Controle externo

Problemas da Justiça não serão resolvidos com Conselho 'esdrúxulo'

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14 de fevereiro de 2004, 11h25

São Pedro encontrava-se bastante assoberbado com a administração das coisas do Céu, a começar pela vigilância redobrada instalada na portaria, para evitar a invasão do movimento, cada vez maior, dos Sem-Céu.

Não bastasse essa tormentosa questão, senão quando um santo mais afoito, outros diriam mais ressentido, quiçá por motivos políticos, apresentou uma emenda para a criação de um Conselho para o controle externo do Céu, formado por três santos da mais alta e ilibada reputação, alguns anjos, um representante do Purgatório, outro do Inferno e outro da Terra.

Não obstante a vasta experiência de São Pedro como primeiro Papa da Igreja Católica, além da inata habilidade que emoldura a personalidade de qualquer pescador que se preze, com a salutar prudência de sempre, já que os arroubos anteriores eram coisa do passado, achou por bem consultar Santo Tomás de Aquino, para saber, entre outras coisas, se, direta ou indiretamente, a Suma Teológica previa a hipótese.

Santo Tomás, como era de seu hábito na Terra, começou a apresentar as proposições, as objeções e as conclusões. Extravasa dos limites deste despretensioso artigo relatar um a um esses dispositivos.

Mas, em conclusão, o Doutor Angélico lembrou-se da história contada por Ortega y Gasset, em sua obra “Rebelião das Massas”, a respeito do cigano que queria confessar-se e o padre, muito precavido, começou por pedir-lhe que declinasse os Dez Mandamentos, ao que o confidente, com a malícia própria de sua raça, respondeu: “Olhe aqui, seu padre, eu ia aprender isso, mas depois ouvi um zum-zum de que tinha perdido o valor.”

O experiente filósofo, sábio e teólogo, sem comparar Pedro com o cigano, logo viu que o consulente não era dado a especulações abstratas e que deveria ter um motivo muito especial para ele estar preocupado.

Seguiu-se a justificação de São Pedro: “O representante do Purgatório terá uma atuação meramente light no Conselho, a respeito da qual não faço nenhuma restrição; tampouco à do Diabo, uma vez que se trata de inimigo declarado e a fase dos anjos rebeldes já é coisa de antanho. O busílis da questão centra-se no homem ou na mulher que vier lá de baixo, pois corre-se o risco de se tratar de um ser muito mais vivo do que possa aparentar, com segundas e terceiras intenções.”

Satisfeito, em parte, com a preocupação de Pedro, Santo Tomás foi, a seu estilo, filosofando, dando corda à conversa, pois na sua cabeça não podia entrar hipótese, ainda que remota, de que pudesse haver um poder sobre outro poder soberano, mormente em se tratando de Poder Divino.

“Até onde sei,” conjunturava, “o Purgatório, o Inferno e a Terra não são sequer poderes, nem mesmo independentes e harmônicos. Será que o proponente quer modificar radicalmente o modelo constitucional do Céu? Há um lugar lá na Terra onde dizem que o Senhor nasceu, na qual querem fazer isso; mas eles não sabem o que fazem, conquanto pensem o contrário”.

Ambos, informalmente, admitiram que existiam alguns problemas no Céu. Por exemplo, São Mateus vivia lamentando-se da queda da arrecadação, a cada dia, com o desabafo: “Nem os santos gostam de pagar impostos! Ainda mais agora que apareceram certos tributaristas por aqui. Poucos imaginam a quanto chegam alguns deles, hoje em dia informatizados,” aduzia. “Um processador de texto na mão de qualquer um deles é uma arma.”

Prosseguia o evangelista: “A verba está fraca,” acrescentava, “e aqui não existe suprimento ou empréstimos para precatórios nem facilitário para pagar o devido em até dez anos. Nem mesmo a carga tributária sobre as contas de energia elétrica poderia saltar para 49,2%. Se ‘a mordida do fisco’ atingir 40,1% das contas telefônicas, haverá aqui uma indesejável resistência ou desobediência civil.

Deus barrou a tentativa de se adir aos Dez Mandamentos um título de disposições transitórias,” aditava, “uma vez que poderia algum santo do alto clero querer marchetar entre essas normas uma dizendo que, para aumentar ou procrastinar dívidas, tributos, todos os expedientes seriam válidos, até a instituição de precatórios, com perdão da má-palavra, contra o qual nem sequer poderiam ser invocados tais perenes Mandamentos.

O céu só não quebrou,” rematava o evangelista, “porque o Senhor relativizou o direito adquirido e acabou com a acumulação de proventos (todo mundo aqui é aposentado ou reformado), mandou os anões e os gigantes do orçamento, de ontem e de hoje, para o Inferno e está, pessoalmente, fiscalizando as concorrências.

O Senhor postergou de uma vez para sempre o nepotismo e instituiu a obrigatoriedade de concurso público de títulos e provas, com seriedade, para preenchimento de cargos públicos, pois o que os santos têm de parentes próximos ou remotos é uma grandeza, e lotavam seus locais de trabalho até com sogras, cunhados e concunhados. Um, inteirado de uma declaração de um sábio prócer brasileiro, chegou a pedir a nomeação para cargo em comissão de sua cadela, sob o fundamento de que cachorro também é ser humano. Disse com veemência o Todo-Poderoso: ‘aqui no céu o princípio da isonomia é pra valer.’

Morreu no nascedouro hipótese, engendrada pelos santos fisiológicos, de reduzir todos os mandamentos a um único, assim enunciado e parafraseado de George Orwell (“A Revolução dos Bichos”): ‘todos os santos são iguais, mas alguns santos são mais iguais do que os outros’.”

Para rematar o diálogo com São Pedro, Santo Tomás obtemperou que os atuais problemas do Céu, alguns dos quais acima apontados, se não forem resolvidos internamente, muito menos o serão com esse esdrúxulo Conselho.

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