Pedido de vista

Julgamento de ações contra MP do setor elétrico é adiado

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4 de fevereiro de 2004, 13h23

O julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade contra a Medida Provisória 144, que definiu o modelo do setor elétrico brasileiro, foi adiado. O ministro Joaquim Barbosa pediu vista das ADIs 3.090 e 3.100.

O relator, ministro Gilmar Mendes, deferiu parcialmente as liminares requeridas nas ações sobre a MP editada em 10/12/2003. As ADIs foram ajuizadas, respectivamente, pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e Partido da Frente Liberal (PFL).

Gilmar Mendes observou que na ADI 3.090 o PSDB buscou demonstrar a relação entre o modelo de setor elétrico e o quadro constitucional anterior e posterior à Emenda Constitucional nº 6. O Partido argumenta que qualquer alteração normativa na referida legislação configuraria regulamentação do parágrafo 1º do artigo 176 da Constituição Federal, conforme o entendimento firmado pelo STF na ADI 2.005.

O PSDB alegou, ainda, ausência de relevância e urgência para a edição da Medida Provisória impugnada. Por fim, o PSDB pediu a declaração da inconstitucionalidade dos artigos 1º a 21 da Medida Provisória nº 144, de 10 de dezembro de 2003.

Na ADI 3.100, ajuizada pelo PFL, o relator observou que o objeto da ação também é a integralidade da MP 144/2003. Os argumentos do PFL se aproximam das impugnações feitas na ADI 3.090.

O PFL alegou a inconstitucionalidade da MP na parte em que promove alterações na disciplina do Operador Nacional do Sistema Elétrico (NOS), na parte em que extingue o Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE), e na parte em que impõe o uso da arbitragem para a solução de conflitos. Pediu, por fim, o efeito vinculante da decisão proferida na ADI 2.005.

Gilmar Mendes deferiu parcialmente as liminares requeridas pelos partidos. Ele suspendeu a vigência dos artigos 1º, 2º e do 7º da MP/144, na parte em que este último dá nova redação ao art. 10 da Lei no 8.631/93. E indeferiu as liminares quanto aos demais dispositivos. (Com informações do STF)

Leia o voto do relator

MED. CAUT. EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.100-7 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

REQUERENTE(S) : PARTIDO DA FRENTE LIBERAL – PFL

ADVOGADO(A/S) : ADMAR GONZAGA

REQUERIDO(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOGADO(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator): O Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB e o Partido da Frente Liberal ajuízam ação direta de inconstitucionalidade contra a íntegra da Medida Provisória nº 144, de 10 de dezembro de 2003, que “Dispõe sobre a comercialização de energia elétrica, altera as Leis nºs 5.655, de 20 de maio de 1971, 8.631, de 4 de março de 1993, 9.074, de 7 de julho de 1995, 9.427, de 26 de dezembro de 1996, 9.478, de 6 de agosto de 1997, 9.648, de 27 de maio de 1998, 9.991, de 24 de julho de 2000, 10.438, de 26 de abril de 2002, e dá outras providências”.

Na ADI ajuizada pelo PSDB busca o autor demonstrar a relação entre o modelo de setor elétrico e o quadro constitucional existente antes e após a Emenda Constitucional nº 6. A idéia básica, defendida pelos autores, é a de que o atual arcabouço normativo do setor elétrico nacional constitui uma decorrência da Emenda Constitucional nº 6, que teria viabilizado “o novo ambiente institucional e regulatório do setor elétrico brasileiro, baseado no investimento privado” (fl. 11).

A partir de tal argumentação, conclui o autor da ADI que qualquer alteração normativa na referida legislação configuraria regulamentação da matéria objeto do § 1º do art. 176 da Constituição, conforme teria assentado esta Corte na ADI 2005. A reforçar tal conclusão, aponta os seguinte excerto do voto do Ministro Pertence na ADI 2005, verbis:

“A conexão entre si de todas as alterações trazidas ao sistema de eletricidade, antes fechado a empresas estatais, faz evidente a imbricação de todas as normas da medida provisória com a efetivação da abertura do setor ao capital privado, só autorizada pela alteração do art. 176, § 1º, da Constituição”.

Tal conclusão serve ao argumento seguinte, em que o autor aponta a incidência do art. 246 da Constituição, a restringir a regulamentação da matéria via medida provisória.

Assim, afirma o autor que “a edição da Medida Provisória nº 144/03 colide com o fundamento determinante da decisão tomada no julgamento da ADI 2005-6”, uma vez que “naquela assentada, o fundamento determinante fixado pelo Supremo Tribunal Federal foi o de que a legislação do setor elétrico estava amparada no § 1º do artigo 176 da Constituição Federal e, por essa razão, não poderia ser objeto de medida provisória, a teor do disposto no artigo 246 da Constituição Federal”. (fl.17)

Assevera, ainda, que “desprezando tal decisão [continua o autor], a Medida Provisória nº 144/03 promove alterações nos mesmos diplomas legais que haviam sido alterados pela medida provisória impugnada na ADI 2005-6.”


Alega-se, ainda, a ausência de relevância e urgência para a edição da Medida Provisória impugnada. Em seguida, a inicial ocupa-se com uma impugnação específica dos dispositivos da Medida Provisória 144.

A par da alegada violação ao art. 246, há impugnações específicas quanto a violação ao princípio federativo, ao princípio da defesa do consumidor, ao princípio do ato jurídico perfeito, e ao princípio da reserva legal. O pedido de cautelar está assim fundamentado:

“A concessão de medida cautelar à presente ação direta de inconstitucionalidade, consoante autorizado pelo artigo 10 da lei 9.868/99, é medida que se impõe.

Com efeito, a par do fumus boni iuris evidenciado nas razões acima ventiladas, acentuado pelo desrespeito, de forma manifesta, à decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.005-6/DF, verifica-se, na espécie, patente perigo na demora da prestação jurisdicional ora pleiteada, com a postergarão da vigência da medida provisória sob comento.

Isso porque a medida provisória, intitulada na mídia como “Novo Modelo para o Setor Elétrico”, dada a profundidade e abrangência das mudanças, demandará extensos estudos e muitas alterações nas rotinas contábeis, fiscais, comerciais e societárias das empresas do setor elétrico brasileiro, bem como no dispêndio de valores para a criação e custeio da novas entidades que menciona e na nova destinarão e forma de arrecadação de encargos próprios do setor.

Destarte, a sua não extirparção imediata do mundo jurídico implicará graves prejuízos e outros efeitos danosos absolutamente irreversíveis, quando no futuro tiver a sua vigência suspensa em virtude do reconhecimento, no mérito da presente ação, dos vícios apontados.

De fato, diversas implicações da medida são imediatas, independentemente de sua regulamentação. É o caso da determinação da separação da atividade de distribuição das atividades de geração e transmissão pelo artigo 8º da medida provisória que conferiu nova redação ao art 4º da Lei nº 9.074, de 1995.

A medida provisória em tela, em seu artigo 14, determina que a separação das atividades deve ser concluída no prazo de 12 meses da publicação da medida provisória. A determinação, considerando seu prazo, já demanda imediatas providências por diversas distribuidoras como a Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG, Light Serviços S/A – LIGHT, Companhia Paulista de Força e Luz – CPFL, entre outras. A medida exige a cisão empresarial para o seu cumprimento, a qual, por sua vez, demanda, necessariamente, o processo de desincorporarão de ativos e capital, a aprovação da criação de nova empresa no caso de estatais.

Dessa feita, iniciados ou finalizados tais procedimentos para a cisão das empresas, com relevantes custos e repercussões comerciais associados, o superveniente julgamento do mérito da presente ação — no qual associa certamente se concluirá pelo desrespeito do ato do Presidente da República à Constituição Federal e à precedente decisão proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade – implicará a necessidade de reversão de todos os procedimentos aludidos, cujos enormes custos – prejuízos acarretados às empresas do setor – senão irreversíveis, serão ao menos de árdua reversão e provocarão implicações gravosas para todo o setor elétrico.

Ademais, a medida provisória autoriza a criação de nova empresa para exercer importante papel institucional em um novo modelo para o setor – a Câmara de Comercialização de Energia, CCEE. No ponto, igualmente, uma vez constituída referida empresa, a ulterior suspensão da vigência da Medida Provisória nº 144/2003 acarretará significativos prejuízos aos agentes setoriais.

A medida provisória também prevê, no § 1º de seu artigo 5º, o prazo máximo de noventa dias para constituição e efetiva operação da CCEE, com a conseqüente extinção do MAE, o que será de difícil ou impossível reversão.

