curioso do fato é notar que a audiência, desde seu início, ainda antes de estar presente o reclamado e seu advogado, até o seu final, já com a presença de ambas as partes e respectivos advogados, não durou mais do que 1 minuto, um único minuto, conforme registra a própria Ata. A ata me foi exibida pelo colega advogado, e nela pude constatar o que foi comentado pelo mesmo, embora não me recorde precisamente do horário de início. O relevante é que teria começado, por exemplo, às 14:44h e se encerrado às 14:45h. E, nesse curtíssimo intervalo, chegaram o reclamado e seu advogado, mas entendeu o juízo que chegaram atrasados, quando já encerrada a instrução. Não fosse trágico para o Reclamado, cujos efeitos da confissão ficta poderão ser aplicados na sentença, e para o advogado que terá que percorrer árduo caminho processual para tentar reverter a super dinâmica deliberação judicial, seria absolutamente cômico.

Afinal, o fato em comento ilustra absolutamente o contrário de tudo que se diz sobre a morosidade do Judiciário, de que ele é lento, etc…, mas nem por isso esse tipo de celeridade reflete o ideal de Justiça que todos esperamos da prestação jurisdicional.

Em verdade, num só fato, duas diferentes posturas são lastimáveis. Primeiramente, a do próprio Juízo, que, de modo insensato, não aferiu o mínimo tempo entre a realização do pregão e a chegada de ambas as partes na sala de audiência, para então dar início ao ato processual, além de ignorar que o reclamado chegou, oportunamente, àquela sala de audiência, cerca de 30 segundos depois de iniciado o ato processual, o que recomendaria obviamente o recebimento da contestação e a realização do ato, independentemente do que pensasse a parte adversária e seu patrono. Afinal, quem preside o ato é o Juiz, que deve estar norteado pelo bom senso, pela busca da verdade, ainda mais se sabe só realizado um único pregão, o que também não é razoável e nem recomendável.

Inegável que o julgador não só faltou com o bom senso, e recorde-se que sabia da presença do advogado do reclamado, que já havia visitado a sala e solicitado o processo, mas, especialmente, ignorou os fins sociais da lei, o princípio da razoabilidade, bem como o da proporcionalidade, eis que a conseqüência impingida (confissão ficta) tem desdobramentos patrimoniais incompatíveis com o fato que o teria gerado. Afinal, apenas “30 segundos” podem ter significado ao reclamante o direito de receber valores que verdadeiramente não teria por meses de trabalho. E o pior, esse tipo de mazela gera o descrédito do próprio Judiciário, um superdimensionamento da forma em detrimento e, com absoluto menosprezo, do direito material aplicável. Ou seja, um duro golpe na busca da verdade real, no princípio da primazia da realidade, para uma super valorização da verdade formal. Qual não será o sentimento do Reclamado acerca da Justiça do Trabalho, após uma postura como a narrada? Eis que terá que pagar o que acredita não dever e o que acredita já ter pago, simplesmente porque, com os corredores cheios, levou cerca de 30 segundos até entrar na sala de audiência. Ou, na melhor das hipóteses, terá que percorrer um árduo caminho jurídico, quiçá tendo que adimplir com elevados depósitos recursais, tão acentuados que, muitas vezes são fontes de material impossibilidade de se exercitar o direito de recorrer, simplesmente para que, se obtiver sucesso, veja reconhecido então o seu direito, elementar e fundamental, como preceituou a nossa Constituição, de resistir legitimamente a uma pretensão, com a consagração do contraditório e da ampla defesa.

E até mesmo qual será o sentimento do Reclamante que sabe terá ganho sem ter demonstrado estar certo? Se detentor de princípios e valores altaneiros, não confiará no Judiciário, mas se seus valores morais não forem tão elevados, então enxergará no Judiciário a possibilidade de ganho fácil, e novas reclamações (quiçá contra quem nunca foi seu empregador) poderão ser ajuizadas, talvez até estimulando uma nova profissão já alardeada por alguns colegas – a de Reclamante.

Entretanto, a postura do juízo não é a única que mereça uma crítica construtiva, mas a da advogada do Reclamante, que, tendo visto que a parte contrária e seu advogado estavam presentes naquele local, pouco antes de se iniciar a audiência, quando indagada pelo juízo sobre eventual consentimento em se iniciar a instrução, rechaçou essa alternativa, ante a possibilidade que se desenhara no processo de “ganhar com facilidade”, sem altercação, sem produzir prova do que alegou, sem o exercício do contraditório, sem o risco natural e peculiar de qualquer ação.

Parece, aos meus olhos de advogado militante, execrável uma vitória dessa natureza, aliás, isso não é vitória, senão uma procedência “sem mérito”, calcada no mero proveito do inusitado, do insensato e do irrazoável, e, até porque não dizer, do absurdo.

Seria como um time de futebol ganhar um campeonato sem jogar, simplesmente aproveitando-se de brechas do regulamento. Não há sabor em comemorar um título esportivo assim conquistado, se nenhum esporte foi realizado.

Lembro-me da frustração do atual Presidente argentino, com a renúncia em segundo turno de seu opositor, que embora tenha lhe oportunizado alcançar o cargo pretendido, frustrou a conquista, e permitiu, também de modo inusitado, que alguém chegasse ao cargo máximo com votação minoritária.

Por último, recordo-me da sensação de constrangimento porque passou o grande piloto Michael Schumacher, ao chegar à vitória em Grande Prêmio, quando na reta final, por ordem da equipe que exigiu que o primeiro lugar, Rubens Barrichello deixasse seu companheiro de equipe ultrapassá-lo, especialmente porque é notória a qualidade técnica do piloto alemão, capaz de ganhar muitas vezes, sem a interferência de quem quer que seja, e aqueles pontos não representavam naquela altura do campeonato, nada decisivo. Seu constrangimento foi tão manifesto e escancarado que quebrou o protocolo, e colocou o 2º lugar na posição de 1º no pódio, assim como na entrevista oficial.

Louvo esse exemplo, porque não há mérito, não há sucesso, não há vitória, não há felicidade… na conduta do advogado que procede dessa maneira. Deveria restar apenas constrangimento. Da educação, da lhaneza, da lealdade e do respeito pela dignidade da Justiça, no seu sentido mais puro, não devem se esquecer os advogados nem os juízes, pois, afinal, como salienta nossa Carta Magna, somos indispensáveis à administração da Justiça.

Celeridade, sim, mas não como essa, em privilégio da forma, em detrimento do Direito, enfim, em subversão aos propósitos da Justiça.

Artigo publicado na revista Justilex – Ano II – n°18 – Junho de 2003 – Pág 54

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