Retrospectiva 2004

Retrospectiva: Indústria fonográfica recorre a fusões e aquisições

Autor

  • Nehemias Gueiros Jr

    é advogado especializado em Direito Autoral Show Business e Internet professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ e da Escola Superior de Advocacia — ESA-OAB/RJ consultor de Direito Autoral da ConJur membro da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos e da Federação Interamericana dos Advogados – Washington D.C. e do escritório Nelson Schver Advogados no Rio de Janeiro.

16 de dezembro de 2004, 10h26

Quando espocaram os fogos e foi estourada a champanha na virada 1999-2000, o mundo ainda estava envolto na mística do famigerado “Bug do Milênio”, que acabou se revelando uma das maiores falácias dos últimos tempos. Fora alguns pequenos problemas de registros e informações perdidos, não houve nenhum cataclismo, nem queda de aeronaves ou caos generalizado pelo mundo.

Sentimos, isso sim, uma grande decepção, quando constatamos que se tratou apenas de mais uma virada de ano, sem qualquer conotação apocalíptica ou de final dos tempos, como tantos preconizavam. Havia outras questões em ebulição na sociedade contemporânea, mormente aquelas derivadas da consolidação definitiva da Internet no seio da comunicação global e a revolução digital que hoje já faz parte inexorável do cotidiano, com os inevitáveis ataques de vírus, a troca de arquivos em forma gratuita e a perda total da privacidade provocada pelos hackers e pela monitoração de e-mails pelos empregadores e pelo governo.

Já parece longínquo aquele reveillon do milênio, mas as questões da Era Digital estão hoje muito mais presentes do que então, especialmente no campo do Direito Autoral e da Propriedade Intelectual. Neste final do quarto ano do novo século, certamente podemos repetir a frase com que abrimos nossa retrospectiva de 2003: “nada será como antes no mundo do entretenimento”.

A indústria fonográfica, cada vez mais asfixiada pela troca de arquivos, recorre em desespero a fusões e aquisições para manter sua liderança operacional com um mínimo de perda de receita, como foi o caso das gigantes Sony e BMG, que uniram suas operações em julho e formaram a segunda maior gravadora do mundo, atrás apenas da francesa Universal-Vivendi e deixando o mundo à mercê de apenas quatro grandes conglomerados musicais, as chamadas Big Four, que controlam 80% do mercado global.

Nos Estados Unidos, a RIAA (Recording Industry Association of América), entidade que reúne as gravadoras americanas estabelecidas, comemorou mês passado o ajuizamento judicial do processo nº 3.000 contra pessoas, empresas e campi universitários por força da troca e download de arquivos musicais em forma gratuita, que, na esteira do pioneiro Napster em 2001, representou o mais forte impacto do chamado “mercado fonográfico informal” na indústria desde o aparecimento em massa da praga dos “camelôs” nas ruas do mundo industrializado há menos de 20 anos.

Ocorre que os vírus, as trocas e downloads de arquivos pela Internet e os hackers e crackers não têm data conhecida para nos deixar. São desdobramentos inevitáveis do advento da tecnologia eletrônica e melhor fará a sociedade se se adaptar o mais rápido possível aos seus efeitos e mandamentos, notadamente o Direito, ciência que mais padece para buscar as salvaguardas necessárias à proteção da propriedade intelectual no mundo virtual. Toda tecnologia quando chega, nos assombra e nos deixa perplexos para depois embutir-se no cotidiano e contribuir decisivamente para a modernização da sociedade.

O ano de 2004 não fugiu a essa regra, com a chegada dos multicelulares totalmente interativos com a Internet, os supercomputadores com capacidade superior a 6 teraflops(1) e os tons polifônicos (ringtones) para celulares, que inauguraram uma nova modalidade de receita proveniente de direitos autorais de músicas baixadas pelos usuários de telefones celulares, hoje já uma febre da ordem dos US$ 500 milhões de dólares somente no mercado dos Estados Unidos no primeiro semestre deste ano.

Muitas pessoas ainda não entendem a diferença entre os tons polifônicos (polyphonic ringtones) e os tons musicais reais (realtones), já que enquanto os primeiros são melodias eletrônicas especialmente criadas em forma igual ou similar às músicas de sucesso desejadas pelos usuários, os tons musicais são efetivamente pequenos trechos das músicas originais que podem ser baixadas mediante pagamento. Ambas as modalidades geram royalties aos titulares dos direitos e já se prevê um novo eldorado para esse tipo de utilização econômica de obras intelectuais musicais.

Resta saber se os artistas e intérpretes, verdadeiros criadores, serão corretamente contemplados com o seu quinhão autoral. No front Brasil as operadoras de telefonia móvel já estão lançando as engenhocas compatíveis com essa tecnologia até o início de 2005, que também por aqui certamente constituirá uma nova e lucrativa fatia de receita de direitos autorais.