Ainda quanto ao periculum in mora, impende salientar que a medida provisória em apreço gera a imediata paralisia do setor. O anterior anúncio de um novo modelo para o setor já vinha produzindo efeitos nesta direção. Com a edição da medida provisória veiculadora do novo modelo, entretanto, constatou-se que muito mais do que definir novas diretrizes e regras para o setor elétrico, a medida transfere competências para o Executivo.

Notoriamente, transfere, em frontal desrespeito aos artigos 22 e 48 da Carta Magna, competências do Congresso Nacional, as quais passam a ser exercidos pelo Poder Executivo, o qual passa a deter todo o poder de estabelecer regras e diretrizes, mediante a regulamentação da medida provisória.

Dessa feita, a medida provisória sob comento concretiza a total paralisia da comercialização de energia e inibe fortemente o ingresso de novos investimentos no setor. O próprio caráter provisório da medida inibe tais investimentos, com forte característica de longo prazo de retomo, superior a dez anos.


No tocante a este último efeito, relevante apontar, ainda, a existência de uma lacuna quanto ao exercício das atribuições ínsitas ao Poder Concedente. Antes delegado à ANEEL, por meio de um conjunto de regras já estabelecidos e em funcionamento, a medida provisória, ao retirar aludidas atribuições da agência reguladora do setor, coloca todo o mercado no aguardo de regulamentação que permita a operacionalização do exercício das atividades do Poder Concedente, retardando investimentos.

Presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, exsurge imperiosa a concessão da medida cautelar ora pleiteada, para suspender a vigência da Medida Provisória nº 144/03 até o julgamento final da presente ação, a fim de evitar graves danos aos agentes do setor elétrico, bem como aos cidadãos brasileiros que exigem uma retomada imediata do crescimento da economia do País, com uma confiável e maior oferta de energia.” (fls. 34/38)

Postula-se a concessão de liminar e, no mérito, a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 1º a 21 da Medida Provisória nº 144, de 10 de dezembro de 2003.

Proferi, na ADI 3090, o despacho de fls. 115/118, em que requisitei as informações presidenciais, nos termos do art. 10 da Lei nº 9.868, de 1999. O Excelentíssimo Senhor Presidente da República prestou as informações (fls. 122/193), e os autos vieram conclusos.

Na ADI 3100, ajuizada pelo PFL, que também tem por objeto a integralidade da MP 144, a par de argumentos que se aproximam das impugnações trazidas na ADI 3090, alega-se a inconstitucionalidade do ato (1) na parte em que promove alterações na disciplina do ONS, (2) na parte em que extingue o MAE, e (3) na parte em que impõe o uso da arbitragem para a solução de conflitos. Alega-se, ainda, o efeito vinculante da decisão proferida na ADI 2005.

Na ADI 3100, distribuída no recesso, foram colhidas as manifestações do Advogado-Geral da União, defendendo o ato, e do Procurador-Geral da República, que opina pelo indeferimento da cautelar.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator): Inicialmente, afasto a preliminar suscitada nas informações, no sentido de que a inicial não estaria devidamente fundamentada. Da leitura da inicial verifica-se que o autor da ação cumpriu o dever básico de oferecer razões para as impugnações.

Relevância e urgência

Quanto aos requisitos de relevância e urgência, não vejo plausibilidade na alegação de inconstitucionalidade.

Registro, especialmente, que o setor elétrico possui uma singularidade que não pode ser ignorada em eventual juízo quanto à urgência de sua regulamentação via medida provisória. É notório que, via de regra, a implementação de empreendimentos no setor elétrico envolve elevados custos, grande planejamento e, sobretudo, uma execução demorada. Assim, quando o Poder Público vislumbra qualquer perspectiva de pane no sistema nos anos futuros, alternativa outra não há senão a de agir imediatamente. Ou seja, no que toca à disciplina do setor elétrico, não são cabíveis os critérios ordinários para a aferição de urgência.

Violação ao art. 246

No que toca à impugnação baseada na restrição imposta pelo art. 246 da Constituição à edição de medidas provisórias, o autor invoca o precedente firmado por esta Corte, em sede de cautelar, na ADI 2005. O objeto da ADI 2005 era a Medida Provisória nº 1.819, de 30 de abril de 1999, que alterava dispositivos legais relacionados à regulamentação do setor elétrico. O precedente da ADI 2005 é de maio de 1999.

Quanto à alegada violação ao art. 246, o contra-argumento que consta nas informações inicia-se com a invocação do precedente de abril de 1997, firmado em cautelar na ADI 1518, da relatoria do Ministro Octávio Gallotti. Salvo engano, trata-se do primeiro julgado em que esta Corte enfrentou a aplicação do art. 246.

Ao apreciar o pedido de liminar na ADI 1518, a Corte, na linha do Ministro Relator, Octávio Gallotti, afastou-se da exegese literal do art. 246. Consta no voto de Galloti:

“Não penso, além disso – e também a um primeiro exame – que se deva encarar, com a estreiteza literal que lhe empresta a bem lançada petição inicial, a restrição erigida, ao uso de medidas provisórias com força de lei, pelo art. 2º da Emenda nº 7, reproduzida na de nº 8, ambas acrescentando o art. 246 nas Disposições Constitucionais Gerais.

Comporta esse dispositivo, segundo penso, o sentido e a finalidade lógica de excluir, do campo de atuação das medidas provisórias, a regulamentação destinada a dar eficácia às inovações constitucionais porventura introduzidas, não a estratificar a disciplina anteriormente existente para determinada instituição, impedindo a sua atualização e aprimoramento nos limites que já autorizava, originariamente, a Constituição, hipótese que aparenta ser, no caso, a configurada pelas normas impugnadas na presente ação.” (g.n.)


Embora tendo ressalvado tratar-se de um primeiro exame da matéria, a passagem transcrita demonstra que o eminente Ministro teria optado por interpretação que atenua o rigor literal do art. 246 da CF/88 (1).

De qualquer sorte, é necessário registrar que no julgamento da liminar na ADIn nº 1.518, outro aspecto, de índole formal, parece ter sido significativo: A Emenda Constitucional nº 14, que alterava o § 5º do art. 212 da Constituição, só entraria em vigor em primeiro de janeiro de 1997. Ou seja, o dispositivo impugnado teria regulamentado o texto do § 5º em sua redação anterior à Emenda nº 14/96. Nesse sentido, cabe transcrever o início do voto vencedor do Ministro Octávio Gallotti:

“De acordo com o que estabelece o seu art. 6º, está destinada, a Emenda Constitucional nº 14, de 1996, a vigorar a 1º de janeiro do ano subseqüente ao da promulgação, ou seja, somente a partir de 1997.

Não pode, portanto, ser tida, essa Emenda, como objeto de regulamentação de uma Medida Provisória publicada, para vigência imediata, em 20 de setembro de 1996, como sucede com a de nº 1.518, ora atacada.”

Tal aspecto, que também constitui fundamento determinante para a conclusão a que chegou o Tribunal em sede de cautelar, demonstra que a ADI 1518 não constitui um precedente definitivo, e tampouco exaustivo, quanto à interpretação do art. 246.

Considero, todavia, relevante a idéia contida no voto do relator, a afastar uma interpretação por demais literal daquele dispositivo de exceção. Mas há outros precedentes relacionados ao tema, alguns deles especificamente pertinentes à presente discussão, qual seja a regulamentação do setor elétrico por meio de medidas provisórias.

Após o precedente da ADI 1518, esta Corte teve outras oportunidades para aplicar a norma do art. 246. Em duas delas cuidou especificamente de atos relacionados ao setor elétrico.

Na ADI 1597, ajuizada pelo PT, PSB e PDT, impugnava-se o art. 1º da Medida Provisória 1481-48, de 1997, na parte em que alterava o art. 13 da Lei 8031, de 1990 (que criou o Programa Nacional de Desestatização). A redação trazida pela MP era a seguinte:

“Art. 13. A alienação de ações de pessoas físicas ou jurídicas poderá atingir cem por cento do capital votante, salvo disposição legal ou manifestação expressa do Poder Executivo, que determine percentual inferior.”

