Liberdade de expressão

Comparar promotora a oficial de justiça não é difamação

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17 de dezembro de 2004, 17h21

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, não aceitou uma denúncia do Ministério Público Federal que tentou enquadrar o deputado federal, Jorge dos Reis Pinheiro (PL-DF), no crime de difamação. O caso foi motivado por críticas que o deputado fez contra a promotora de Justiça Kátia Christina Lemos, em uma entrevista publicada no Jornal de Brasília.

O deputado, conhecido como Pastor Jorge, já ocupou a Secretaria de Meio Ambiente do Distrito Federal e, na ocasião, criticou a promotora em uma entrevista. Ele afirmou que a promotora agia como se fosse uma “oficial de justiça”.

A declaração foi feita pelo fato de Kátia ter ordenado que um perito do MP, acompanhado de dois policiais armados, fosse até o gabinete do então secretário a fim de que ele entregasse o processo administrativo sobre um licenciamento ambiental para a construção de uma via expressa. A obra era alvo de investigações por parte do MP.

A promotora decidiu abrir uma ação contra o deputado. Em agosto desse ano, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles ofereceu a denúncia ao STF.

A defesa de Pastor Jorge sustentou que o deputado, na ocasião ocupando o cargo de secretário do Meio Ambiente, apenas reagiu a ação da promotora, não permitindo que processos e documentos da secretaria fossem alvo de violação ou extravio. Ele destacou ainda que, caso o MP quisesse avaliar os documentos, deveria tê-los solicitados através do Judiciário.

Marco Aurélio destacou que as declarações do deputado não configuraram difamação, até porque, durante a entrevista, ele mesmo disse que acreditava ser um fato isolado e não se estendia a todo o MP. “As pessoas que atuam como agentes públicos hão de se acostumar com a liberdade de expressão, não potencializando suscetibilidades que não podem sequer ser admitidas, considerado o campo privado. O que se observa é que, com o tempo, visões exacerbadas sofrem o temperamento da couraça criada e da percepção das circunstâncias do momento vivido, dando-se ao que veiculado a cabível temperança. O importante é que cada qual haja na respectiva área de atuação com desassombro, afastando-se crivos que possam de alguma forma ressoar como intimidadores”, ressaltou.

Leia o voto do ministro

17/12/2004

TRIBUNAL PLENO

INQUÉRITO 2.154-7 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

AUTOR(A/S)(ES): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

INDICIADO(A/S): JORGE DOS REIS PINHEIRO OU PASTOR JORGE

ADVOGADO(A/S): ERIK FRANKLIN BEZERRA E OUTROS

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – O Procurador–Geral da República aponta configurado o crime de difamação, aludindo ao disposto no artigo 21, combinado com o artigo 23, inciso II, ambos da Lei nº 5.250/67. Transcreve notícia de entrevista do denunciado ao Jornal de Brasília, na qual teria acusado a vítima Kátia Christina Lemos, promotora pública, de abuso de poder. No trecho reproduzido às folhas 3 e 4, grafa em negrito as seguintes frases tomadas como ofensivas:

“Secretário acusa promotora de abuso.”

“O secretário reclama que o ofício pediu ‘algo ilegal’ já que o processo está subjudice (sic)”.

“Ela não pode fazer isso, criando uma série de coações para conseguir o processo e, através de um ofício altamente intimidador, reclama”.

“Foi uma ação isolada dela”.

“O secretário de Meio Ambiente, Jorge Pinheiro, diz que a promotora Kátia Christina Lemos agiu como ‘oficial de justiça’…”

“O secretário de Meio Ambiente frisou ao Jornal de Brasília que ‘considera ser uma ação isolada dela (promotora), não se estendendo aos outros membros do Ministério Público’, diz. ‘O que ela fez é ilegal’, completa”.

Aponta-se que o denunciado “referiu-se a fatos claramente ofensivos à reputação da ofendida…”. E que teve “a clara determinação intencional de ferir a reputação da ofendida”. Em síntese, consta do item 10 da peça primeira que o denunciado colocou a ofendida como “praticante de atos ilegais, abusivos, coercitivos e de intimidação”, agredindo a atuação profissional da promotora de justiça. Vieram ao processo, com a inicial, as peças de folha 7 a 88.

