Pagamento parcial

Banco não pode devolver cheque se há parte de dinheiro em conta

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2 de fevereiro de 2004, 10h35

A Lei Uniforme de Genebra, em seu artigo 39, faculta ao emitente de uma nota promissória o direito de efetuar pagamento parcial da quantia mencionada no título e atribui ao beneficiário o dever de aceitar tal pagamento. Qual seria o objetivo do legislador em impor ao tomador o dever de aceitar pagamento parcial da dívida? É sabido que a responsabilidade no direito cambiário é solidária, ou seja, caso o devedor principal não efetue o pagamento, poderá o portador executar o avalista e endossantes. Assim, a fim de preservar o patrimônio destes, tendo o emitente recursos para saldar parte de sua dívida, fica o tomador obrigado a aceitar tal pagamento; com isso, os demais coobrigados somente responderão por parte do débito.

Em se tratando de cheque, que também é uma espécie de título de crédito, embora seja ordem de pagamento à vista, fica o banco sacado obrigado a efetuar parte do pagamento da quantia prevista no título, caso o correntista emitente não tenha o valor integral da dívida, mas parte deste? Apesar dessa prática não ser utilizada pelas instituições financeiras, a Lei do cheque (7357/85) é clara em seu artigo 38 parágrafo único:

“parágrafo único: o portador não pode recusar pagamento parcial, e, nesse caso, o sacado pode exigir que conste do cheque e que o portador lhe dê a respectiva quitação”.

Assim, ao apresentar um cheque para pagamento e dispondo o correntista de apenas parte da quantia devida, fica o banco sacado obrigado a pagar ao beneficiário a quantia disponível e dar quitação parcial no título, cabendo ao portador o direito de executar o sacador em relação ao valor remanescente.

O objetivo da norma não foi apenas beneficiar o credor com a possibilidade de satisfazer seu direito em face de qualquer quantia disponível na conta do correntista, mesmo que inferior ao valor devido, mas primordialmente de resguardar os interesses dos demais coobrigados, em razão de qualquer pagamento parcial.

Sabe-se que o Código Civil Brasileiro em seu art.277 prevê que o pagamento efetuado por um dos coobrigados aproveita aos demais. Mais adiante, o art. 902, §1º determina que o credor não pode recusar o pagamento, ainda que parcial.

Registre-se ainda que o art. 903 determina a aplicação das disposições do código, relativas a titulo de crédito, aplica-se a todos os títulos, cujas leis específicas não disponham de forma diversa.

Criou-se, portanto, uma relação de norma geral e norma especial entre o Código Civil Brasileiro e a lei específica de qualquer título de crédito.

Portanto, para que se pudesse desconsiderar o art. 902 do CC, no que se refere ao cheque, deveríamos ter disposição naquela lei do cheque diversa do art. 902. Todavia, tal não ocorre. Conforme já foi mencionado, a Lei do cheque determina que o portador não pode recusar pagamento parcial.

Assim, as duas normas em referência coexistem no ordenamento jurídico, determinando duplamente que as instituições financeiras operem pagamento parcial do título, uma vez apresentado para pagamento.

A norma é imperativa, ou seja, não pode ser afastada pela vontade das partes envolvidas na relação contratual de depósito bancário, já que possui efeitos pra outras pessoas além daquela relação.

A recusa do sacado, portanto, configura ato ilícito que dispensa requisição do credor de pagamento parcial, bastando para sua configuração, a apresentação e recusa do banco diante de saldo insuficiente.

Noutro giro, restará configurado dano aos co-obrigados na recusa, pois ficarão sujeitos ao pagamento do valor integral, mesmo dispondo o devedor principal de parte do valor devido.

Registre-se que a norma não está a configurar responsabilidade subsidiária, embora pudesse a lei estabelecê-la de forma expressa se assim quisesse.

Observe-se que em nenhum momento o credor estava obrigado à tentativa de executar o patrimônio do devedor principal antes de direcionar a execução contra os coobrigados.

A única exigência é de apresentação do título ao sacado para configurar inadimplemento. Devolvido o título por insuficiência de fundos, qualquer devedor poderá ser acionado sem poder argüir benefício de ordem, instituto jurídico inexistente nas obrigações solidárias.

Na prática, porém, o desrespeito aos dispositivos se tornou comum na prática bancária. As instituições preferem devolver o cheque, sem qualquer pagamento, causando reflexos avassaladores para os devedores que estão na cadeia como solidários.

Por outro lado, não se observa no foro, o exercício de direito de regresso em face do banco pelo descumprimento do dever legal a ele imposto.

Vejamos um exemplo: o cheque é emitido no valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). No momento da apresentação, porém, o saldo da conta era de R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais). O banco, nesta ocasião, devolverá o cheque por insuficiência de fundos, o quê por si só opera a possibilidade do credor se valer do patrimônio dos coobrigados.

Ora, caso o banco efetuasse o pagamento parcial, a dívida seria redirecionada para os coobrigados pelo valor remanescente. Mas como não houve pagamento algum, estarão todos sujeitos ao pagamento integral, ou seja, de um milhão de reais, acrescidos de juros de mora, a contar do inadimplemento, sobre todo o valor, embora a mora só devesse incidir sobre a diferença entre o valor do título e o saldo efetivamente disponível (no caso, sobre quatrocentos mil reais).

Conclui-se, assim, que o desrespeito opera dano tanto ao credor, que no momento nada recebe, quanto aos demais devedores, que serão demandados pelo valor integral da dívida.

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