Alegavam os partidos autores da ação direta violação aos arts. 176, § 1º, e 246, ambos da Constituição. No julgamento da cautelar, após intenso debate, a Corte conferiu interpretação conforme ao dispositivo impugnado para afastar do seu campo de incidência a alienação de sociedades de economia mista dedicadas às atividades enquadradas no § 1º do art. 176 da Constituição. (ADIMC 1597, Rel. Min. Néri da Silveira, Redator para o Acórdão: Min. Maurício Corrêa, Julgamento em 19.11.1997, DJ 19.12.2002)

Posteriormente, na ADI(MC) 2005, adotou o Tribunal interpretação bastante rigorosa do art. 246. Cuidava-se de Ação Direta ajuizada contra a Medida Provisória 1.819-1, de 1999.

No exame da cautelar na ADI 2005, o Tribunal acabou por concluir que toda a matéria disciplinada pela MP 1.819 estaria relacionada ao art. 176, § 1º, e que portanto estaria a violar a restrição imposta pelo art. 246. A propósito, registre-se a conclusão do voto complementar do Ministro Néri:

“Com efeito, toda a disciplina deles resultante concerne a matéria que se enquadra como as demais analisadas em meu voto inicialmente proferido, no âmbito do art. 176, § 1º, da Constituição, com a disciplina da Emenda Constitucional nº 6, de 1995.”

Na mesma linha a posição do Ministro Jobim, verbis:

“Os artigos e a legislação toda mencionada na medida provisória em exame dizem respeito, de uma forma direta ou indireta, ao conjunto do sistema elétrico brasileiro no que diz respeito não só a sua exploração como também a todos os mecanismos internos do sistema elétrico.

Parece-me evidente que tem razão o relator no sentido de que essa matéria está toda compreendida na regra do § 1º do art. 176 e, portanto, sofre a incidência do art. 246. Não pode ser tratada por medida provisória.”

Por fim, asseverou o Ministro Pertence:

“A conexão entre si de todas as alterações trazidas ao sistema de eletricidade, antes fechado a empresas estatais, faz evidente a imbricação de todas as normas da medida provisória com a efetivação da abertura do setor ao capital privado, só autorizada pela alteração do art. 176, § 1º, da Constituição.”

Mas há, ainda, outro precedente significativo sobre o tema.

Refiro-me à ADI(MC) 2473, da Relatoria do Ministro Néri da Silveira. Nesse julgado, de setembro de 2001, eram impugnadas disposições da MP 2152-2, de 1º de junho de 2001, ato editado para fazer frente à crise de energia. A par do exame da constitucionalidade de vários outros dispositivos, a Corte entendeu por conferir interpretação conforme a Constituição para excluir do âmbito normativo do art. 26 da MP os potenciais de energia hidráulica.


Cabe aqui registrar o teor do referido art. 26:

“Art. 26. Não se aplicam as Leis nos 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e 9.427, de 26 de dezembro de 1996, no que conflitarem com esta Medida Provisória e com as decisões da GCE”.

Analisando tal preceito, asseverou o Ministro Néri da Silveira:

“Quanto ao art. 26, da Medida Provisória nº 2152, em determinando a não-aplicação das Leis nºs 8.987, de 1995 e 9.427, de 1996, no que conflitarem com essa Medida Provisória e com as decisões da GCE, dou interpretação conforme para deferir, em parte, a cautelar.

De fato, não podem a Medida Provisória ou a GCE, por via de delegação, dispor normativamente, de molde a afastar, pura e simplesmente, a aplicação de leis que se destinam à disciplina da regra maior do art. 176, § 1º, da Constituição, no que concerne a potencial hidráulico. De fato, esse dispositivo resultante da Emenda Constitucional nº 6, de 15.8.1995, não pode ser objeto da disciplina por medida provisória, a teor do art. 246 da Constituição. Nesse sentido o Plenário decidiu múltiplas vezes, a partir da decisão na ADI 2005.”

Feitos tais registros, a demonstrar a evolução da jurisprudência da Corte sobre o tema, e dentro dos lindes deste exame de cautelar, considero que há plausibilidade do direito invocado quanto à ofensa ao art. 246 da Constituição.

Penso que o entendimento firmado na ADI(MC) 2473 possui uma precisão e uma clareza maior que a exegese firmada na ADI 2005, uma vez que na ADI 2005 não houve ressalva quanto à geração de energia decorrente da exploração de potenciais não hidráulicos. De fato, em um primeiro exame do disposto no art. 176, § 1º, da Constituição, no que toca às fontes de energia, vê-se apenas uma referência expressa aos potenciais de energia hidráulica, e não às demais fontes.

Nesse exame de cautelar, não me parece cabível, portanto, uma interpretação tão restritiva como aquela da ADI 2005. Tenho como aplicável ao caso, todavia, o precedente da ADI 2473, uma vez que o considero mais consentâneo com a regra do art. 176, § 1º, da Constituição, na redação da Emenda 6, em sua conjugação com o art. 246.

Houve, com a Emenda Constitucional nº 6, uma alteração substancial na moldura do setor elétrico brasileiro. De um sistema baseado na ampla intervenção estatal passamos a um novo paradigma, voltado ao investimento privado e às regras de mercado, com uma atuação do Estado em posição outra, especialmente como agente regulador. E na tarefa de concretizar a nova decisão constituinte foram editadas inúmeras normas, que acabaram por conformar um ambiente legislativo inconfundível com o anterior. É evidente, nessa evolução constitucional e legislativa, uma correlação necessária e inafastável entre as normas legais do setor elétrico e a inovação da Emenda nº 6. Lembre-se, sobretudo, que a regra do art. 246 surge justamente na Emenda nº6, tendo sido reproduzida na Emenda nº 7, também de 1995.

Assim, considerando os precedentes firmados pela Corte nas ADI’s 2005 e 2473, e considerando que o art. 176, § 1º, da Constituição, foi objeto de substantiva alteração pela Emenda Constitucional nº 6, de 15 de agosto de 1995, tenho como aplicável ao caso a restrição do art. 246.

Todavia, na linha do referido precedente da ADI 2473, tendo em vista a possibilidade de aplicação de preceitos da Medida Provisória às fontes outras de produção de energia, considero adequada a adoção de interpretação conforme a Constituição para afastar da incidência da Medida Provisória no que concerne a qualquer atividade relacionada à exploração do potencial hidráulico para fins de produção de energia.

Sobre o alegado excesso no exercício do poder regulamentar

Há um outro aspecto que chama a atenção nesta Medida Provisória, relativo às disposições que conferem poder regulamentar ao Executivo. Não há dúvida de que a questão relativa aos limites do poder regulamentar assume extraordinária relevância em sistemas que, como o nosso, restringem a delegação de poderes.

A Constituição Federal erigiu o princípio da independência e harmonia entre os poderes como pedra de toque do ordenamento constitucional (art. 2º) definindo as diversas funções e impondo a sua estrita observância pelos Estados-membros (CF, art. 34, IV, art. 44 e ss., art. 76 e ss., e art. 92 e ss.). E, além de dispor explicitamente sobre as atribuições dos diferentes poderes, instituiu o constituinte no art. 5º, II, o regime da “necessidade de lei”, segundo o qual “nenhuma manifestação estatal, judiciária ou administrativa lhe pode suprir a ausência, seja nos casos constitucionalmente explícitos, que se requer, seja para criar obrigação dever, encargo ou ônus para os súditos do Estado” (Ruy Cirne Lima, Princípios de Direito Administrativo, 1982, p. 37; Geraldo Ataliba, Liberdade e Poder Regulamentar, revista de Informação Legislativa nº 66, p. 46; Celso Antônio Bandeira de Mello, Ato Administrativo e Direito dos Administrados, 1981, pp. 86/87; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969, 1974, tomo V, p. 2). Não há, pois, que se cogitar, entre nós, de amplo poder residual que possa ser reconhecido ao Executivo, não se compatibilizando o nosso ordenamento com cláusula semelhante à adotada pelo art. 37, da Constituição Francesa de 1958 (“Revestem-se de caráter regulamentar todas as matérias que não sejam do domínio da lei”).


Cumpre ressaltar, outrossim, que, no sistema constitucional brasileiro, o poder regulamentar reconhecido ao Chefe do Poder Executivo (CF, art. 84, IV) limita-se à expedição de decretos e regulamentos para a fiel execução da lei, não sendo, como regra geral, admissível a edição dos chamados regulamentos autônomos ou independentes. A exceção foi estabelecida com a Emenda 32, que alterou o referido art. 84, IV, permitindo que o Presidente edite decretos autônomos em hipóteses restritas.