Notificado, o acusado apresentou a defesa de folha 101 a 106. Em suma, baseia-se na óptica segundo a qual, de forma inapropriada, a promotora, sem mandado judicial, buscara fossem-lhe entregues documentos. O denunciado, ocupando à época o cargo de Secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal, simplesmente reagira, como lhe cumpria fazer, não deixando que processos e documentos daquela Secretaria fossem alvo de violação ou mesmo extravio. Ademais, o integrante do Ministério Público deveria dirigir-se ao Judiciário para obtê-los. Teria o acusado disponibilizado os processos para obtenção de cópias, o que não foi aceito, sentindo-se a promotora ofendida, passando a atacá-lo por meio da imprensa, conforme peça anexada. Na publicação referida na inicial, não há, consoante as razões expendidas, declarações ofensivas, mas apenas a revelação dos acontecimentos. A documentação trazida à colação concerniria às obras da Ponte JK, nada tendo a ligá-la aos fatos que estariam a consubstanciar a difamação. São evocados precedentes e doutrina.

À folha 114, ante a juntada de documento à resposta, abri vista ao Procurador–Geral da República. Então, veio a manifestação do Procurador–Geral da República, Dr. Claudio Fonteles, segundo a qual os documentos juntados pelo denunciado não se contrapõem à peça inicial, deixando de revelar elo com as afirmações, veiculadas no Jornal de Brasília de 8 de maio de 2004, ofensivas à vítima.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – A atuação pública faz-se, é certo, presentes certas balizas, descabendo a perda da urbanidade. Por vezes, surgem ópticas antagônicas e aí a recusa em proceder-se desta ou daquela forma não pode gerar, por si só, a conclusão sobre a prática de crime contra a honra de quem quer que seja. É sabença geral que o Ministério Público, em defesa da própria sociedade, vem atuando com desassombro, especialmente na área da preservação do meio ambiente. Por vezes, alguns enfoques extravasam o campo simplesmente administrativo para ganhar as páginas de periódicos, não se mostrando incomum que a matéria extravasada seja alvo de exacerbação. Há de se buscar sempre a compreensão.

Ora, conforme dados anexados à defesa, idas e vindas ocorreram nas obras da via expressa referente à Ponte JK. A seqüência da via expressa somente se tornou possível quando o conflito chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que autorizou a continuidade das obras. Então, constata-se que a atividade desenvolvida pelo Ministério Público fez-se no sentido de cobrar certa postura do então Secretário de Meio Ambiente. Vieram à balha as expressões tomadas como ofensivas, tendo em conta a busca de elementos pelo Ministério Público. Todavia, tais expressões fizeram–se no âmbito da razoabilidade, senão vejamos cada qual, presentes os grifos contidos na inicial:

“Secretário acusa promotora de abuso”. O que assacado há de ser considerado no contexto. Tudo teria resultado da tentativa de se lograr a retirada de certo processo do setor competente;

“O Secretário reclama que o ofício pediu ‘algo ilegal’ já que o processo está subjudice”. Mais uma vez, nota-se o desempenho de atividade própria à Secretaria. O fato de se enquadrar postulação como a revelar ilegalidade não pode ser potencializado a ponto de se chegar à conclusão sobre a difamação.

“…ela não pode fazer isso, criando uma série de coações para conseguir o processo e através de um ofício altamente intimidador…”. Também aqui tem-se insurgimento relativo a pleito do Ministério Público que se circunscreve ao âmbito do exercício da própria cidadania, resistindo-se ao que pretendido.

“Foi uma ação isolada dela… O Secretário de Meio Ambiente Jorge Pinheiro diz que a promotora Kátia Christina Lemos agiu como um ‘oficial de justiça’…”. Onde a existência de expressões capazes de ser tomadas como difamatórias? Tem-se a apreciação de ato, lançando-se, no campo da retórica, paralelo com atividade que seria própria do oficial de justiça, munido, este último, de ordem judicial.

“O Secretário de Meio Ambiente frisou ao Jornal de Brasília que ‘considera ser uma ação isolada dela (promotora), não se estendendo aos outros membros do Ministério Público’, diz. ‘O que ela fez é ilegal’, completa…”. O que consignado anteriormente serve ao enquadramento da frase.

Deve–se observar que a tomada de ato de terceiro como ilegal – gênero – não beira as raias do crime contra a honra. As pessoas que atuam como agentes públicos hão de se acostumar com a liberdade de expressão, não potencializando suscetibilidades que não podem sequer ser admitidas, considerado o campo privado. O que se observa é que, com o tempo, visões exacerbadas sofrem o temperamento da couraça criada e da percepção das circunstâncias do momento vivido, dando-se ao que veiculado a cabível temperança. O importante é que cada qual haja na respectiva área de atuação com desassombro, afastando-se crivos que possam de alguma forma ressoar como intimidadores.

Não tenho como alcançado o perfil da atuante promotora Kátia Christina Lemos, razão pela qual excluo a possibilidade de ter como configurado o tipo difamação. Rejeito a denúncia.

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