Rebarbas da Reforma

Servidores públicos agora são competência da Justiça do Trabalho

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15 de dezembro de 2004, 19h17

Quanto às modificações da Reforma do Judiciário, existem algumas manifestações, de respeitáveis fontes, no sentido de que a competência para o processo e julgamento de serviços prestados por profissionais liberais, como dentistas engenheiros e advogados, a seus respectivos clientes, teria sido transferida da Justiça Comum dos Estados para a Justiça do Trabalho.

Mas, com todo o respeito, não se consegue enxergar, por maior esforço interpretativo que se faça, onde está escrito que as relações de prestação de serviço, que na verdade são relações de consumo, não de emprego, teriam experimentado essa modificação de competência.

Dizem que a mudança ocorreria pela expressão “relação de trabalho”, indevidamente elevada a uma exponencial interpretação ampliativa.

Mas, em primeiro lugar, em matéria de competência funcional constitucional, não se admitem interpretações ampliativas dessa magnitude, sob pena de quebra do princípio do Juiz Natural para o processo.

E em segundo lugar – e o mais óbvio, deve-se lembrar que na redação originária do art. 114 da Constituição Federal sempre existiu, desde 1988, a expressão “relação de trabalho”, de modo que não há qualquer novidade.

Confiram-se as redações, para que não haja dúvida:

Redação original:

“Art. 114 – Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.

Parágrafo primeiro – Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.

Parágrafo segundo – Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.

Parágrafo terceiro – Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de oficio, as contribuições sociais previstas no artigo 195, I, “a”, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir.”

O parágrafo terceiro foi acrescentado pela Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98 (DOU de 16.12.98).

Nova redação autografada na promulgação:

“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

II – as ações que envolvam exercício do direito de greve;

III – as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;

IV – os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;

V – os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;

VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;

VII – as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;

VIII – a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;

IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.

§ 1º ………………………………….

§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito.” (NR)

Poderia-se ponderar que a redação originária subordinava a competência da Justiça do Trabalho, quanto à “relação de trabalho”, ao que a lei ordinária entendesse como tal.

Mas a retirada da expressão “na forma da lei” não impede que se tenha que dar alguma interpretação ao que venha ser “relação de trabalho”.

Nesse sentido, nada melhor que a interpretação “autêntica”, ou seja, a dada pela própria lei – já que a Constituição não o faz.


E nesse caso, a Lei nº 8.078, de 11/09/1990, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, deixa claro que estas relações jurídicas que alguns enxergam terem passado à competência da Justiça do Trabalho, são relações de “consumo”, não de “trabalho”.

Pode ser, é verdade, que lei posterior classifique como relação de trabalho o que hoje é tido legalmente como relação de consumo. Por exemplo, o art. 643, § 3º, da Consolidação das Leis do Trabalho, acrescentado pela Medida provisória nº 2.075/2001, renumerada para 2.164/2001, assevera que “a Justiça do Trabalho é competente, ainda, para processar e julgar as ações entre trabalhadores portuários e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra – OGMO decorrentes da relação de trabalho”.

Mas até que isso ocorra, contudo, permanecerá da Justiça Comum a competência para o processo e julgamento das relações jurídicas que atualmente o Código de Defesa do Consumidor define como de “consumo”.

Por outro lado, houve importante modificação quanto à competência para o processo e julgamento das relações de trabalho entre servidores dos “entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União”.

Até a reforma, competia à Justiça do Trabalho processar e julgar divergências entre servidores e administrações que adotam o regime da Consolidação das Leis do Trabalho, ou também chamado “celetista”. E competia à Justiça Comum o processo e julgamento das lides envolvendo servidores sob o regime estatutário, inclusive trabalhadores temporários.

Tal entendimento foi sedimentado na Súmula nº 137 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual: “compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar ação de servidor público municipal, pleiteando direitos relativos ao vínculo estatutário”.

Com a reforma operada no art. 114 da Constituição Federal, contudo, passou para a competência da Justiça do Trabalho também a competência para processar e julgar as lides de servidores estatutários.

Isso porque, como acima visto, antes se falava em “dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores” – o que, em interpretação restritiva, como é correto proceder, somente abrangia servidores em regime celetista.

Mas agora se fala em “relação de trabalho”, o que, sem qualquer necessidade de analogia ou interpretação ampliativa, também abarca os servidores estatutários – os quais, sem dúvida, possuem “relação de trabalho” com as respectivas administrações, e lei nenhuma cataloga essa relação jurídica como sendo de outra natureza (de consumo, por exemplo).

E para que não haja qualquer dúvida, é importante noticiar que na redação originalmente constante da reforma havia, no caput do art. 114, a expressão: “exceto os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação”.

Tal exceção foi retirada, para evitar mais um dos vários vícios de inconstitucionalidade que muitos estão apontado no processo legislativo dessa Reforma do Judiciário.