E a fórmula geral, constante do art. 84, IV, da Constituição, reflete a tradição constitucional brasileira. De forma idêntica dispuseram a Constituição de 1891 (art. 48, 1º), a Constituição de 1934 (art. 56, 1º), a Carta de 1937 (art. 74, a) e a Constituição de 1946 (art. 87, I), e 1967/69 (art. 81, III). A Carta do Império, por seu turno, não estabeleceu orientação diversa, ao consagrar a atribuição do Imperador, para, através dos Ministros de Estado, “expedir os decretos, instruções e regulamentos adequados à boa execução das leis”(art. 102, XII). A propósito, continua inexcedível o magistério de Pimenta Bueno, também referido por Barbalho (Const. Federal Brasileira, p. 250), verbis:

“Do que temos exposto, e do princípio também incontestável, que o poder executivo tem por atribuição executar, e não fazer a lei, nem de maneira alguma alterá-la, segue-se evidentemente que ele cometeria grave abuso em qualquer das hipóteses seguintes:

1º) Em criar direitos, ou obrigações novas não estabelecidos pela lei, porquanto seria uma inovação exorbitante de suas atribuições, uma usurpação do poder legislativo, que só poderá ser tolerada por câmaras desmoralizadas. Se assim não fora, poderia o governo criar impostos, penas ou deveres, que a lei não estabeleceu, teríamos dois legisladores e o sistema constitucional seria uma verdadeira ilusão.

2º) Em ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações porquanto, a faculdade lhe foi dada para que fizesse observar fielmente a lei, e não para introduzir mudança ou alteração alguma nela, para manter os direitos e obrigações como foram estabelecidos, e não para acrescentá-los ou diminuí-los, para obedecer ao legislador, e não para sobrepor-se a ele.

3º) Em ordenar, ou proibir o que ela não ordena, ou não proíbe, porquanto dar-se-ia abuso igual ao que já notamos no antecedente número primeiro. E demais, o governo não tem autoridade alguma para suprir, por meio regulamentar, as lacunas da lei e mormente do direito privado, pois que estas entidades não são simples detalhes, ou meios de execução. Se a matéria como princípio é objeto de lei deve ser reservada ao legislador; se não é, então não há lacuna na lei, sim objeto de detalhe de execução.

4º) Em facultar, ou proibir, diversamente do que a lei estabelece, porquanto deixaria esta de ser diferente, quando a obrigação do governo é de ser em tudo e por tudo fiel e submisso à lei.

5º) Finalmente, em extinguir ou anular direitos ou obrigações, pois que um tal ato equivaleria à revogação da lei que os estabelecera ou reconhecera; seria um ato verdadeiramente atentatório.

O governo não deve por título algum falsear a divisão dos poderes políticos, exceder suas próprias atribuições, ou usurpar o poder legislativo.

Toda e qualquer irrupção fora destes limites é fatal, tanto às liberdades públicas, como ao próprio poder.” (Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, 1978, pp. 234/235).

É da nossa tradição constitucional, portanto, admitir o regulamento apenas como ato normativo secundário, subordinado à lei, não podendo expedir comandos “contra”, “extra”, praeter ou ultra legem, mas tão-somente secundum legem. A diferença entre a lei e o regulamento, no Direito brasileiro, não se limita, pois, à origem ou à supremacia daquela sobre este. A distinção substancial reside no fato de que a lei pode inovar originariamente no ordenamento jurídico, enquanto o regulamento não o altera, mas tão-somente fixa as “regras orgânicas e processuais destinadas a pôr em execução os princípios institucionais estabelecidos por lei, ou para desenvolver os preceitos constantes da lei, expressos ou implícitos, dentro da órbita por ele circunscrita, isto é, as diretrizes, em pormenor, por ela determinada” (O. A. Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I, 1969, pp. 314 e 316; Pimenta Bueno, Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, 1978, 233/236; João Barbalho, Constituição Federal Brasileira, 1924, p. 250; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, com Emenda nº I, de 1969, tomo III, 1973, pp. 314 e 316; Vicente Rao, O Direito e a Vida dos Direitos, Vol. I, tomo II, 1976, p. 269; Francisco Campos, Parecer, RDA 72, pp. 398-399; Geraldo Ataliba, Poder Regulamentar do Executivo, RDP 57, pp. 58-196; Celso Antônio Bandeira de Mello, Ato Administrativo e Direitos dos Administrados, 1981, p. 90; Fernando Henrique Mendes de Almeida, Observações sobre o Poder Regulamentar e seus Abusos, RT 279, pp. 28-29; Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira, 1983, p. 372; Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, 1982, p. 178; José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 1984, p. 571; Carlos Mário Velloso, Do Poder Regulamentar, RDP 65, p. 41; Roque Antônio Carraza, O Regulamento do Direito Tributário Brasileiro, 1981, pp. 12/13; Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 1984, pp. 138/139).


Não há negar que, como observa Celso Antônio Bandeira de Mello, a generalidade e o caráter abstrato da lei permitem particularizações gradativas quando não objetivam a especificidade de situações insuscetíveis de redução a um padrão qualquer (op. cit. p. 93). Disso resulta, não raras vezes, margem de discrição administrativa a ser exercida na aplicação da lei. Não se há de confundir, porém, a discricionariedade administrativa atinente ao exercício do poder regulamentar com delegação disfarçada de poder. Na discricionariedade, a lei estabelece previamente o direito ou dever, a obrigação ou a restrição, fixando os requisitos de seu surgimento e os elementos de identificação dos destinatários. Na delegação, ao revés, não se identificam, na norma regulamentada, o direito, a obrigação ou a limitação. Estes são estabelecidos apenas no regulamento (Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit. pp. 98/99; Carlos Mário Velloso, art. cit., RDP 65, p. 46; Pontes de Miranda, op. cit., p. 312).

Não há dúvida de que seriam inócuas as disposições constantes da Constituição, especialmente no art. 5º, II e 84, IV, se fosse admissível a ampliação, por ato legislativo, dos limites prescritos ao poder regulamentar. Nesse sentido, preleciona Pontes de Miranda, verbis:

“O poder de regulamentar não deriva de delegação legislativa; não é o Poder Legislativo que o dá ao Poder Executivo. Legislar e regulamentar leis são funções que a Constituição pôs em regras de competência de um e outro poder. A delegação legislativa em princípio é proibida. Se o Poder Legislativo deixa ao Poder Executivo fazer lei, delega; o poder regulamentar é o que se exerce sem criação de regras jurídicas que alteram as leis existentes e sem alteração da própria lei regulamentada. Fora daí, espíritos contaminados pelo totalitarismo de fonte italiano-alemã pretenderam fazer legítimas, de novo, as delegações legislativas, que a Constituição de 1946, no art. 36, § 2º, explicitamente proibiu. Na Constituição de 1967, o art. 6º, parágrafo único, 1ª parte, também as veda, mas admite a lei delegada (arts. 52 e parágrafo único, 53 e 54)”.

Nem o Poder Executivo pode alterar regras jurídicas constantes de lei, a pretexto de editar decretos para a sua fiel execução, ou regulamentos concernentes a elas, nem tal atribuição pode provir de permissão ou imposição legal de alterar regras legais, ou estendê-las, ou limitá-las. Somente se admite que o Poder Executivo aplique a lei, se a incidência não é automática, ou proceda à verificação e cálculos em que nenhum arbítrio lhe fique. Onde o Poder Executivo poderia dizer 2, ou dizer 3, há delegação de poder. Onde o Poder Executivo poderia conferir ou não conferir direitos, ou só os conferir segundo critério seu ou parcialmente seu, há delegação de poder.” (Op. cit. pp. 312-313).

Esclarece ainda o insigne Mestre que o regulamento “vale dentro da lei; fora da lei, a que se reporta, ou das outras leis, não vale. Em se tratando de regra jurídica de direito formal, o regulamento não pode ir além da edição de regras que indiquem a maneira de ser observada a regra jurídica. Se a lei fixou prazo, ou estabeleceu condição, não pode alterá-la o regulamento.” (Op. cit., p. 316).

Dentro desse raciocínio, há delegação indevida, quando se permite ao regulamento inovar inicialmente na ordem jurídica, atribuindo-lhe a definição de requisitos necessários ao surgimento de direito, dever, obrigação ou restrição. Explicitando este entendimento, sustenta Celso Antônio Bandeira de Mello que “inovar quer dizer introduzir algo cuja preexistência não se pode conclusivamente deduzir da lei regulamentada”, verificando-se inovação proibida toda vez que não seja possível “afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada”. (Op. cit., p. 98).

