Lições da Cobra

O uso banal de grampos telefônicos no Brasil e a Anaconda.

Autor

  • Antonio Rayol

    é delegado de Polícia Federal de Classe Especial doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino de Buenos Aires (UMSA) e conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito e Criminologia (IBDC).

2 de fevereiro de 2004, 10h01

Que os desvios de conduta de agentes públicos, ou de quem quer que seja, devam ser rigorosamente investigados, é algo que não se discute e deve ser apoiado! Todavia, a forma como algumas dessas investigações vêm sendo conduzidas merece exame cuidadoso porque representam séria ameaça ao Estado de Direito, já que têm atropelado a letra das leis e princípios constitucionais fundamentais, pertinentes aos direitos e garantias individuais.

A pródiga safra relativamente recente de sensacionais escândalos, alguns verdadeiros — outros nem tanto — têm sido possibilitada pelo uso banal de interceptações telefônicas, alçadas à categoria de panacéia milagrosa, ao contrário do que estabelece a lei 9.296, que fixa limites muito claros a esta séria medida de exceção ao direito de privacidade que constitui o “grampo” telefônico.

A citada lei estabelece que a quebra do sigilo telefônico só será concedida quando a prova não puder ser estabelecida por outros meios de investigação. O fato é que os grampos telefônicos estão sendo autorizados não como último recurso da investigação, mas como medida preliminar, sem que qualquer outro tipo de investigação haja sido tentado anteriormente.

A lei em questão também prescreve que o “grampo” só será concedido quando constatados “indícios razoáveis” de materialidade e autoria do delito que se investiga. Na verdade, em casos concretos e documentados no Rio de Janeiro (e possivelmente ocorrendo em todo o Brasil), a medida de exceção foi autorizada com base em “disque denúncia”, o que é no mínimo leviano e irresponsável, para não dizer ilegal, pois uma denúncia anônima está longe de constituir base sólida para justificar a quebra do sigilo das comunicações de um cidadão.

Quanto aos prazos da violação da intimidade de comunicações ocorre uma verdadeira festa! Se a lei fala em 15 dias prorrogáveis por igual período (quando houver necessidade objetivamente demonstrada), há casos em que um juiz federal concedeu a medida por prazo inicial de 90 dias, com prorrogações de 30 dias, para não mencionar investigações em que os “grampos” são prorrogados indefinidamente por até mais de um ano, naquilo que a doutrina já chama de “grampo prospectivo”, absurdo que a lei 9.296 jamais pretendeu permitir, porque não consiste em investigar um fato ilícito objetivo, mas trata de escarafunchar a vida de um cidadão, coisa de fazer inveja aos agentes da GESTAPO e ao Santo Ofício da Inquisição.

Quanto ao sigilo determinado pela lei 9.296, que tem o propósito de proteger os cidadãos “grampeados” em nome do princípio constitucional da presunção de inocência, o mesmo virou letra morta, já que a divulgação de conversas gravadas nos noticiários do horário nobre das emissoras de televisão transformou as investigações policiais em um show de mídia, em prejuízo dos suspeitos que são automaticamente execrados e linchados, tornando desnecessária a atuação do Poder Judiciário — que não precisa mais julgá-los — pois que já foram inapelavelmente considerados culpados pela opinião pública: a mesma que escolheu libertar Barrabás e condenou Jesus Nazareno ao Calvário.

As conversas gravadas são descontextualizadas e interpretadas ao sabor dos humores e interesses dos investigadores, que divulgarão apenas o que interessar na defesa de suas teses acusatórias.

Se houver nomes de celebridades, tanto melhor, o Ibope será maior! Advogados que exercem o papel constitucional de defesa de acusados, função essencial à administração da Justiça — segundo a Lei Maior — são hoje considerados uma espécie de bucaneiros, automaticamente confundidos com os supostos crimes de seus clientes e passam a ser tratados como membros das “quadrilhas”, onde tem o papel de “atrapalhar” e “dificultar” investigações, quando na verdade o que fazem é exigir o incondicional respeito aos direitos dos suspeitos seus clientes.

