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Ministério Público tenta impedir desativação de escola em São Paulo

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29 de dezembro de 2004, 16h50

O fechamento da Escola Estadual Martim Francisco, localizada no bairro Vila Nova Conceição, em São Paulo, poderá ser impedido caso a Justiça acolha a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Estadual.

A escola, que funciona há 66 anos no bairro, foi construída pelo governo estadual em um terreno doado pela prefeitura de São Paulo. Em julho deste ano, a Secretaria Municipal de Educação pediu ao governo do estado que devolvesse a área. O governo acatou o pedido e informou que, devido a baixa demanda, os alunos poderiam ser transferidos para outras unidades educacionais.

No entanto, de acordo com os promotores Motauri Ciocchetti de Souza e Vidal Serrano Nunes Júnior, a escola Martim Francisco atende 1.500 alunos e o terreno ainda abriga um posto de saúde que presta uma média de quatro mil atendimentos por mês.

Recentemente, a prefeita Marta Suplicy (PT) encaminhou para a Câmara Municipal o projeto que autoriza o Executivo municipal a dar nova classificação para o uso do imóvel e ainda firma um acordo de permuta para assumir uma área da empresa Pan American Estádios, localizada na Rodovia Raposo Tavares, onde há algum tempo se planejou construir o estádio do Corinthians.

Os vereadores aprovaram o projeto. Mas, para os procuradores, a mudança de destinação do prédio escolar contraria a própria Constituição que estabelece a garantia e manutenção dos serviços educacionais.

Eles destacam que há defasagem de vagas na cidade de São Paulo e, com o fechamento da escola, os alunos poderão ser prejudicados. “Mantida a situação vigente, parece que a resposta a esta última indagação é positiva: o Município de São Paulo apresenta carência de dezenas de milhares de vagas no ensino básico e, ao mesmo tempo, as Requeridas, consertadas entre si, preocupam-se em fechar e negociar expressivo espaço público vocacionado para atender à demanda reprimida, agredindo de forma contundente o interesse público e fazendo tábula rasa dos preceitos constitucionais e legais citados”, ressaltam. Além disso, caso a permuta seja concretizada, o fechamento do posto de saúde, segundo o MP, fere o princípio da continuidade dos serviços públicos essenciais.

O MP pede que seja concedida uma liminar que impeça o município de negociar o espaço e quer a garantia da abertura de matrículas para 2005 na escola Martim Francisco.

Leia a íntegra da ação

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA CAPITAL.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, através a Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude, pelos Signatários, vem, respeitosamente, à presença de V. Exa. para, nos termos dos arts. 129, inc. III da Constituição Federal, 25, IV, a, da Lei 8.625/93, 103, VIII da Lei Complementar Estadual 734/93, 5º da Lei 7.347/85 e 201, V e 208 e seguintes da Lei 8.069/90, propor ação civil pública sob o rito ordinário, com pedido de antecipação de tutela em face do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, com sede no Palácio Anhangabaú, situado no Viaduto do Chá, nº 15, e da FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, representada, por força do art. 12, I, do mesmo Estatuto, pelo Procurador-Geral do Estado, domiciliado no Pátio do Colégio, s/nº, ambos nesta Capital, pelos motivos de fato e razões de direito que doravante passa a aduzir.

I. DOS FATOS.

Em 1938, em área cedida pela Municipalidade, o Estado de São Paulo erigiu, na Rua Domingos Fernandes, junto à Avenida Santo Amaro, o então denominado Grupo Escolar da Vila Olímpia, que posteriormente teve seu nome alterado para Escola Estadual Martim Francisco.

Dita unidade educacional, à época, se encontrava implantada em área de baixa urbanização, ocupando uma quadra inteira em região onde predominavam chácaras.

Posteriormente, com o crescimento da Cidade, a unidade educacional passou a estar situada em área de expressiva valorização imobiliária, ocupando um quarteirão inteiro no bairro da Vila Nova Conceição, conhecido por possuir edifícios de altíssimo padrão.

A unidade educacional sempre conviveu em harmonia com a vizinhança, mantendo taxa de ocupação média de 1.500 (mil e quinhentos) alunos, sendo certo que, muito embora anunciado seu fechamento, há quase mil e cem crianças e adolescentes que seriam por ela atendidos no ano letivo de 2005, como se observa de fls. 196, sendo que tal número não é equivalente ao dos anos anteriores porque não houve abertura de matrículas para a referida escola.