Faz-se mister reconhecer que, nos modelos constitucionais que vedam ou restringem a delegação de poderes, desenvolvem-se normalmente fórmulas atenuadoras do rigorismo, seja através do exercício ampliado do poder regulamentar, seja por via das chamadas autorizações legislativas. A propósito, assevera Bernard Schwartz que, no Direito Constitucional americano, mostra-se acentuada a prática da delegação mediante autorização legislativa, exigindo-se, porém, o estabelecimento de limites e padrões (“standards”) atinentes à faculdade a ser exercida (Direito Constitucional Americano, trad. bras., pp. 34 e 349/354).

Nesse sentido, observa Schwartz, que:

“a menos que o ato de delegação de poderes contenha um padrão — limite ou orientação com respeito ao poder conferido que se possa exercer — ele será inválido ou nulo. Isso tem impedido delegações indiscriminadas de poderes, do tipo que tem originado violentas críticas na Inglaterra; mas não tem evitado as necessárias concessões de autoridade legislativa ao Executivo.” (Op. cit., p. 34).


E, mais adiante, o insigne publicista explicita a orientação predominante na jurisprudência americana, afirmando que:

“os tribunais americanos hoje se recusam a invalidar a legislação simplesmente porque ela formalmente delega poder legislativo às autoridades administrativas. A sua concepção a respeito do problema da delegação mudou da posição da aplicação formal de uma máxima inflexível contra delegações de poder legislativo para uma posição de determinar se a outorga legislativa de poder é de fato excessiva. E, com isso, o foco do exame judiciário se tem centralizado na adequação dos padrões contidos na legislação autorizada. Segundo a atual teoria americana, o poder legislativo pode ser conferido ao ramo executivo, desde que a outorga de autoridade seja limitada por determinados padrões. “O Congresso não pode delegar qualquer parte de seu poder estabelecido”. O arbítrio conferido não pode ser tão amplo que se torne impossível discernir os seus limites.

Outrossim, precisa haver certa intenção legislativa com a qual se deve harmonizar o exercício do poder delegado.

Princípio semelhante foi expresso pela Comissão de Poderes dos Ministros, da Inglaterra. “Os limites precisos do poder legislativo que o Parlamento pretende conferir a um ministro devem sempre ser expressamente definidos em linguagem clara pelo estatuto que o confere; quando se confere o arbítrio, devem-se definir os seus limites com igual clareza”. (Op. cit., pp. 350-351).

No Direito alemão, a matéria está disciplinada, expressamente, no texto constitucional, dispondo o art. 80, 1, da Lei fundamental de Bonn (1949), que

“O Governo Federal, um Ministro de Estado ou os governos estaduais podem ser autorizados por lei a editarem decretos. Nesse caso, deve a lei prescrever o conteúdo, o objetivo e os limites da autorização. O fundamento jurídico deve constar do decreto.

Se a lei estabelecer que a autorização pode ser delegada a outro órgão, é indispensável que a delegação seja formalizada por decreto” (Durch Gesetz Können die Bundesregierung, ein Bundesminister oder die Landesregierungen ermächtigt werden, Rechtsverordnungen zu erlassen. Dabei müssen Inhalt, Zweck und Ausmass der erteilten Ermächtigung im Gesetze bestimmt werden. Die Rechtsgrundlage ist in der Verordnung anzugeben. Ist durch Gesetz vorgesehen, dass eine Ermächtigung weiter übertragen werden Kann, so bedarf es zur Übertragung der Ermächtigung einer Rechtsverordnung”).

Pretendeu-se, com a disposição em apreço, evitar a derrogação tácita do princípio da legalidade e do postulado democrático através de uma “transferência silenciosa” (“eine geräuschlose Verschiebung”) do poder de legislar ao Executivo. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se restrição a uma eventual “fuga da responsabilidade” (“Flucht aus der Verantwortung”) por parte do legislador, compelindo-o a fixar as linhas fundamentais da legislação (“Grundlinien”), e obviando as autorizações gerais e abstratas (“Globalermächtigungen”), utilizadas abusivamente na República de Weimar (Fritz Ossenbühl, “Die Quellen des Verwaltungsrechts”, in Allgemeines Verwaltungsrecht, Berlim-New-York, 1983, pp. 79/81; Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Heidelberg, 1982, pp. 199/201; Karl-Heinz Seifert e Dieter Hömig (Hrsg), Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Taschen-Kommentar), Baden-Baden, 1985, pp. 368/370).

Não há negar que, a despeito da exigência expressa constante do aludido preceito, tem o Bundesverfassungsgericht entendido que as questões atinentes aos limites da autorização devem ser apreciadas em cada caso (Hesse, op. cit., p. 200). Considera-se, porém, que uma autorização ampla e indefinida é incompatível com o ordenamento constitucional, porquanto, nessa hipótese, já não se mostra possível identificar o seu efetivo conteúdo, assim como os casos em que pode ser aplicada (Hesse, op. cit., p. 200; Ossenbühl, op. cit., pp. 80/81).

E é por isso que se afirma que as questões relativas ao conteúdo, ao objetivo aos limites da autorização constituem sempre questões de interpretação, não podendo a jurisprudência emprestar-lhes inteligência que implique deserção do legislador do dever de tomar decisões concretas (So richtig ist es, dass die Frage nach Inhalt, Zweck und Ausmass der Ermächtigung stets eine Interpretationsfrage ist, so sehr trägt diese Recht — sprechung doch die Gefahr in sich, den gesetzgeber von seiner Pflicht zur Konkretisierung der Ermächtigung zu entbinden”) (Hesse, op. cit., p. 200; v. também Ossenbühl, op. cit., pp. 80/81).

A controvérsia sobre a extensão e os limites do regulamento autorizado intra legem não assumiu relevância extraordinária, entre nós, sob a vigência da Constituição de 1891.

É possível que a inexistência de vedação expressa às delegações legislativas tenha propiciado o surgimento de uma orientação mais flexível quanto ao exercício do poder regulamentar. É o que se pode constatar, v. g., na seguinte passagem da obra clássica de Anníbal Freire da Fonseca sobre o Poder Executivo, verbis:


“As necessidades modernas deram incontestavelmente outro aspecto ao poder executivo, poder de funções permanentes, exercendo a sua vigilância constante e ininterrupta sobre a marcha e desenvolvimento do país e por isso mais propenso a uma intervenção eficiente em todas as manifestações da vida coletiva. A extensão crescente do poder regulamentar tem determinado nos escritores de direito público uma corrente de reação contra o caráter formalístico da lei, procurando irmanar a esta o regulamento, por derivarem ambos do mesmo princípio, se subordinarem à mesma forma, tenderem a fins idênticos, vincularem todos os jurisdicionados às suas disposições, obrigatórias e gerais. E se o regulamento não pode contrariar a lei, que vem completar, esta por sua vez não pode contrariar a Constituição nos países em que o poder constituinte não reside no legislativo ordinário.

“Pode, porém, o regulamento conter disposições, que embora não afetem o espírito da lei, tratem de matéria de que esta não cuidou? Em outras palavras, o regulamento pode legiferar?

É possível que, por omissão, o legislador tivesse esquecido na lei disposições capitais, que reforcem a sua execução e concorram melhor para o objetivo visado. Não havendo antinomia entre os dispositivos, o regulamento, que tem de completar a lei, pode tratar de matéria de que o legislador não cogitou, mas somente com o fim de ampliar o espírito da deliberação legislativa”. (O Poder Executivo na República Brasileira, UnB, 1981, pp. 61/62).

No império da Constituição de 1946, que vedava expressamente a delegação de poderes (art. 36, § 2º), deixou assente o Supremo Tribunal Federal que o princípio da indelegabilidade não excluía “certas medidas a serem adotadas pelo órgão executor no tocante a fatos ou operações de natureza técnica, dos quais dependerá a iniciativa ou aplicação mesma da lei” (Habeas Corpus nº 30.555, Rel. Min. Castro Nunes, RDA 21, p. 136). Asseverou, na oportunidade, Castro Nunes que se a Constituição

“implicitamente declara que o Poder Legislativo não pode delegar suas atribuições, lança uma proibição a ser observada em linha de princípio, sem excluir, todavia, certas medidas a serem adotadas pelo órgão executor no tocante a fatos ou apurações de natureza técnica das quais dependerá a incidência ou aplicação mesma da lei.

É nesses termos razoáveis que tem sido entendida a proibição das delegações legislativas nos Estados Unidos, onde proliferam as Comissões ou Conselhos administrativos que as leis, instituindo ou dispondo sobre certos serviços, estabelecem com certa porção de autonomia indispensável à execução mesma da lei.