Na esteira deste raciocínio distorcido por mentes escatófilas, o recebimento dos cabíveis e necessários honorários passa a ser interpretado como partilha de propinas e butins.

Se os advogados mencionados nos “grampos” forem renomados a coisa fica ainda mais vistosa… A audiência cresce e as tiragens dos jornais e revistas atingem níveis incomuns!

A perfeita mistura de todos esses ingredientes só é possível, porém, com a indispensável cooperação de autoridades de todas as instituições envolvidas nas investigações que — abandonando o recato e a discrição que deveria pautar a conduta de quem exerce poder público — se deixam seduzir e se quedam deslumbrados com a notoriedade proporcionada pelos holofotes da mídia, mas, tal e qual mariposas, podem acabar por queimar suas asas, não sem antes arruinar de forma irreparável a reputação de muitos inocentes.

Há também séria irregularidade quanto à inobservância do princípio do contraditório, obrigatório na função judicante conforme determinado no inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal.

Em sendo a concessão da quebra do sigilo telefônico uma medida de natureza cautelar, pode o juiz decidir inaudita altera pars, pois que o conhecimento prévio do ato pela outra parte – o cidadão “grampeado” – tornaria obviamente a medida inútil. Entretanto isso não significa que o contraditório não ocorrerá jamais!

Deverá incidir então o chamado contraditório diferido, quando a parte atingida pela medida (o grampo telefônico), deverá tomar conhecimento do procedimento e se manifestar, podendo até mesmo adotar medidas de retaliação legal cabíveis quando for o caso, nas esferas administrativa, penal e cível.

Na verdade, o que acontece na prática é que cidadãos que tiveram seu sigilo telefônico violado (em investigações que foram encerradas por nada terem comprovado quanto à prática de atos ilícitos), sequer ficam sabendo que sua intimidade foi devassada pelo Estado, quando o correto, em obediência ao princípio do contraditório, é que fossem intimados — pelo mesmo juiz que concedeu a medida — a tomar conhecimento do procedimento.

A própria lei 9.296, ao tratar da destruição das gravações em seu artigo 9º, estabelece que o ato poderá ser presenciado pelo cidadão “grampeado” ou por seu advogado.

A respeito de tudo o que foi dito até aqui, creio que a tal Operação Anaconda pode vir a ser um marco histórico por proporcionar muitas lições para o futuro!

Por envolver figuras de destaque no mundo jurídico — entre as quais há certamente culpados e inocentes — e pelo conseqüente interesse que então desperta, a Anaconda pode provocar a discussão de muitos abusos cometidos decorrentes do uso indevido de instrumentos legais e do desrespeito a princípios constitucionais garantidores de direitos individuais.

Seu relatório final mostra, conforme a matéria Rastros da Cobra — como sempre bem trabalhada pelo jornalista Claudio Julio Tognolli — publicada na revista ConJur, que os investigadores responsáveis (ou talvez nem tanto), parecem não ter se limitado ao “relatório conclusivo” prescrito no CPP, que atrela obrigatoriamente conclusões a fatos comprovados, mas teriam emitido “juízos de valor”, o que vários doutrinadores, dentre os quais Mirabete, afirmam não ser atribuição de autoridades policiais, e assim, tais investigadores teriam divagado em insinuações, especulações e elucubrações imaginativas fundamentadas em premissas desprovidas de alicerces probatórios, possivelmente incorrendo naquilo que Heleno Fragoso chamou de “criação mental” in ILEGALIDADE E ABUSO DE PODER NA DENÚNCIA E NA PRISAO PREVENTIVA.

O abuso que atinge um, ameaça a todos! Ou medidas urgentes são tomadas para reverter esta esculhambação jurídica, ou podemos rasgar a Carta Magna, por absoluta inutilidade!!!

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