Contudo, em que pese a existência de expressiva demanda e o fato de que, na Cidade de São Paulo, há imensa defasagem entre o número de vagas ofertado pela rede pública de ensino e o de crianças que a ela buscam acesso, notadamente no nível infantil, a Prefeitura, por seu Secretário de Governo, em julho próximo passado, expediu ofício ao Secretário Estadual da Educação, solicitando fosse devolvida a área em que situada a unidade educacional, após sessenta e seis anos.


Poucos dias após, o Secretário Estadual da Educação, em resposta ao cogitado ofício, informou que “considerando a pouca demanda atendida pela referida unidade escolar, após consulta a Fundação para o Desenvolvimento da Educação, concluiu que os alunos poderão, a partir do ano letivo de 2005, serem atendidos por outras unidades escolares próximas”.

Implementadas as tratativas – e em que pese a procura pela unidade educacional tenha se mostrado estável ao largo dos últimos cinco anos, como se observa de fls. 196 –, acertada a devolução do bem, a Prefeita Municipal, pouco antes do término de seu mandato, encaminhou à Câmara projeto de lei, que recebeu o número 0515/2004, propondo fosse alterada a classificação do imóvel, de bem de uso especial para dominial, assim como fosse o Executivo autorizado a permutar dita área por espaço situado às margens da Rodovia Raposo Tavares, pertencente à empresa Pan American Estádios Ltda., onde outrora seria erigido estádio de futebol em virtude de parceria firmada pelo Sport Club Corinthians Paulista com fundo de investimentos sediado nos Estados Unidos da América.

Em votação realizada no final do exercício legislativo, a Câmara Municipal, por maioria, culminou por aprovar dito projeto, permitindo assim ao Executivo realizar a mencionada permuta.

Registre-se, em acréscimo, que no local existe um posto de saúde em pleno funcionamento, recentemente reformado pela Municipalidade de São Paulo.

Referido posto de saúde, a Unidade Básica de Saúde Max Perlman, conforme informação do Coordenador de Saúde da Vila Mariana, “realiza aproximadamente 4.000 (quatro mil) atendimentos mensais”, destacando-se que, dentre outros relevantes serviços prestados, a unidade se dedica ao atendimento obstétrico, pediátrico e de educação em saúde.

II. DO DIREITO.

O direito fundamental à educação é tema afeto a inúmeros diplomas legais em todas as órbitas da Federação. Além de objeto da Constituição da República e de leis nacionais como a que estabelece diretrizes e bases para a educação (9.394/96) e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (8.069/90), é também alvo de disciplina nas Cartas estaduais e nas leis de organização interna dos municípios.

a) A Constituição Federal.

Atento à importância da educação – que constitui um dos pilares de sustentação do próprio estado democrático de direito –, o legislador constituinte culminou por consagrá-la como direito social fundamental, sobre ela dispondo em diversos dispositivos, dentre os quais podemos destacar os arts. 6º, 205, 206, 208, 211 e 212.

Deles se depreende que a educação é direito social, sendo certo que o ensino deverá ser ministrado de sorte a assegurar “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (art. 206, I).

Importante ressaltar que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo” (art. 208, § 1º), sendo certo que a sua oferta irregular ensejará, mesmo, a apuração de “responsabilidade da autoridade competente” (art. 208, § 2º).

Outrossim, o art. 6º da Constituição Federal alçou-o à categoria de direito social, incluindo-o em seu Título II, locus dos chamados Direitos Fundamentais.

Ocioso sublinhar, nesse sentido, que o status constitucional conferido à educação prima por algumas conclusões prévias e inafastáveis:

a) cuida-se de norma de conformação do sistema, ditando o conteúdo de toda normatização infraconstitucional;

b) o direito à educação, enquanto direito fundamental, deve ser objeto da máxima efetividade, concretizada através de leis, atos normativos e posturas administrativas que lhe dêem a maior efetividade possível; e,

c) trata-se de comando de aplicabilidade imediata, constituindo, de conseguinte, direito público subjetivo dos indivíduos.

Seguindo a linha de orientação traçada pelo cogitado dispositivo, o art. 205 da Constituição Federal, em reforço semântico aos aspectos acima enunciados, prescreve, em tintas fortes, a educação como direito de todos e dever do Estado, acentuando o seu objetivo de possibilitar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho.

Dentro desta linha de entendimento, José Afonso da Silva, em magistral incursão do tema, salienta que a redação do cogitado art. 208 não deixa dúvidas quanto à extensão da obrigação comum do Poder Público (art. 23, V), que, à evidência, envolve todas as atividades enumeradas nos incisos I a VII do referido artigo da Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª edição, Malheiros, p. 767).