O Congresso, dizem Finlay and Sanderson, não pode delegar o poder para fazer a lei; mas pode fazer uma lei com delegação do poder para determinar fatos ou um estado de coisas de que dependa, nos termos que ela mesma estatuir, a sua própria execução ou eficácia — The legislature cannot delegate its power to make a law; but it can make a law decagate a power to determinate some fact or state owen action de pend. (The American Executive and Executive Methods, pág. 322)” (RDA 21, p. 136).

É que, embora considerasse nulas as autorizações legislativas incondicionadas ou de caráter demissório, esta Corte sempre entendeu legítimas as autorizações fundadas no enunciado da lei formal, desde que do ato legislativo constassem os “standards”, isto é “os princípios jurídicos inerentes à espécie legislativa” (MS nº 17.145, Rel. Min. Gonçalves de Oliveira, RTJ 50, p. 472, RE nº 76.729, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, RTJ 71, p. 477; Cfr., a propósito, Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição de 1946, Rio, 1948, vol. I, p. 410; Bonifácio Fortes, Delegação Legislativa, RDA 62, pp. 365-366; Carlos Mário Velloso, art. cit., RDP 65, p. 47-48; v. também Victor Nunes Leal, Delegações Legislativas, Arquivos do M. J. 20, pp. 7-8). Daí observar Carlos Maximiliano que o Supremo Tribunal Federal sempre considerou inadmissíveis leis cujo conteúdo se cingisse ao seguinte enunciado: “O Poder Executivo é autorizado a reorganizar o Tribunal de Contas”, aceitando, porém, como legítimas fórmulas que, v.g., enunciassem: “Fica o Poder Executivo autorizado a reorganizar o Ensino Superior, sobre as seguintes bases: 1) só obtém matrícula os bacharéis em letras diplomados por ginásios oficiais; 2) …” (Op. cit., p. 410).

Ilustrativo desse entendimento é o julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 13.357, de 9.1.1950, Rel. Min. Ribeiro Costa, no qual ficou assente que:

“O regulamento obriga enquanto não fira princípios substanciais da lei regulada. Se o regulamento exorbita da autorização concedida em lei ao Executivo, cumpre ao Judiciário negar-lhe aplicação” (RF 130, p. 150).

Em julgado mais recente, na ADI 2387, tal entendimento restou reafirmado. Veja-se o seguinte excerto do voto da Ministra Ellen Gracie, redatora do acórdão, verbis:


“Verifico que, aqui, pelo menos assim me parece, não temos uma delegação proibida de atribuições, mas apenas uma flexibilidade na fixação de ‘standards’ jurídicos de caráter técnico, como dizia, em voto referido por V. Exa, em ocasião anterior, o Ministro Aliomar Baleeiro.”

Afigura-se, pois, despiciendo qualquer esforço de argumentação para demonstrar que o regulamento autorizado intra legem é plenamente compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, podendo constituir relevante instrumento de realização de política legislativa, tendo em vista considerações de ordem técnica, econômica, administrativa, etc.

Diversamente, a nossa ordem constitucional não se compadece, como já demonstrado, com as autorizações legislativas puras ou incondicionadas, de nítido e inconfundível conteúdo renunciativo. Tais medidas representam inequívoca deserção do compromisso de deliberar politicamente, configurando manifesta fraude ao princípio da reserva legal e à vedação à delegação de poderes. (Cf. Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Congresso e as Delegações legislativas, pp. 181/189; v. também, Hesse, op. cit., pp. 199/201).

Cuida-se, em verdade, de autêntica delegação, ou de uma delegação abdicatória (a way of evading responsability), tal como concebida pela doutrina americana. É o que se depreende do preciso magistério de Siqueira Castro, verbis:

“Pode-se afirmar que quando se trata de delegação abdicatória a única indicação que verdadeiramente é feita pelo legislador delegante é a nomeação do agente delegado e da atividade humana a ser por essa via disciplinada. Em virtude dessa omissão quanto à fixação de limites objetivos que condicionem a atuação normativa do legislador delegado, esse recebe em verdade uma potencialidade legiferante utilizável segundo o seu livre arbítrio. A autoridade receptora da competência normativa investe-se, nesse caso, no mesmo patamar de liberdade e discrição política de que o Poder Legislativo acha-se constitucionalmente investido para editar as regras de direito, subordinando-se somente as normas da Constituição, eis que essas vinculam indistintamente a atuação de todo e qualquer agente do Poder Público.

A rigor, em tal ocorrendo, a única forma de controle que o Legislativo pode exercer sobre o seu delegado é mediante a revogação pura e simples da delegação. E enquanto não revogada por inteiro a transferência da função normativa, o agente delegado tem condições de legislar livre de toda sorte de critérios e condições de nível infraconstitucional. Por força desse ilimitação, o Poder Judiciário também fica destituído de paradigma para aferir da legalidade da legislação delegada em face do ato de delegação que é silente e omisso quanto às condições para o seu exercício. Nesse caso, as decisões da autoridade executiva, embora de caráter normativo seriam incontrastáveis por lei de base anterior, fazendo letra morta o princípio da legalidade e inviabilizando qualquer perspectiva de controle judicial, (…)” (Op. cit., p. 183)

Sobre a distinção entre delegação legislativa e poder regulamentar, precisa é a doutrina do Ministro Carlos Velloso, verbis:

“Delegação legislativa não deve ser confundida, no sistema constitucional brasileiro, com poder regulamentar. A delegação legislativa propicia a prática de ato normativo primário, de ato com força de lei, enquanto poder regulamentar, na Constituição brasileira, é ato administrativo, assim ato secundário, porque, na ordem jurídica brasileira, o regulamento é puramente de execução (CF, art. 84, IV). Quer dizer: o regulamento brasileiro não inova na ordem jurídica. Quando muito, pode-se falar, no nosso sistema constitucional, no regulamento delegado ou autorizado, intra legem, que não pode, entretanto, ser elaborado praeter legem. Se a lei fixa, por exemplo, exigências taxativas, é exorbitante o regulamento que estabelece outras, como é exorbitante o regulamento que faz exigência que não se contém nas condições da lei, podendo esta estabelecer que o regulamento poderá fixar condições além das que ela estatuir. Aí, teríamos uma flexibilização na fixação de padrões jurídicos, o que seria possível, tal como lecionou, no Supremo Tribunal, o Ministro Aliomar Baleeiro.” (Temas de Direito Público, 1ª ed., 2ª tiragem, Belo Horizonte, Del Rey, 1997, p. 431/432)

Fixados tais pressupostos, cabe analisar a constitucionalidade das disposições da Medida Provisória que transferem sua regulamentação ao Poder Executivo.

Dispõe o art. 1º da MP que “a comercialização de energia elétrica entre concessionários, permissionários e autorizados de serviços e instalações de energia elétrica, bem como destes com seus consumidores, no Sistema Interligado Nacional – SIN, dar-se-á mediante contratação regulada ou livre, nos termos desta Medida Provisória e do seu regulamento, o qual, dentre outras matérias, deverá dispor sobre:”. E aí o dispositivo relaciona os temas que serão objeto de regulamento.


Da leitura do caput do art. 1º, caberia de imediato a seguinte indagação: O que o legislador entende por contratação regulada ou livre? Ou ainda, quais os parâmetros e diretrizes legislativas que permitem identificar tais modalidades de contratação, ou ainda, que permitem diferenciar uma modalidade da outra? O fato é que, apesar do uso da expressão “nos termos desta Medida Provisória e do seu regulamento”, da leitura da integralidade da MP não se vê qualquer balizamento que ofereça resposta a tais perguntas. Ou seja, em verdade, contratação regulada e contratação livre serão instituições definidas meramente nos termos do regulamento executivo!

Tal percepção confirma-se da leitura dos dois primeiros incisos do art. 1º, que expressamente transfere ao regulamento a disciplina das “condições gerais e processos de contratação regulada”, e “condições de contratação livre”. “Condições gerais”, chega a dizer o texto. E, repito, não há qualquer baliza para a compreensão do que virá a ser tais modalidades de contratação. A rigor poderão ser qualquer coisa, e não haverá nenhum parâmetro legal de controle. Seja qual for a opção adotada pelo Executivo, ficarão o Poder Legislativo e o Judiciário impossibilitados de dizer “esta disciplina exorbitou o comando da lei”, simplesmente porque não há comando legal algum!

O mesmo ocorre com os demais incisos do art. 1º.

Diz o inciso III que o regulamento disciplinará “processos de definição de preços e condições de contabilização e liquidação das operações realizadas no mercado de curto prazo”. Mas não há qualquer elemento que permita ao intérprete identificar uma decisão do legislador, ainda que ampla, sobre o tema ali disciplinado.

