A verdade, enfim!

Que nunca mais militantes sejam estigmatizados sem direito a defesa

Autor

12 de dezembro de 2004, 6h02

O escritor e filósofo Jean-Paul Sartre, no conto “O Muro”, mostra um militante da Resistência francesa fazendo uma falsa confissão a torturadores – de que se encontraria com os companheiros no cemitério – e se surpreendendo com o desfecho imprevisível do caso: depois de sua prisão, o local do encontro havia sido realmente mudado… para o cemitério.

Imaginação fértil? Nem tanto. Quando eu estava preso, cruzei com um militante (se bem me lembro, do PCB) que havia sido detido por uma dessas infelizes coincidências. Alguém, sob tortura, inventara um hipotético “ponto” ao meio-dia, diante da Galeria Alasca, em Copacabana. Esse outro coitado, que tinha realmente um encontro marcado naquele lugar, percebeu a presença da repressão e tentou fugir, sendo agarrado.

Fui vítima de uma dessas ironias da História – e precisei de 34 anos para conseguir entender todo o quadro e poder reconstituí-lo neste artigo.

Militante da Vanguarda Popular Revolucionária, eu comandava o setor de Inteligência da organização no Rio de Janeiro, depois de haver exercido a mesma função em São Paulo. No intervalo entre as duas designações, integrara uma equipe precursora incumbida de implantar um campo de treinamento guerrilheiro em Jacupiranga (região de Registro, SP).

Depois de dois meses, nós cinco (Carlos Lamarca, Massafumi Yoshinaga, Yoshitame Fujimori, José Lavecchia e eu) concluímos que a região era impraticável para o que pretendíamos: muito visível, freqüentemente percorrida por caçadores e membros da comunidade local, próxima demais da estrada. Decidimos abandoná-la. Foi quando voltei à cidade, porque não me adequara bem ao trabalho no campo.

Preso pelo DOI-Codi às 6h45 do dia 16 de abril de 1970, fui torturado durante a manhã inteira. À tarde, já muito debilitado, tive de relatar o que fizera durante os 12 meses de militância na VPR. Eu tinha informações importantes que não podia em hipótese nenhuma revelar, mas percebia que a minha resistência não duraria para sempre. Precisava convencer a repressão de que estava revelando o que sabia – e de que sabia bem pouco. Foi quando “abri” a área abandonada, na certeza de que estava entregando aos torturadores apenas terra e capim.

Os acontecimentos subseqüentes agora podem ser reconstituídos, a partir de relatório do II Exército que está disponibilizado no site Resgate Histórico. Só no dia 17 essa informação chegou à Oban em São Paulo, pois o próprio DOI-Codi não lhe deu muita importância. Foram despachadas duas equipes de agentes ao local e voltaram de mãos abanando, com a informação de que a área havia sido mesmo abandonada dois meses antes.

Paralelamente, com o interrogatório de outros presos, o I Exército descobriu que havia uma área ativa nas proximidades daquela que fora efetivamente abandonada. Iniciou-se, então, a operação de cerco, rompido espetacularmente pelo Lamarca.

Um historiador sério como Jacob Gorender estranhou o fato de eu haver ficado na cidade sabendo de informação tão importante; pelas rígidas normas de segurança das organizações guerrilheiras, eu deveria ter sido mandado para o exterior.

O fato é que eu e o Massafumi, ao voltarmos para a cidade, ignorávamos completamente que a área 2 havia sido implantada a apenas alguns quilômetros de distância da área 1. Foi um terrível erro operacional do Lamarca. Como a VPR já estivesse sentindo falta de aliados para levar a cabo as tarefas que se propunha, o Lamarca jogou com a sorte, servindo-se do mesmo aliado (ex-prefeito de Jacupiranga) para intermediar a aquisição da área abandonada e também da que seria desenvolvida em seguida.

Mais: fez-nos crer que, para escolher a nova área, precisava viajar o dia inteiro. Saía numa Rural bem cedinho e voltava à noite. Nas conversas com Fujimori e o motorista “Monteiro”, deixava escapar detalhes que faziam supor que a área 2 se localizasse no Paraná.