O que precisamos saber é se todo o ciclo de royalties devidos pela novidade será respeitado, pois as gravadoras e editoras musicais que detêm a titularidade dos fonogramas musicais já começam a inserir novas cláusulas em seus contratos prevendo essa modalidade, na grande maioria dos casos reduzindo os royalties originais previstos nos contratos dos artistas sem qualquer razão aparente, já que a tecnologia é totalmente implementada pelas companhias de telefonia móvel, cabendo à indústria fonográfica apenas licenciar sua utilização. Mais uma “jogada” inteligente para se apoderar de considerável soma de direitos autorais dos artistas e intérpretes retidos sob contrato.


Continuando nosso tour pelo ano autoral de 2004, deparamo-nos com a interminável cantilena da Ancinav, projeto de aperfeiçoamento e extensão da Ancine, agência federal reguladora da atividade audiovisual nacional criada no apagar das luzes do governo FHC e que, na realidade, nunca funcionou a contento, tendo sido mais um trampolim político do que uma instituição de controle.

As críticas que nunca pouparam a Ancine voltam agora com força redobrada sobre a Ancinav, cujo projeto foi lançado em 2003 pelo ministro Gilberto Gil, basicamente para incluir as operações de televisão, aberta e por assinatura, no escopo de fiscalização da agência. Denunciando forte lobby da indústria americana, através dos estúdios representados pela MPA (Motion Picture Association), o estatuto da nova agência está longe de singrar mares pacíficos.

Com aprovação provável somente no próximo ano, a Ancinav traz à luz as profundas diferenças entre os vários segmentos da atividade audiovisual no Brasil, que coloca em contenda constante os produtores, diretores, distribuidores e exibidores, na busca por uma performance um pouco mais generosa nessa que é uma atividade estratégica da sociedade moderna e representa uma verdadeira identidade nacional, disseminando a cultura, a história, a geografia, usos e costumes, marcas e produtos de uma nação (em 2003 o cinema nacional chegou a deter 21% de market share total, enquanto que esse ano caímos novamente para cerca de 15%).

No cenário musical, vimos a fusão Sony/BMG impactar ainda mais o já combalido mercado fonográfico brasileiro, com certeiros cortes de custos, dispensa de pessoal e remanejamento de metas e objetivos. Mortalmente alvejadas pela pirataria e talvez por sua própria incapacidade de traçar políticas de preços e marketing mais ousadas e mais baratas, as gravadoras, que antes rugiam como leões no mercado, sobrevivem agora à custa do excelente trabalho dos selos independentes – que se transformaram nos verdadeiros descobridores novos talentos – e da famigerada prática de “colocar todo o plantel em campo”, isto é, lançar maciçamente no mercado os seus catálogos, criando um número sem-fim de compilações e discos de montagem do tipo “grandes sucessos” e “melhores momentos”, em busca dos anos dourados (e perdidos) dos sucessos que vendiam milhões.

A crise chegou a tal ponto que a ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos), entidade patronal que reúne a maioria das gravadoras estabelecidas no país, reduziu de 100.000 (cem mil) para 50.000 (cinqüenta mil) o patamar de unidades vendidas que faz jus ao cobiçado Disco de Ouro. O jabá de rádio continua muito bem obrigado, não se consegue colocar nada nas ondas hertzianas sem uma graninha, um “pp”, que sai camuflado na forma de “investimento de marketing”, mas é, na realidade, pura e simples corrupção, fechando a porta a dezenas senão centenas de fantásticos produtos musicais brasileiros em detrimento dos produtos biônicos ou especialmente produzidos.

Em conversa cm o renomado professor Ronaldo Lemos, da FGV-RJ, surpreendi-me ao saber que a verdadeira música brasileira, do povão, não é essa que ouvimos nos programas de rádio e televisão, nos comerciais dos cinemas ou nos shoppings das grandes cidades do país. Antes, ela é representada pelos incríveis fenômenos musicais de massa como o Forró do Amazonas, o Lambadão do Pará e o Baião do Nordeste, que lançam anualmente centenas de CDs utilizando como meio primário de distribuição… os camelôs! Isso mesmo.

Na maioria das demais regiões do Brasil excluídas da influência e da manipulação do eixo Rio-São Paulo-Belo Horizonte, o verdadeiro show business passa direto da mão do produtor para o camelô, que o revende barato (mas já com um incrível lucro) para a população de mais baixa renda. Pode conferir se sua empregada, seu motorista ou alguém de suas relações com menor poder aquisitivo não conhece direitinho todos os grandes sucessos da periferia, que não tocam e provavelmente jamais tocarão nas mais importantes rádios e televisões brasileiras e dos quais você nunca ouviu sequer falar. É um colossal mercado paralelo que está a clamar por legalização, moralização, disseminação e, principalmente, reconhecimento.