O inciso IV prevê que o regulamento disciplinará a “instituição da convenção de comercialização”. O que é esta convenção? Ela obedecerá a que parâmetros? Nada disto está dito na MP. Além da delegação do inciso IV só há uma outra referência a tal convenção no art. 4º, § 4º, da MP, que prevê que “as regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) serão estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar do mecanismo e da convenção de arbitragem, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996”.

Ora, na mesma linha dos incisos anteriores, vê-se a ausência de qualquer decisão legislativa que ofereça limites ou diretrizes ao exercício do poder regulamentar. Em suma: também aqui poderá o Executivo decidir o que bem entenda, ficando o Legislativo e o Judiciário impossibilitados de proceder a qualquer juízo que envolva uma análise de compatibilidade entre regulamento e lei!

Cabe anotar, ainda, que o “caput” do art. 1º transfere ao Executivo a possibilidade de editar regulamento não só em relação às matérias ali expressamente descritas, mas também em relação a “outras matérias” (“dentre outras matérias”, diz o “caput”). Quais são outras matérias? Isto obviamente não está dito, sendo tal cláusula apenas mais uma manifestação de delegação em aberto.

O mesmo ocorre em relação aos demais incisos do art. 1º. Tenho, portanto, nesse juízo cautelar, que a integralidade do art. 1º é ofensiva ao princípio constitucional da legalidade, expresso nos arts. 5º, II, 84, IV, e à reserva legal especificamente prevista no art. 175 da Constituição.

A mesma questão coloca-se no art. 2º. Prevê o seu caput que “as concessionárias, as permissionárias e as autorizadas de serviço público de distribuição de energia elétrica deverão garantir o atendimento à totalidade de seu mercado, mediante contratação regulada, por meio de licitação, conforme regulamento que disporá, dentre outras matérias, sobre:”. E aí o dispositivo relaciona em seis incisos os temas que serão objeto de regulamento.

São cabíveis aqui indagações semelhantes àquelas formuladas para o art. 1º. Em todos os incisos do art. 2º verifica-se uma ampla delegação ao Poder Executivo, sem que o legislador tenha fixado em lei qualquer decisão que permita controle quanto eventuais excessos no exercício do poder regulamentar. Veja-se, por exemplo, o que dispõe o inciso V, que remete ao regulamento nada mais nada menos que a disciplina sobre “condições e limites para repasse do custo de aquisição de energia elétrica para os consumidores finais”.

Não é difícil perceber que tal inciso V incide sobre um dos temas mais sensíveis na relação que se inicia entre os geradores de energia e termina nos consumidores. Ora, a partir da delegação ali contida, qualquer disciplina infralegal para tais repasses estará necessariamente em conformidade com a lei! Não é possível, em face da ampla delegação desse inciso, dizer que uma condição X ou Y para o repasse seja contrária à lei! Nesse esquema, se o regulamento determinar o repasse integral aos consumidores, não haverá ilegalidade alguma. E também não será ilegal se simplesmente proibir o repasse! Esse me parece um exemplo claro de delegação aberta e ilimitada.


O mesmo se dá em relação a qualquer outro inciso do art. 2º, e em relação aos seus parágrafos.

O § 1º do art. 2º prevê que “na contratação regulada, os riscos associados à geração de energia elétrica serão assumidos ou pelos geradores ou pelos distribuidores, conforme modalidade contratual prevista nos procedimentos licitatórios”. Em tal preceito, a par da referência à contratação regulada, é deferido ao Executivo a definição, via regulamento, da distribuição de riscos entre o gerador e o distribuidor. Mas não é estabelecido qualquer parâmetro legal para balizar as possíveis opções normativas do Executivo. Em termos simples: sob o manto desse dispositivo o Executivo pode estabelecer qualquer regime de distribuição de riscos e mesmo assim estará infenso a um controle de legitimidade de seus atos

Esse é o teste, Senhores Ministros, que estamos obrigados a fazer na análise de delegações legislativas como estas. Quando não for possível vislumbrar qualquer parâmetro legal para controle da atividade regulamentar, permitindo uma liberdade absoluta nas opções do Executivo, restará evidente um quadro de delegação em branco!

O § 2º do art. 2º está contaminado pela potencial inconstitucionalidade do “caput”. Limita-se a determinar que a contratação regulada será formalizada por meio de contratos bilaterais celebrados entre cada concessionária ou autorizada de geração e todas as concessionárias, permissionárias e autorizadas do serviço público de distribuição. Ou seja, no lugar de fixar “standards” para a contratação regulada, prevê a MP a celebração de um contrato que não terá que obedecer a padrão legal algum.

O § 3º, relativo ao processo licitatório que deverá anteceder à contratação regulada, também merece ser suspenso em decorrência da potencial inconstitucionalidade das disposições que lhe servem de pressuposto.

Assentada a plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade do caput do art. 2º, esta também atinge o § 4º do art. 2º, ao dispor sobre o que se deve entender como energia elétrica para os fins da obrigação prevista no caput. Observe-se que no § 4º, II, “c”, há uma disciplina da comercialização da energia de Itaipu, o que foi especificamente objeto de suspensão no julgamento da ADI 2005, por ofensa ao art. 246.

Assim, em relação aos arts. 1º e 2º, cabe concluir que tais disposições transferem ao Executivo, sem qualquer limite, a possibilidade de tomada de decisões políticas fundamentais em tema que a Carta Constitucional reservou expressamente à reserva de lei.

Por óbvio, não estou a defender um modelo inflexível ou demasiado restritivo de reserva legal. O que parece evidente é que, presente uma reserva de lei, cabe ao legislador a tomada das decisões políticas fundamentais, a fixação dos “standards” que pautarão a atividade regulamentar. Admite-se, sim, eventual margem de discricionariedade por parte do Executivo quando no exercício do poder regulamentar.

Retomando a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello, não se há de confundir, porém, a discricionariedade administrativa atinente ao exercício do poder regulamentar com delegação disfarçada de poder. Na discricionariedade, a lei estabelece previamente o direito ou dever, a obrigação ou a restrição, fixando os requisitos de seu surgimento e os elementos de identificação dos destinatários.

Na delegação, ao revés, não se identificam, na norma regulamentada, o direito, a obrigação ou a limitação. Estes são estabelecidos apenas no regulamento (Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit. pp. 98/99; Carlos Mário Velloso, art. cit., RDP 65, p. 46; Pontes de Miranda, op. cit., p. 312). Daí a precisa lição de Velloso, no sentido de que a delegação legislativa propicia a prática de ato normativo primário, com força de lei.

É este justamente o caso dos dispositivos em tela. A eventual disciplina quanto a direitos e obrigações, no âmbito dos arts. 1º e 2º da MP, estará integralmente definida no regulamento.

A questão tem sido tratada no Direito alemão sob a epígrafe da jurisprudência da essencialidade (Wesentlichkeitsrechtsprechung), segundo a qual resta o legislador obrigado a disciplinar as matérias fundamentais, especialmente no âmbito dos direitos fundamentais (Degenhart, Christoph, Staatsrecht I, p. 120). Se isto não significa que todos os atos, em seus mais precisos detalhes, devam ser regulados pelo legislador, sinaliza, pelo menos, que as definições quanto ao conteúdo ou modelo a ser definido é de sua estrita competência.

O princípio da reserva legal assume, aqui, uma evidente tarefa de concretização dos princípios da democracia e da separação de poderes, como em diversas oportunidades vem sendo destacado aqui pelo eminente Ministro Celso de Mello. Veja-se, a propósito, a lição de Manuel Afonso Vaz, ilustre jurista português:


“É, assim, que se aponta a publicidade de questões importantes como critério de racionalidade para a necessária intervenção parlamentar. Como nota KISKER, a reserva do Parlamento desempenha uma função de publicidade, com o sentido de uma garantia de que todo o equacionar normativo das questões mais importantes da vida da comunidade será objecto de debate público cognoscível pelo eleitorado, no qual poderão participar as diversas correntes de opinião partidariamente institucionalizadas. A atribuição ao Parlamento do monopólio da actividade legislativa sobre certas matérias encontraria, pois, fundamento no facto de ser aquele a sede institucional dos debates públicos, uma caixa de ressonância para efeito de informação e mobilização da opinião pública, o local por excelência de conformação dos interesses pluralistas; em suma, o órgão que, devido à sua composição e ao seu processo de funcionamento, logra fazer da lei não uma simples expressão dos sentimentos deste ou daquele sector da sociedade, mas a síntese de posições e de compromissos de interesses. (Lei e reserva da lei: A causa da lei na Constituição Portuguesa de 1976, Porto, 1992, pp. 405 e 406).