Se tivesse sido mantida a exceção, e combinada a mesma com o art. 37 da Constituição Federal, que mantém as distinções entre cargo, emprego e função pública, somente passaria à competência da Justiça do Trabalho lides referentes a trabalhadores temporários em administrações de regime estatutário, pois estes não ocupam “cargo criado por lei”.

Mas a retirada dessa exceção no texto foi sintomática e definitiva quanto à efetiva transferência, à Justiça Trabalhista da competência para dirimir conflitos também relativos a servidores estatutários – porque, caso assim não fosse, não haveria necessidade da exceção explícita não promulgada.

E tal realidade faz saltar aos olhos uma importante indagação, no sentido de que se passa à Justiça do Trabalho também o julgamento de questões de cunho disciplinar dos servidores estatutários.

Sim, porque se cabe à Justiça do Trabalho julgar a validade ou não da dispensa por justa causa de um trabalhador da iniciativa privada, também caberá à mesma apreciar o cometimento de falta grave que gere contra o servidor estatutário a pena de demissão a bem do serviço público, ou cassação de aposentadoria, por exemplo.

E a interpretação sistemática também não descarta a hipótese, na medida em que o novo § 3º do art. 114 da Constituição Federal, como acima transcrito, dispõe que: “em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito”.


Ora, quase todos os servidores públicos exercem atividades essenciais, nos três Poderes da República, em suas diferentes esferas, do que se pode concluir que caberá à Justiça do Trabalho, por exemplo, julgar greves como a que ocorreu em 2004, protagonizada pelos servidores da Justiça Paulista.

Nesse caso, em que pese o silêncio das normas escritas, evidentemente que o dissídio deverá ser julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, pois não se pode cogitar de algum Tribunal Regional do Trabalho impor condutas a qualquer Tribunal de Justiça dos Estados – pois estas duas últimas espécies de Cortes são equivalentes, na hierarquia jurisdicional da organização judiciária.

Mas, voltado ao tema, a competência aqui tratada, bem entendido, é jurisdicional, permanecendo sob a competência dos superiores hierárquicos a condução e julgamento dos processos de natureza administrativa dos servidores estatutários.

Somente se houver sanção administrativa, e o servidor não concordar, e quiser levar a questão à via jurisdicional, deverá fazê-lo perante a Justiça do Trabalho.

Assim, com a publicação da reforma, fica ultrapassado o entendimento da Súmula nº 137 do Superior Tribunal de Justiça.

Aqui se abra um parêntesis para declarar, então, que felizmente tal súmula não é vinculante, caso contrário, até que se procedesse à revisão ou cancelamento da mesma, os Magistrados das instâncias inferiores teriam que proferir julgamentos defasados com a nova ordem constitucional – sim, porque são milhares as lides para serem julgados diariamente, e o processo de revisão da famigerada súmula vinculante não acompanharia essa velocidade.

Retornando ao assunto central do texto, apresenta-se também como grande novidade, enterrando a discussão jurisprudencial sobre o tema, a expressa passagem à Justiça do Trabalho da competência para processar e julgar “as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho” – relação de “trabalho”, bem entendido, não relação de “consumo”.

Mas não houve avanço em outros pontos.

A Justiça do Trabalho continuará tendo competência para executar apenas as contribuições “decorrentes das sentenças que proferir” – o que está previsto desde a Emenda Constitucional nº 20/98, mas não houve alargamento para a execução de toda e qualquer contribuição social, mesmo que decorrente apenas de certidão da dívida ativa.

Também foi rechaçada a idéia de as Varas do Trabalho – não as da combalida e esquecida primeira instância das Justiças Estaduais, processarem e julgarem as ações previdenciárias e assistenciais contra o INSS, onde não haja Vara da Justiça Federal Comum.

A matéria previdenciária é co-irmã da trabalhista, de modo que, por exemplo, na Faculdade de Direito da USP, somente é ministrada a matéria previdenciária para quem escolhe, no último ano, cursar especialização em direito do trabalho. Outrossim, a Justiça do Trabalho é Federal, assim como é Federal a Justiça originalmente competente sobre o tema – dada a presença do INSS, autarquia federal, no pólo passivo.

Mas mesmo assim, por motivos que se desconhece, as primeiras instâncias das Justiças Estaduais, que precisam julgar as lides cíveis do dia-a-dia do povo, as de família, da Infância e Juventude, e 90% dos processos criminais que tramitam no Brasil, não conseguiram se livrar desse imenso acervo de processos previdenciários.

Em síntese, passaram à competência da Justiça do Trabalho, como novidade ou esclarecimento, o processo e julgamento das lides envolvendo servidores estatutários dos entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho, e os dissídios coletivos em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público.

Relações entre profissionais liberais ou pessoas jurídicas prestadoras de serviço e seus clientes permanecem com a natureza de consumo, não de trabalho, até que lei posterior eventualmente diga o contrário.

*artigo republicado a pedido do autor

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