Caminho das pedras

"Reforma deve transcender questões de menor importância."

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2 de fevereiro de 2004, 14h27

A reforma do Judiciário deve transcender as questões funcionais de menor importância, como salários e férias de magistrados ou qual deva ser a composição do eventual Conselho Federal da Magistratura, e se concentrar em solucionar o óbvio, sob pena do aumento da incredulidade.

Na última década, juristas, processualistas e membros dos Três Poderes dos quatro cantos do país, norteados pelo princípio da instrumentalidade, promoveram mudanças significativas no sistema judiciário brasileiro. As inúmeras alterações no Código de Processo Civil, os juizados especiais cível e criminal, a arbitragem e a penhora “on-line” são exemplos de avanços que não podemos renegar da busca por uma Justiça mais democrática e de melhor atendimento ao jurisdicionado. Vieram também os investimentos em tecnologia da informação, disponibilizando serviços com qualidade igual ou superior àqueles oferecidos pela iniciativa privada. A facilidade no acompanhamento dos processos, as intimações via internet e o Fórum Social indicam, sem dúvida, o caminho que devemos continuar seguindo.

No entanto, não podemos ser envolvidos por efeitos de ilusionismo. Todos nós sabemos os verdadeiros motivos que estão levando o Judiciário ao descrédito. Para resolvê-los não basta identificá-los, é necessário enfrentá-los e solucioná-los para resgatar a credibilidade que almejamos. Qualquer pessoa que tenha o mínimo de experiência no contencioso seja ele de qualquer área do direito ou exercido em qualquer parte do país, sabe que a lógica do funcionamento da Justiça brasileira beneficia o não cumpridor de suas obrigações, o devedor, o mau pagador.

O longo tempo das demandas, a inexistência de penalidade ao vencido, a cobrança de juros baixos e o burocrático processo de execução são convites tentadores para não honrar os compromissos e discuti-los na Justiça. Esta verdadeira associação criminosa conta ainda com a chance de um (bom) acordo (parcelado e com desconto) no futuro e até com a probabilidade de uma eventual decisão favorável. Tudo, obviamente, financiado com o dinheiro do já sufocado contribuinte, que é necessário para a manutenção da megaestrutura estatal que detém o Poder Judiciário.

Neste cenário, qualquer pessoa que pense mais com seu bolso do que com sua consciência, identificará no litígio judicial uma forma “barata” de engordar sua conta bancária. Não há dúvida, o colapso do Judiciário foi causado porque é vantajoso dever na Justiça!

Por mais esdrúxulo que possa parecer, quem mais se utiliza deste desvirtuamento do Poder Judiciário é o próprio Estado enquanto devedor. Amplo conhecedor das dificuldades enfrentadas pelos cidadãos injustiçados que querem lutar por seus direitos na Justiça, é detentor de benesses jurídicas absolutamente inadmissíveis como: prazos prolongados, recursos obrigatórios, limitadores decisórios aos magistrados, isenção de custas, sucumbência reduzida, e uma forma de pagamento de suas execuções, chamada de precatório, que melhor se traduz em moratória. Com um corpo de profissionais capacitado para defendê-lo em juízo, não reluta em descumprir leis ou sonegar direitos, a fim de criar mais uma batalha judicial e protelar anos o pagamento. De sua ganância não escapam nem seus trabalhadores, pensionistas ou aposentados, que representam a maior parte das ações que abarrotam nossos tribunais. Sem dúvida o Poder Público é o grande vilão da Justiça!

Aos membros do Judiciário também cabe uma parcela de responsabilidade pelo descrédito atual, não tanto pela atuação reprovável de alguns dos seus pares, que passaram a freqüentar as páginas policiais, mas principalmente pela ausência de posicionamentos austeros exigindo cumprimento imediato de suas ordens ou de acórdãos que perdem seus efeitos diante da posição política de um governante em não pagar um precatório. Casos como esses fazem com que os jurisdicionados, após terem depositado anos de esperanças, deixem de acreditar em Justiça e, conseqüentemente, no Poder Judiciário.

Em que pese a sensação de crise que vivemos, ela deve ser utilizada como propulsora para proposição de medidas que realmente venham a modificar a distribuição da Justiça. Temos que inverter a equação ao ponto que ela venha a servir realmente para proteger os direitos dos cidadãos de bem, incentivando a sociedade a honrar seus compromissos e a cumprir suas obrigações.

Nosso ministro da Justiça, ao assumir o cargo, se propôs a fazer uma reforma estrutural no Poder Judiciário e contou com o total apoio da população. É isto que nós queremos e esperamos da Câmara do Deputados e do Senado Federal. A reforma do Judiciário deve transcender as questões funcionais de menor importância, como salários e férias de magistrados ou qual deva ser a composição do eventual Conselho Federal da Magistratura, e se concentrar em solucionar o óbvio, sob pena do aumento da incredulidade.

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