Compreende-se, deste modo, o entendimento sufragado por nossa jurisprudência, da qual se extrai, à guisa de exemplo, a ementa abaixo transcrita, tirada de v. acórdão relatado pelo eminente Desembargador Fonseca Tavares:


“MENOR – Apelação – Ação civil pública para compelir o Município à abertura de matrículas na rede de ensino infantil a todas as crianças de zero a seis anos de idade, sem exceção – Legitimidade do Ministério Público reconhecida – Dever estatal com a educação – Competência municipal para o atendimento em creches e pré-escolas de zero a seis anos – Necessidade que se eqüivale à obrigatoriedade – Sentença de procedência mantida – Recurso improvido.” (Apelação 63.969.0/2-00)

Trilhando a mesma linha de coerência, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo, embora sedimentando a improcedência de ação por inadequação do pedido e insuficiência das provas, repisou que a educação infantil é um direito constitucional do infante e uma obrigação do Município, como se vê de trecho tirado de acórdão relatado pelo eminente Desembargador Álvaro Lazzarini:

“A educação como direito de todos e dever do Estado é preceito constitucional (art. 205). Dentre os princípios nela estabelecidos há a garantia de oferecimento de creche e pré-escola a menores de zero a seis anos (inciso IV do art. 208 da Constituição Federal).

Os preceitos constitucionais espelhados nos arts. 6º e 205 não podem ser tidos por meras peças de figuração. A Constituição Estadual, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto da Criança e do Adolescente também asseguram a obrigatoriedade do fornecimento da educação escolar composta tanto da educação básica quanto da superior”.

Verifica-se que à espécie deve ser aplicado, em toda a sua extensão, também o disposto no art. 227 caput da Constituição Federal, que assegura à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à educação.

É inquestionável, portanto, que a educação básica inscreve-se dentre os chamados direitos subjetivos do indivíduo. No ponto, a orientação precisa de Hans Kelsen, para quem “a essência do direito subjetivo, que é mais do que simples reflexo de um dever jurídico, reside em que uma norma confere a um indivíduo o poder jurídico de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento de um dever jurídico” (Teoria Pura do Direito, p. 197).

Assim, ao direito dos cidadãos à educação básica corresponde o dever do Estado de adequadamente prestá-la, sobretudo não retrocedendo nos serviços atualmente disponibilizados à comunidade.

b) O princípio da vinculação orçamentária

Fiel à orientação acima indicada, o art. 212 da Constituição Federal preconiza que a “União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.

O objetivo do dispositivo constitucional em pauta é absolutamente claro, qual seja, o de obrigar União, Estados, Distrito Federal e Municípios a acrescentar ao desenvolvimento e manutenção do ensino os percentuais acima referidos.

Empalmando o valor da educação como pedra de toque da nossa ordem social, quis o constituinte que anualmente não fossem aplicados percentuais inferiores aos retro mencionados, buscando, a toda evidência, o incremento constante dos recursos aplicados na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Não fosse esse o raciocínio correto, o dispositivo em pauta poderia ser facilmente burlado, bastando que o administrador, por exemplo, construísse um prédio com receitas vinculadas ao ensino, para, já no ano seguinte, dar-lhe outra destinação, ainda que pública.

Com efeito, a vinculação das receitas angariadas com impostos para o desenvolvimento e manutenção do ensino indica claramente que os bens afetados a tal finalidade não podem ter sua destinação alterada, sob pena de clara subversão aos propósitos do citado art. 212 da Constituição Federal.

Ademais, o dispositivo constitucional fala em manutenção e desenvolvimento do ensino, indicando, de forma clara, a necessidade de que o ensino seja mantido regularmente e que haja desenvolvimento, o que pressupõe acréscimo de receita e não a atribuição à destinação de outra natureza.

Logo, afigura-se-nos que o prédio da escola Martim Francisco não possa receber outra destinação, como a cogitada no projeto de lei aprovado pela Câmara dos Vereadores de São Paulo, devendo, pois, ficar definitivamente afetada ao uso com a manutenção e desenvolvimento do ensino.

c) A Constituição do Estado de São Paulo.

O art. 180, inc. VII, da Constituição do Estado de São Paulo, veda expressamente que as áreas verdes e institucionais, assim reconhecidas pelo respectivo projeto de loteamento, tenham a sua destinação alterada.