No capítulo da informática, pudemos acompanhar a crescente assimilação do software livre no mundo, com cada vez mais governos e sistemas públicos aderindo ao formato Linux, configurando um protesto velado ao regime monocrático e monopolista da Microsoft. Aliás, a polêmica software proprietário versus software livre ainda promete muitos rounds nos anos vindouros, pois o alcance dos conceitos disseminados pela filosofia do Creative Commons(2) e da Eletronic Frontier Foundation(3) vem ampliando-se a cada ano e não parece disposta a perder mais terreno para a ditadura das software houses privadas e da ainda tremendamente poderosa influência dos interesses unicamente capitalistas dos detentores de know-how na comunidade global da informática.


Considerando a crescente desconfiança do mercado com relação aos vírus e seus correspondentes antídotos, que parecem surgir como passe de mágica imediatamente após o anuncio de qualquer nova ocorrência, deixando transparecer a aterrorizante possibilidade de que seriam as próprias empresas criadoras de software as disseminadoras dessa praga da sociedade virtual contemporânea que deliberadamente destrói a informação dos usuários, não haverá outra saída a não ser a liberalização de parte considerável do conteúdo hoje disponível na Web, ainda que em condições parcialmente controladas, como forma de poder-se alcançar uma inclusão digital democraticamente distribuída ao redor do planeta Terra.

Finalizando, mais um ano do novo século que passa célere e incólume, trazendo novas tecnologias e novas formas de reprodução, armazenamento e manipulação de obras intelectuais do engenho humano, em movimento ascendente que pouco se importa com o desespero dos ordenamentos jurídicos e das práticas jurídicas em vigor para salvaguardar os legítimos direitos de seus criadores.

Antigamente o ciclo de reposição tecnológica ainda dava tempo à sociedade de adaptar-se aos novos tempos, permitindo a construção de mecanismos de proteção adequados em razoável espaço de tempo. Foi o caso do disco Long-Play de vinil, que substituiu o 78 RPM e reinou incontestado durante quase 40 anos no século passado, bem como a fita musicassete magnética, uma maravilha que aterrorizou as gravadoras no início da década de 60 por sua capacidade doméstica de fixar os sons de uma execução, fossem musicais ou não.

Com o advento do videocassete em 1974 e posteriormente do CD na década de 80 e do computador pessoal nos anos 90, o Direito não obteve mais trégua, sendo impiedosamente encurralado pelas novas modalidades de reprodução de obras intelectuais, principalmente no ramo da música, criando assim as condições para o surgimento dos deletérios contratos de direitos autorais que até hoje são adrede praticados por uma indústria que se recusa a aceitar o admirável mundo novo em que já estamos todos irremediavelmente enredados. E o que é pior: ela se situa no topo da cadeia alimentar do setor, pois possui recursos e infra-estrutura para liderar essa nova revolução.

É uma questão econômica mas também eminentemente jurídica. Enquanto o Direito não acordar para a premente necessidade da unificação do estudo das questões cibernéticas em nível global, criando cadeiras obrigatórias uniformes de Propriedade Intelectual nos cursos jurídicos, capazes de enfrentar as novíssimas facetas do mundo eletrônico, os profetas da fraude e do Novo Crime continuarão a vencer todas as batalhas.

O futuro já chegou e continua a “chegar” vertiginosamente a cada instante. A lei de Moore parece distante e obsoleta diante da velocidade com que as mudanças tecnológicas impactam as nossas vidas, mas isso está longe de ser a senha para continuarmos a fechar os olhos para o vilipêndio e as espúrias violações de direitos intelectuais de que cada vez mais criadores intelectuais são vítimas justamente nesse admirável mundo novo.

Notas de rodapé

1. Teraflop = medida que equivale a 1 trilhão de operações por segundo e deriva de Flops = floating point operations per second, medida que calcula a quantidade de cálculos de que é capaz um processador de computador. 1 megaflop = 1 milhão de oper. p/segundo, 1 gigaflop = 1 bilhão de operações por segundo e assim por diante

2. veja em www.creativecommons.org

3- veja em www.eff.org

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    é advogado especializado em Direito Autoral, Show Business e Internet, professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ e da Escola Superior de Advocacia — ESA-OAB/RJ , consultor de Direito Autoral da ConJur, membro da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos e da Federação Interamericana dos Advogados – Washington D.C. e do escritório Nelson Schver Advogados no Rio de Janeiro.

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