Então, embora eu estranhasse a rapidez com que a repressão descobrira a área 2, fiquei um bom tempo acreditando que havia sido um trabalho de investigação policial: da área 1 ao ex-prefeito, do ex-prefeito à área 2. Poderia ter acontecido dessa forma, e eu seria um delator involuntário. Mas, está provado agora, não foi isso que aconteceu. Levei 34 anos para ter a confirmação de que houve mais gente nesse circuito e eu não passei do bode expiatório que estava mais à mão.

As conseqüências vieram em cascata – ruins para todos.

Desrespeitando o compromisso solene de não julgar o comportamento de seus militantes na prisão, negando-lhes o direito de defesa, a VPR me excluiu da lista de prisioneiros trocados pelo embaixador alemão em junho de 1970. Ou seja, já me haviam escolhido como culpado “oficial” da queda do campo de treinamento, ou para que fosse preservada a pessoa que realmente tinha culpa, ou porque, em liberdade, eu poderia expor e questionar os erros operacionais do Lamarca.

Como nunca fui ingênuo, intui o que estava ocorrendo. Para piorar, o seqüestro do embaixador foi executado a partir de um plano que a repressão já conhecia e por uma unidade da VPR (ajudada pelo MR-8) cuja existência eu e outros militantes presos conseguíramos ocultar dos torturadores. Os relapsos agentes do DOI-Codi devem ter sido chamados às falas por seus superiores e se vingaram em mim, passando a espancar-me independentemente dos interrogatórios – por pura vingança.

Transferido para a PE da Vila Militar, continuei sofrendo maus-tratos e acabei tendo o tímpano perfurado. Nessas condições, massacrado pela repressão e sentindo-me traído pelos companheiros, acabei aceitando participar da farsa do arrependimento em rede nacional de TV que me foi imposta pelo tenente Aílton Joaquim como condição para deixar de ser torturado e conservar minha vida.

Em setembro de 1970, um manifesto da VPR sobre os acontecimentos de Registro começou assim: “Delatada por Massafumi e Lungareti, a área de treinamento de guerrilha da VPR sofreu ataque das Forças Armadas…”. Dupla infâmia. A VPR, com certeza, sabia muito bem da minha inocência. Quanto ao Massafumi, coitado, não tinha absolutamente nada a ver com a história. As culpas foram jogadas nas costas de quem já estava na berlinda, pouco importando a verdade dos fatos.

O Massafumi saiu da VPR por não suportar o “militarismo”, a falta do “calor das massas”. Nunca mais o vi com vida, então baseio-me em relatos alheios (confiáveis). De família pobre, procurado intensamente pela repressão, passou dois meses vivendo como mendigo no Mercado Municipal de São Paulo. Finalmente, conseguiu uma “ponte” para consultar um antigo líder dele que já estava preso e foi aconselhado a entregar-se, sob compromisso de que não seria torturado nem teria de delatar ninguém.

Foi rapidamente colocado em liberdade, mas não reencontrou o calor das massas. Discriminado e ridicularizado nos meios que freqüentava, começou a enlouquecer. No final, preferia viver no litoral por acreditar que os pensamentos dele poderiam ser captados pela repressão; estando no nível do mar, ficaria a salvo dos telepatas da Capital. Acabou se matando.

Eu sobrevivi física e moralmente. Em 1986, travei uma luta desesperada para salvar a vida dos “quatro de Salvador”, cuja greve de fome acabaria em tragédia se um dossiê meu não tivesse chegado às mãos do ministro da Justiça Petrônio Portela. Em 1994, numa longa polêmica com Marcello Rubens Paiva nas páginas da Folha de S. Paulo, comecei a esclarecer o episódio de Registro. Solidarizei-me em artigo publicado no Jornal da Tarde ao Paulo de Tarso Venceslau quando ele foi injustamente expulso pelo PT. Lutei contra os favorecimentos praticados pela Comissão de Anistia, mas também defendi a essência desse programa da ofensiva da direita para implodí-lo a partir da má repercussão das indenizações milionárias. E, agora, pude finalmente esclarecer o que ocorreu em 1970.

Torço para que nunca mais um militante revolucionário seja estigmatizado sem direito a defesa, nem tenha de lutar tanto para resgatar seu nome e sua dignidade.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!