O referido dispositivo constitucional estadual tem como objetivo básico a proteção do meio ambiente urbano, motivo pelo qual tem como preocupação a preservação da equação original entre as taxas de ocupação dos espaços urbanos e as áreas verdes e institucionais nele inseridas.

Em reforço semântico ao precitado dispositivo, no próprio artigo 180 da Constituição Estadual, outras disposições preservam os valores ora debatidos. Confira-se:

Art. 180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

I – o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia de bem-estar de seus habitantes;

(…)

IV – a criação e manutenção de áreas de especial interesse histórico, urbanístico, ambiental, turístico e de utilização pública;

A conjugação de tais dispositivos ao próprio artigo 225 da Constituição Federal faz ver que, independentemente da fonte de que tenha partido a destinação da área (loteamento, desapropriação etc.), as áreas institucionais, como as destinadas a sediar escolas públicas, não podem ter a sua destinação alterada.

Destarte, mesmo autorizado por lei, o Executivo Municipal não pode mudar a destinação da área em apreço.

d) Princípio da continuidade do serviço público

No terreno da escola em questão, funciona a Unidade Básica de Saúde Max Perlman, que, segundo afirmação de autoridade de saúde do Município, presta cerca de quatro mil atendimentos por mês.

Trata-se de serviço público essencial, que não conta com similar na região. Logo, a extinção do posto de saúde traduzirá interrupção do atendimento, já que outro serviço da mesma natureza não foi constituído na região, sendo notória, ademais, a falta de equipamentos de saúde para atendimento à população.

Como aponta Celso Antonio Bandeira de Mello, “uma vez que a Administração é curadora de determinados interesses que a lei define como públicos e considerando que a defesa, e prosseguimento deles, é, para ela, obrigatória, verdadeiro dever, a continuidade da atividade administrativa é princípio que se impõe e prevalece em quaisquer circunstâncias” (Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, p. 40)

O princípio em causa, a nosso aviso, deve ser aplicado não só ao serviço público genericamente concebido, mas também em relação às unidades de atendimento, desde que prestem atividade essencial, que não pode ou que não tenha sido adequadamente substituída, pois, in casu, haverá efetiva solução de continuidade no atendimento aos administrados.

e) O Estatuto da Criança e do Adolescente.

Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em inúmeras passagens, registra o dever do Poder Público para com a educação, com ênfase no ensino básico, premissa maior de intervenção do Município na gestão educacional.

Merecem especial lembrança, nesse contexto, os arts. 4º (que define o tratamento prioritário das questões afetas à infância e à juventude, inclusive com respeito à educação) e 54 inciso I (que refere competir ao Estado assegurar o ensino obrigatório).

f) A Lei 9.394/96.

O tema da educação é de tal transcendência que há lei federal com quase uma centena de artigos destinada a tratar especificamente de suas diretrizes e bases.

Esse diploma, a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, no que se refere aos deveres do Estado, trata do acesso universal, obrigatório e gratuito ao ensino básico (art. 4º, I), além de novamente enfatizar que o acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, legitimando qualquer cidadão ou entidade a acionar o Poder Público visando a assegurar sua efetividade (art. 5º).

Como se observa, a universalização do atendimento no ensino básico é dever cometido ao Poder Público, cabendo a oferta de vagas em número suficiente para tal desiderato, na esfera do ensino infantil, prioritariamente ao Município, sem embargo da obrigação que também atinge ao Estado-membro.

Nessa senda, para assegurar efetividade a direito subjetivo que emana cristalino da Constituição Federal, cabe ao Poder Público adotar todas as medidas necessárias para dar cabo da demanda existente, democratizando o acesso ao ensino público de sorte a efetivar o princípio da igualdade, solidamente insculpido no art. 5º caput da Magna Carta.

Para assegurar fosse atendido tal mister, o legislador constituinte sabiamente previu a vinculação de recursos públicos para a manutenção e o desenvolvimento do ensino no art. 212.

III. DA CONCLUSÃO.

Em que pese a farta normatização, as Acionadas, com as condutas que adotam, estão impedindo a efetiva universalização do ensino público, permitindo com que espaço físico expressivo e tradicionalmente destinado a tal finalidade tenha a sua classificação alterada, servindo de moeda de troca por área cuja utilização prevista não guarda qualquer afinidade com o tema manutenção e desenvolvimento do ensino, como se observa de fls. 170/171.

