Regras do Poder

Lula não busca governabilidade, e sim jogo político baixo.

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28 de dezembro de 2004, 13h11

A expressão governabilidade passou a ser o bordão corriqueiro de uma boa parcela de políticos e da mídia — e até mesmo de membros do Poder Judiciário — para justificar certas atitudes quando se quer ficar bem com o governo. O termo tem semântica latino-americana. Vem de nossos vizinhos de língua espanhola de cima e de baixo da linha do equador. Daí a palavra governabilidad.

A construção vernacular parcimoniosamente contextualizada em nossos dicionários apresenta governabilidade como sendo o conjunto de esforços e ações para dar viabilidade ao governo de um país.

A insegurança das instituições políticas reinante nos países geograficamente ao sul da fronteira dos Estados Unidos catalisou o condimento necessário para substanciar o vocábulo, que se fortaleceu com as ditaduras e os golpes militares que se espalharam por essa parte das Américas, em passado não muito distante. Como se sabe, tais regimes, impostos em sua maioria por militares, tiveram como palco o mesmo cenário da reconstrução econômica, social e política do caos gerenciado pelos políticos de então.

A experiência por eles vivenciada, contudo, não produziu os efeitos esperados, tendo os seus atores se revelado seres mortais iguais ou piores do que os políticos de linhagem comum.

Passado o furacão, ganhou o termo uma nova estrutura conceitual. Já não são mais os que tomaram o poder os salvadores da pátria. Agora são governos ungidos pelo voto popular. Não é o caso aqui de examinar se os eleitos de agora ou do período imediato à desmilitarização latino-americana se valeram da força do poder econômico ou se utilizaram do demagógico processo de persuasão eleitoreira com promessas irrealizáveis ou inatingíveis, como é o caso específico do Brasil do PT. Nessa nova safra pós-governos arbitrários, o estudo da governabilidade subiu as escadas das universidades. Em inglês veio governability e em francês gouvernabilité. O academicismo da era moderna define governabilidade, resumidamente, como o conjunto de meios postos à disposição do administrador para a realização dos negócios públicos (ou privados), sobretudo visando aos obstáculos que se antepõem ou possam se antepor aos objetivos de governo.

Ou como afirma David Lee, da OEA: um sistema social é governável quando, sobre a base de uma concepção comum do bem público, é estruturado politicamente de maneira tal que todos os atores estratégicos têm uma inter-relação efetiva na tomada de decisões coletivas e na solução de seus problemas e conflitos para um sistema de regras formais ou informais.

A governabilidade assim compreendida não resulta apenas das circunstâncias internas de um país, mas interage com fatores externos ditados pelos comandos mundiais da globalização. A pregação programática do atual presidente da República, por exemplo, em 2002, espertamente se baseou no que não podia ser cumprido, pela simples razão de que as estratégias de governo — e isso é fenômeno também inerente a outros países — não se estabelecem no plano do que se quer fazer, mas do que é possível fazer, levando em conta esses fatores externos. Disso, ele e seus agentes sabiam. Enganaram o povo para não dizer que agiram de má-fé.

Se os partidos políticos brasileiros se reúnem e entendem que devam votar essa ou aquela matéria de interesse da administração pública — como ocorreu no caso das reformas da previdência, tributária e do Judiciário e agora com entronização das parcerias públicas e privadas –, digamos que a hipótese se enquadra no conceito de governabilidade. Entretanto, se as ações parlamentares se desenvolvem para frustrar a sociedade, como se deu no caso do abortamento da comissão parlamentar de inquérito para apurar as circunstâncias do assassinato do prefeito Celso Daniel, do PT, em Santo André; ou da que pretendia se aprofundar na investigação dos atos palacianos do senhor Waldomiro Diniz, digamos que isso não é governabilidade e, sim, embuste contra o povo. Se o governo faz de tudo para obter maioria parlamentar, juntando-se a gatos e lagartos, mediante vergonhoso e repugnante rateio de cargos públicos, como se tem verificado a torto e a direito, isso também pode ser chamado de jogo político baixo, mas nunca governabilidade.

Se um juiz, turma, seção ou pleno de um tribunal se sujeita à vontade do Executivo para assegurar-lhe direito que não tem, em prejuízo do cidadão e da sociedade — como pode parecer se justificar –, isso não é governabilidade, mas ato de torpeza e indignidade.

Se o presidente da República retém por meses e meses, como ocorre no momento, listas tríplices de tribunais para nomeação de juízes e não o faz no prazo estabelecido de vinte dias, em desrespeito à Constituição que ele jurou obedecer, isso também não é governabilidade, mas ingovernabilidade ou até crime de responsabilidade.

Se o presidente da República, sabendo que estão sumindo — entre uma fogueira e outra — com os arquivos das violações de direitos humanos da ditadura de 64, e, mesmo assim, constitui uma comissão interministerial para nada resolver com a rapidez que o caso exige, isso pode ser tudo, inclusive medo, menos defesa do patrimônio histórico nacional. Para saber o que é uma comissão, ninguém melhor do que Fred Allen para defini-la: consiste em uma reunião de pessoas importantes que, sozinhas, não podem fazer nada, mas que juntas decidem que nada pode ser feito.

Contemplemos o sumiço do resto. Se é que existe.

*artigo publicado no Correio Braziliense em 26/12

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