No caso em exame, vê-se justamente uma subtração ao debate público, parlamentar, da conformação de um setor essencial para a vida do País, e cuja disciplina primária a Constituição reservou à lei. De fato, a partir dos arts. 1º e 2º, será possível ao Executivo a conformação de qualquer tipo de modelo para o setor elétrico, ficando infenso a qualquer controle por parte do Parlamento.

Considerações específicas sobre o Art. 7º da MP – proporcionalidade

Por fim, considero ainda adequada a análise de uma alteração procedida pelo art. 7º da Medida Provisória sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade. Refiro-me à parte daquele artigo que dá nova redação ao art. 10 da Lei no 8.631, de 4 de março de 1993. A nova redação é a seguinte:

“Art. 10. inadimplemento, pelas concessionárias, pelas permissionárias e pelas autorizadas, no recolhimento das parcelas das quotas anuais de Reserva Global de Reversão – RGR, Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – PROINFA, Conta de Desenvolvimento Energético – CDE, Conta de Consumo de Combustíveis – CCC, compensação financeira pela utilização de recursos hídricos e outros encargos tarifários criados por lei, bem como no pagamento pela aquisição de energia elétrica contratada de forma regulada e da Itaipu Binacional, acarretará a impossibilidade de revisão e reajuste de seus níveis de tarifas, independentemente do que dispuser o respectivo contrato, e de recebimento de recursos provenientes da RGR, CDE e CCC.” (NR)

A leitura de tal dispositivo evidencia potenciais inconstitucionalidades, sob o prisma material, que merecem uma análise imediata neste juízo cautelar.

De início, impressiona a expressão “independentemente do que dispuser o contrato”. A flagrante possibilidade de violação a contratos já firmados afigura-se suficiente para suspender o dispositivo.

Também é duvidosa a constitucionalidade do dispositivo sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade, tendo em vista suas três máximas parciais, a saber, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Há, em tal dispositivo, uma aparente inconsistência entre meios e fins. Busca-se, com a disposição, o combate à inadimplência. Mas é duvidoso que a ampla proibição ali contida para a revisão e o reajuste tarifários, seja efetivamente um meio apto para combater a inadimplência. Isto porque tal restrição ampla e irrestrita, ao desconsiderar, por exemplo, uma inadimplência pontual e conjuntural em relação a apenas um tipo de custo do concessionário, pode em verdade agravar e fomentar uma situação desequilíbrio econômico-financeiro que somente perpetua a inadimplência.

Também é plausível que a disposição não atenda à proporcionaldidade em sentido estrito. Isto porque, ante a ampla proibição ali contida, pode-se imaginar que um pequeno adiamento de pagamento de pequena parcela pode representar o desequilíbrio global da concessão sem o reajuste e a revisão. E também há um potencial desvio de finalidade: a revisão e o reajuste destinam-se a recompor o equilíbrio e não a impor pena ao concessionário. Há, potencialmente, dupla penalização do concessionário, que já está sujeito a não receber financiamentos e a outras sanções do regulador.

Extinção do MAE

Opõe-se o PFL à dissolução do Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE por determinação legal. Sustenta que “constituindo o MAE pessoa jurídica de direito privado (a) constituída regularmente sob a forma de associação civil sem fins lucrativos e (b) composta por agente e entidades privados vinculados à prestação de serviços de energia elétrica, descabe à lei impor sua dissolução, bem como ao Poder Executivo interferir no seu funcionamento com o objetivo de encerrar as suas atividade.”


Invocando o inciso XIX, do art. 5º da Constituição, sustentam que a dissolução de associação somente pode ser efetivada por decisão judicial com trânsito em julgado.

Não me parece plausível essa argumentação, pelo menos nesse juízo cautelar.

Com efeito, a Lei nº 10.433, de 24 de abril de 2002, autorizou a criação do MAE, como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, mas no mesmo dispositivo (art. 1º) determinou quais os seus integrantes (titulares de concessão, permissão ou autorização e outros agentes, na forma da regulamentação, vinculados aos serviços e às instalações de energia elétrica), bem como a sua finalidade (viabilizar as transações de compra e venda de energia elétrica nos sistemas interligados).

A mesma Lei no art. 2º estabeleceu expressamente que são órgãos do MAE a Assembléia-Geral, o Conselho de Administração e a Superintendência.

Logo, evidencia-se que o MAE caracteriza-se como uma pessoa jurídica de direito privado “atípica”, com forte coloração pública. É uma instituição peculiar que desempenha uma função de eminente interesse público.

Ressalvado um melhor exame da matéria, entendo que, no momento em que se está remodelando o setor elétrico, e o MAE é dele integrante, não há como se afastar a possibilidade de o poder público estabelecer a sucessão do MAE pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE.

Indefiro neste ponto a cautelar requerida.

Interferência no funcionamento do ONS

Alega-se, quanto às disposições relativas ao NOS, violação ao art. 5º, XVIII. Tal como o MAE, cuida-se o ONS de entidade associativa que não se enquadra no modelo tradicional de uma associação privada. Assim, ressalvado melhor exame quando do julgamento do mérito, não vejo plausibilidade da impugnação na parte da MP que promove alterações no Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS.

Uso da arbitragem

A alegação de inconstitucionalidade do art. 4º, § 4º, também não me parece plausível.

Note-se que a análise de tal dispositivo, na parte em que transfere à convenção de comercialização as regras para a solução de controvérsias, fica prejudicada em face da suspensão do art. 1º, IV.

Todavia, ainda que desconsiderada a convenção de comercialização, remanesce no dispositivo comando útil, a permitir que tais regras venham definidas no estatuto da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE.

Nessa parte, não vejo plausibilidade na alegada inconstitucionalidade. Há três fundamentos para a impugnação.

O primeiro é baseado no art. 5º, XXXV (que veda que a lei exclua da apreciação do Judiciário quanto a lesão ou ameaça a direito). Alega-se que a MP estaria impondo o uso da arbitragem para a resolução de conflitos entre os membros da CCEE, “sem que eles manifestem previamente sua concordância”.

Não vejo plausibilidade em tal argumento, sobretudo a partir da remissão, existente no final do dispositivo, à Lei nº 9.307. Diz a disposição que “as regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE serão estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar do mecanismo e da convenção de arbitragem, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996”.

Ora, nesse primeiro exame, vê-se que a disciplina da arbitragem deverá ter como paradigma os termos da Lei 9.307. Ao menos nesse juízo cautelar, não vislumbro tal inconstitucionalidade.

O segundo argumento tem por base o art. 5º, XVIII, da Constituição. Alega-se que o dispositivo promove intervenção indevida do Poder Público em associação de caráter privado. Não vejo plausibilidade em tal argumento pelas mesmas razões que apontei quanto às normas relativas ao MAE e ao ONS.

O terceiro argumento é no sentido de que a MP teria disciplinado matéria relativa a processo civil. Não vejo consistência no argumento. Ainda que se considere a arbitragem como tema afeto ao processo civil, não se vê na disposição impugnada uma disciplina para a arbitragem, mas apenas uma previsão no sentido de que tal mecanismo de solução de controvérsias será adotado nos termos da Lei 9.307.

Conclusão

Concluo, portanto, meu voto, no sentido de conferir, à íntegra dos dispositivos da Medida Provisória nº 144, interpretação conforme a Constituição para afastar sua incidência em relação a qualquer atividade relacionada à exploração do potencial hidráulico para fins de produção de energia, tendo em vista a restrição imposta pelo art. 246 da Constituição.

E ainda, voto no sentido da suspensão da vigência dos arts. 1º, 2º, e do art. 7º da Medida Provisória 144, na parte em que este último dá nova redação ao art. 10 da Lei no 8.631, de 4 de março de 1993. E com a ressalva da interpretação conforme, indefiro a cautelar quanto aos demais dispositivos.

Nota de rodapé

(1) Vale observar que naquele julgamento, onde a liminar restou indeferida, houve divergência de dois ministros (estavam presentes na sessão os seguintes ministros: Celso de Mello (Presidente), Moreira Alves, Sydney Sanches, Octávio Gallotti, Marco Aurélio, Ilmar Galvão, Francisco Rezek e Maurício Corrêa. Ficaram vencidos os Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, que deferiam o pedido de liminar integralmente).

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