Existindo espaço público adequado e com vocação historicamente firmada, presente, outrossim, forte demanda não atendida pelo ensino básico, mormente em seu nível infantil, inconcebível venha o Poder Público a dele se desfazer, sob pena de tornar ainda mais caótica a situação reinante no Município.

Impede dita postura, ainda, o denominado princípio da vedação do retrocesso, que ilumina o espírito de nossa Constituição Federal.

Dito princípio, consagrado pelo eminente jurista J. J. Gomes Canotinho, consiste na impossibilidade de reversão de direito social após a sua incorporação ao patrimônio da cidadania.

Com efeito, ainda que se possa denominar de programáticas determinadas normas assecuratórias de direitos sociais, não há negar-se possuam elas eficácia prática, na medida em que vinculam a atuação de todas as funções inerentes ao Poder do Estado à sua respectiva implementação.

Nessa senda, não pode o Poder Público agir em descompasso com o direito social, negando-lhe efetividade, sendo certo, outrossim, que editada norma regulando o seu exercício, a mesma se incorpora ao patrimônio da cidadania, não podendo ser suprimida por ato posterior, sob pena de violação à Magna Carta, notadamente ao princípio do direito adquirido constante do art. 5º, XXXVI.

Assim, consistindo o acesso universal ao ensino básico direito público subjetivo e fundamental, não possuindo a rede estatal condições suficientes para o seu atendimento, mormente na esfera infantil, obviamente que a conduta adotada pelas Acionadas viola o princípio em comento, vez extirpar da educação estrutura pronta e operacional, ceifando significativo número de vagas que poderiam ser utilizadas para minorar o grave quadro hoje existente.

Nessa senda, já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado, no julgamento da apelação nº 097.863.0/2-00, de Presidente Prudente.

Trilhando o mesmo entendimento, impende trazer a balha, ainda, excerto de respeitável voto lançado pelo eminente Des. Gentil Leite, no julgamento da Apelação Cível nº 80.618.0/6.

Segundo o douto Desembargador, “é imperioso que bem se distinga o poder discricionário do administrador público de sua inércia diante das obrigações que lhe impõe nossa Lei Maior. O respeito ao princípio da conveniência e oportunidade da Administração Pública não pode merecer o conceito tão lato que permita ao governante decidir se quer ou não cumprir a lei”.

Prosseguindo, afirma o r. voto que “a discricionariedade do ato estará a salvo com a liberdade do chefe do executivo de escolher a melhor forma de atender a determinação legal, qual seja, decidindo dentre outras coisas, se novas unidades (educacionais) devem ser erigidas ou se as existentes comportam ampliação.

O estado caótico porque passam a educação, a saúde e a segurança é exemplo marcante do desvio da atenção do poder executivo para com as necessidades básicas dos cidadãos e sua visão míope no que se refere as verdadeiras prioridades do povo brasileiro, bem retratadas na declaração de princípios contida no artigo 3º da Constituição Federal” (destaque do Autor).

Como se observa da legislação e dos fatos expostos, parece cristalino que as Requeridas vêm se omitindo no cumprimento dos deveres que lhes são impostos.

Com efeito, inequívoco que as crianças em idade escolar têm direito público subjetivo à educação por meio de garantia de matrícula em escola pública no ensino obrigatório, como ressaltado pelo art. 5º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, consistindo a negligência em sua oferta crime de responsabilidade da autoridade omitente, mercê do disposto no próprio art. 208, § 2º, da Constituição Federal.

Assim, o dever imposto ao Poder Público pelas Constituições da República e do Estado, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e por intermédio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – de assegurar a universalidade do ensino básico e a igualdade de acesso e permanência nas escolas – não passará de mera falácia caso nenhuma providência jurisdicional seja adotada tendo em conta os fatos descritos.

Igualdade e universalidade no acesso somente serão asseguradas caso o Poder Público adote providências efetivas no sentido de incrementar a oferta de vagas.

Proceder-se da forma preconizada implica em violação dos deveres constitucionais e legais citados, com a conseqüência de que número significativo de crianças seja impedido de freqüentar o ensino básico, o que sabe a disparate e pode ensejar, inclusive, responsabilidade pessoal da autoridade pública.

Será que o acesso universal à educação é mera falácia? Será que um estado democrático de direito, com bases sociais e regido pelo princípio da igualdade, pode aquietar-se ante a situação retratada nos procedimentos em anexo?

Em síntese, o que está na Constituição Federal como obrigação do Poder Público deve ser cumprido? Ou temos, na hipótese, uma daquelas normas “que não pegam”, “para inglês ver” consoante antigo jargão popular?

