Lá e cá

Legislação brasileira não expressa interesse de todos

Autor

  • Joaquim Falcão

    é professor de Direito Constitucional e Diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro vice-presidente do Instituto Itaú-cultural e ex-membro do Conselho Nacional de Justiça.

14 de dezembro de 2004, 12h18

Um casal queria reformar o banheiro de sua casa. Transformá-lo em quarto para o filho e colocar aquecimento. Tomaram um empréstimo de cerca de R$ 25 mil. Faz quinze anos. Pagaram o que puderam, enquanto puderam. Agora não podem mais. É que a dívida cresceu em 67 vezes. Os juros anuais eram de 34,9%. Juros compostos. A dívida ultrapassara mais de um milhão de reais. O caso foi parar na Justiça. Na Justiça da Inglaterra, país de origem do casal.

O juiz considerou que “quando os juros anuais são tão altos quanto 34.9%”, “a combinação dos fatores é tão potencialmente exorbitante” que “grosseiramente se opõe aos princípios de uma negociação justa”. De fair dealing, em inglês. E sentenciou: “O contrato é ruim e não pode ser executado e isto basta”. Zerou a dívida do casal.

Este julgamento ocorreu em Southport, Merseyside. Nem por isso, jornais como o The Independent ou emissoras como a BBC acusaram o Poder Judiciário de não respeitar os contratos. Nem por isso, missão do FMI, ONU ou Banco Mundial desembarcou por lá e acusou o país de criar clima hostil aos investimentos estrangeiros. Nem por isso, economistas consagrados escreveram papers em outros idiomas apontando a insegurança jurisdicional como co-responsável pelos problemas econômicos nacionais. Nem por isso, juízes de primeira instância foram acusados de sabotar a política macroeconômica do governo.

Nada disso aconteceu por lá, mas provavelmente teria ocorrido no Brasil, por razão simples. Ficamos incapazes de perceber o colonialismo cultural econômico em que nos metemos. Incapazes de perceber o manto diáfano com que o Consenso de Washington cobriu nossa realidade econômica. Perdemos a capacidade e a autonomia cultural de criticar os exclusivismos monetários da política macroeconômica.

Em nome de um futuro por todos desejado – estabilidade com desenvolvimento –, mas sempre adiado, o Brasil parece estar entorpecido demais para identificar os malefícios do permanente aumento da taxa de juros. Se alcançarmos o desenvolvimento que esperamos – governo e sociedade – será apesar da taxa de juros, e não por causa dela.

Houve um momento, durante o autoritarismo, em que a doutrina jurídica imaginou outro país. De tanto imaginar, formalizou a realidade. Perdeu contato com o Brasil real, através de um formalismo legal. O resultado foi a campanha das “Diretas Já”.

Hoje, a doutrina econômica corre o risco de seguir em idêntico rumo. Em nome do nirvana econômico, não se relaciona juros altos com a crescente informalidade do país, a crescente ilegalidade do emprego, as 12 milhões de famílias em barracos ou casas ilegais, e por aí vamos. Não se relaciona com o dia-a-dia da crescente violência nas cidades. Existe dramática defasagem entre o longo prazo do discurso macroeconômico e o curtíssimo prazo da violência e da pobreza endêmica. Não se relacionam a economia formal e a economia real.

A Justiça inglesa, fortemente baseada na eqüidade, pôde escapar com mais facilidade do fetichismo da lei, da armadilha do formalismo legal. Pois a situação é insustentável onde a lei, assim como a doutrina econômica, ao invés de ser a expressão do interesse de todos, é apenas a volúpia de poucos. O compromisso com a eqüidade, como o senso comum, expresso em princípios e conceitos como o fair dealing, permite à Inglaterra se indignar com juros anuais de 34,9%. No Brasil, vários economistas perderam essa capacidade. O país precisa que juristas e juízes recuperem esta indignação, sem a qual vida social não há.

O formalismo econômico, combinado ao colonialismo cultural, pretende naturalizar juros “grosseiramente exorbitantes”. Torná-los por definição necessários. Não o são. A questão não é simplesmente “aceitar os contratos” ou “descumprir os contratos”. O fundamental está em uma questão anterior: “que contrato é este?”. Trata-se de respeitar aqueles contratos que merecem ser respeitados.

O problema não está no fato de “os juízes promoverem a insegurança”, mas sim no fundamento que utilizam para afastar cláusulas contratuais neste ou naquele caso concreto. “Respeitar contratos”, como radicalmente se pede em algumas esferas econômicas estrangeiras, mais parece palavra de ordem para limitar a função jurisdicional dos juízes. Como se não existissem cláusulas conflitantes em um mesmo contrato. Como se não existissem outros princípios jurídico-constitucionais que devem ser obedecidos.

No caso inglês, o julgador se baseou na constatação de que os juros não podem aumentar quase três vezes ao ano e triplicar uma dívida. Qualquer dívida. O senso comum que lá funda o princípio jurídico do fair dealing funda a indignação também. Bem pode servir para nos indignarmos por cá. O que não deverá surpreender ninguém, aliás. Aqui e acolá, decisões nesta linha já existem. Como a do respeitado ministro Ruy Rosado de Aguiar, relator de acórdão do Superior Tribunal de Justiça no qual se estabeleceu que uma dívida que cresce quatro vezes em 24 meses ofende dignidade da pessoa humana, os bons costumes e a igualdade contratual.

Autores

  • é mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA), doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), professor de Direito Constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ, e membro do Conselho Nacional de Justiça.

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