Mera formalidade

Juiz pode dispensar exigências formais em documentos

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3 de fevereiro de 2004, 17h52

A entrada em vigor do novo Código Civil acaba de completar um ano e continua a ensejar a publicação de uma série de artigos e comentários, visando contribuir para um melhor entendimento desse Estatuto. Um dos pontos interessantes a serem abordados — e que não suscitou a devida atenção dos estudiosos da matéria –refere-se ao exame da necessidade de aposição da assinatura de, em geral, duas testemunhas para que os documentos particulares tenham validade. E, no caso específico de uma confissão de dívida, para que se aperfeiçoe como título executivo extrajudicial.

Esclareça-se, de início, que, no exemplo acima citado, a não observância do requisito da assinatura das duas testemunhas acarretaria, na pior das hipóteses, a conseqüência, apenas, de não se reconhecer ao instrumento a qualidade de título executivo extrajudicial, não causando, contudo, a perda do direito de o credor cobrar a obrigação nele estampada.

Partindo-se do conhecido ensinamento de Moacyr Amaral Santos de que o documento é uma res, uma coisa representativa de um fato, é possível se verificar o excesso de formalismos, muitas vezes sem efeitos práticos, existentes em nosso ordenamento jurídico.

O Código de Processo Civil, instituído pela Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 — o qual, ao longo de sua vida, vem passando por diversas reformas — contempla, em seu artigo 585, inciso II, entre outros, o documento particular, condicionando, de forma expressa, sua qualidade de título executivo extrajudicial ao fato de conter, além da assinatura do devedor, também a de duas testemunhas.

Sucede, no entanto, que, com o tempo, referida imposição foi perdendo força perante os tribunais, passando a surgir entendimentos no sentido de considerar-se título executivo o documento particular mesmo quando ausentes as assinaturas de testemunhas sempre que não houver mácula à essência do ato ou com relação à expressão da vontade das partes, posição esta mais coerente com a realidade da vida prática.

Assim, a assinatura de testemunhas em documentos particulares, excetuando-se as situações em que seja realmente imprescindível, tornou-se meramente figurativa, expressando uma formalidade vazia de sentido, mesmo porque, na maior parte das vezes, tais testemunhas sequer estão presentes ao ato. Apesar da manutenção, no novo Código Civil, de alguns dispositivos legais que atribuem importância à forma prevista em lei, como, exemplificativamente, os artigos 107 e 166, inciso IV, o certo é que o espírito que presidiu a elaboração do novo Código foi, evidentemente, o da adequação da disciplina normativa às exigências do comércio jurídico.

É princípio basilar de hermenêutica jurídica aquele segundo o qual a lei não contém palavras inúteis: verba cum effectu sunt accipienda. Ou seja, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia. Não se presumem, na lei, palavras inúteis (Cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 8a. ed., Freitas Bastos, 1965, p. 262).

Impõe-se, desse modo, que, salvo nas hipóteses em que a forma seja da substância do ato, o operador do direito tenha sempre em mira o disposto no artigo 113 do atual Código Civil, a fim de aquilatar-se se, em determinadas circunstâncias, pode haver flexibilização de uma ou outra exigência legal. Com efeito, reza aludido dispositivo legal que “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e costumes do lugar de sua celebração”. No entendimento do I. Prof. Alípio Silveira, in “A Boa-Fé no Direito Brasileiro – Doutrina e Jurisprudência”, 1º Vol., São Paulo, 1972, “A boa-fé pode ser considerada, no direito positivo, sob dois ângulos distintos: primeiramente, como fato suscetível de valoração e de prova; em segundo lugar, na medida dos efeitos variados que a lei e os princípios atribuem a esse fato.”

Assim sendo, entendemos que a interpretação com base na boa-fé e nos usos e costumes do lugar da celebração do ato jurídico, expressamente prevista pelo Estatuto Civil, pode permitir ao juiz afastar determinada exigência de ordem formal, a fim de impedir que prevaleça a forma pela simples forma, evitando-se, destarte, que, no julgamento do caso concreto, a ausência de determinada formalidade não acabe tendo valor maior que a verdadeira intenção das partes quando da realização do negócio jurídico.

Portanto, entendemos que o art. 113 do CC pode ser invocado para permitir a validação de determinados negócios jurídicos quando ficar constatada a boa-fé dos agentes no momento de sua celebração, embora ausentes certas formalidades previstas em lei, de modo que prevaleça a essência do documento, legitimando-se os seus efeitos. Em outras palavras, deve-se buscar, acima de tudo, o espírito que norteou a vontade das partes com relação ao ato em questão, mesmo quando se constate a ausência de alguma formalidade exigida pela lei, como, por exemplo, a assinatura das testemunhas, prevista no art. 585, inciso II, do CPC.

Por outro lado, não há que se argumentar no sentido de a previsão de assinatura de testemunhas visa a evitar-se eventual fraude. Em verdade, fraudes podem acontecer em qualquer tipo de documento, em cheques, em notas promissórias, até mesmo em escrituras públicas.

Diante disso, o que se pode extrair da atual sistemática do Código Civil é que o legislador reforçou o princípio da boa-fé, além do que atribuiu importância aos os usos e costumes em detrimento do exacerbado rigor formal ainda presente no ordenamento jurídico. Imperioso ponderar que o abrandamento dessas exigências legais configura tarefa delicada, devendo ser operada com bastante cautela, a fim de evitarem-se abusos e má-fé, que acabam causando problemas e acarretando maior morosidade na prestação jurisdicional.

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