Mantida a situação vigente, parece que a resposta a esta última indagação é positiva: o Município de São Paulo apresenta carência de dezenas de milhares de vagas no ensino básico e, ao mesmo tempo, as Requeridas, consertadas entre si, preocupam-se em fechar e negociar expressivo espaço público vocacionado para atender à demanda reprimida, agredindo de forma contundente o interesse público e fazendo tábula rasa dos preceitos constitucionais e legais citados.

IV. DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA.

Atento a realidades como a abordada nos autos, o Estatuto da Criança e do Adolescente não poderia se omitir ante a premência da adoção de medidas jurisdicionais tendentes a garantir a eficácia da prioridade do tratamento destinado à infância e à juventude, bem como do acesso à educação.

Assim é que em seu art. 213, § 1º, a Lei Federal nº 8.068/90 conferiu ao Magistrado o poder de conceder a tutela liminarmente, quando relevante o fundamento da demanda e ante a existência de justificado receio de ineficácia do provimento final.

Essa exatamente a hipótese dos autos.

Com efeito, o direito ao acesso universal e igualitário ao ensino básico está concretamente ameaçado pela ação conjunta de Município e Estado, que vêm se omitindo no dever de incrementar a oferta de vagas de sorte a dar cabo de toda a demanda.

Não bastasse tal fato, as Acionadas, em absoluto descompasso com as normas jurídicas citadas, procuram ceifar espaço físico apto a receber expressivo número de matrículas, buscando retirar do campo da manutenção e do desenvolvimento do ensino a unidade educacional citada, utilizando-a como autêntica moeda de troca, sem qualquer razão plausível para tanto, vez que demanda pelo ensino básico há – e fortíssima – em todo o Município de São Paulo.

Urge providência jurisdicional até para livrar os governantes da senda da responsabilidade a que alude o art. 5º, § 4º da Lei 9.394/96. Se não os coagir agora a cumprir a lei, amanhã o Judiciário terá de julgá-los por delito ainda mais grave.

A relevância do fundamento da demanda reside nas normas constitucionais e legais citadas, prescindindo de maiores comentários.

O receio de ineficácia do provimento final, por seu turno, é incontroverso, tendo em vista que a implementação da permuta almejada pela Municipalidade tornará irreversível o destino do espaço público em que situada a Escola Estadual Martim Francisco, consolidando o desvio de finalidade respectivo e impedindo a sua destinação ao fim a que vocacionado – manutenção e desenvolvimento do ensino.

Ante o exposto, postula o Autor seja concedida liminarmente a tutela, para que os Requeridos se abstenham de negociar o espaço público em que situada a Escola Estadual Martim Francisco, seja por venda, permuta, doação, dação em pagamento ou qualquer outra forma de transferência do domínio, assim como para que abram período para a coleta de matrículas na unidade educacional em epígrafe, em quaisquer dos níveis do ensino básico (infantil, fundamental ou médio) para o exercício letivo de 2005, durante prazo não inferior a 30 (trinta) dias, que deverá ser divulgado por meios de comunicação (imprensa escrita, falada e televisiva) e pela colocação de fachas e cartazes em estabelecimentos públicos (postos de saúde, policiais, outras unidades de ensino) situados num raio de cinco quilômetros da Escola Estadual citada, sob pena de multa diária no importe de R$ 100.000,00 (cem mil reais), nos termos do art. 213, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

V. DO PEDIDO.

Concedida a antecipação da tutela, requer a citação da Fazenda Pública do Estado e do Município de São Paulo nos endereços acima consignados para, em querendo, contestarem a presente ação, sob pena de revelia, sendo certo que a demanda deverá, a final, ser julgada procedente, com o fito de condenar as rés em obrigação de fazer consistente em manter a unidade educacional Martim Francisco em funcionamento, no local e endereço em que situada, atendendo ao ensino básico em qualquer de seus ciclos, sob pena de multa diária no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais), sem prejuízo da apuração da responsabilidade pessoal dos Administradores respectivos.

Requer sejam as intimações ao Autor expedidas para a Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital, à Rua Riachuelo, nº 115, 1º andar, tel. 3119-9076.

Protesta pela apresentação de todos os meios de provas em direito admissíveis.

Dá à causa o valor simbólico de R$ 1.000,00 (um mil reais).

Termos em que,

pede deferimento.

São Paulo, 29 de dezembro de 2004.

MOTAURI CIOCCHETTI DE SOUZA

Promotor de Justiça

VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR

Promotor de Justiça

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