Causa e conseqüência

Não há porque dispensar o contraditório no inquérito policial

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9 de dezembro de 2004, 17h42

A passos largos, multiplica-se a criminalidade. Tanto a violenta, como a ardilosa, a fraudulenta. Em números e formas, em latitude e longitude. E, com ela, não apenas a sensação de insegurança, mas também o pensamento de que, na etiologia do fenômeno, preponderante papel desempenha a impunidade.

Até ai, nada de errado ou falacioso. Afinal, seja como fato, seja como crença, a impunidade, embora não encerre a condição de único “fator criminógeno”, na multifária e explosiva fórmula genética do crime figura, sim, como ingrediente de destaque.

Sofisma-se, entretanto, quando à impunidade se atrela, como motivo determinante, a atuação do advogado criminal, o exercício do direito de defesa, em sua vertente técnico-jurídica.

Informações imprecisas, conceitos deturpados, comentários facciosos, opiniões preconceituosas e mistificadoras sobre assuntos e causas criminais, em aluvião veiculados pela mídia em geral, tendem a infundir na consciência social a falsa, mas sedutora, a par de nefasta concepção de que na defesa dos acusados reside um dos mais vigorosos propulsores da não raro distorcidamente propalada impunidade.

Mais do que à desconfiança e ao desprezo, à repulsa, à aversão da opinião pública atira a “opinião publicada”, indiscriminadamente, os advogados que patrocinam defesas criminais.

Olham-nos, muitos, como se fôssemos parceiros dos “delinqüentes” a quem prestamos assistência jurídica. Vêem-nos, outros tantos, como cúmplices dos réus cuja defesa patrocinamos.

Poucas não são, quanto mais não fosse, as chacotas, as pilhérias dedicadas aos criminalistas.

Desconhecem ou ignoram os que assim nos tratam os mandamentos constitucionais a teor dos quais “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”; “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”; “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”; entre outros.

Não sabem ou se esquecem, também, que a defesa, na lapidar advertência do grande Ruy Barbosa, “… não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz de seus direitos legais.”

Não querem ou não conseguem compreender que, por essas e outras, o “direito de punir da sociedade só se afirma racionalmente se e quando recair sobre o verdadeiro réu, condição cuja aferição, em qualquer sistema jurídico-processual civilizado, não prescinde, não pode prescindir do efetivo exercício, com a amplitude que a Lei Fundamental enfaticamente proclama e assegura, do direito de defesa”.

Direito, ao demais, fulcralmente condicionado, na forma e na substância, na liturgia da lei e na praxe judiciária, à atuação do advogado, ao efetivo desempenho do crucial munus da advocacia na sua precípua função, pontualmente assinalada por Raimundo Faoro, de “lutar pelo império do Direito e das leis, de pelejar contra as injustiças sociais, de suprimir o arbítrio, de promover a paz como fruto da Justiça”.

Nesse contexto e diante de tal quadro, “… o essencial é que o advogado, sempre zeloso no cultivo dos preceitos éticos de sua profissão e de sua consciência, não se acovarde jamais, sempre que for necessário levar aos atribulados que carecem de amparo, a sua boa vontade, a sua ciência e, principalmente o seu destemor …, sejam quais forem as armadilhas e os ódios, as perseguições e as vilanias …” (1)

Para tanto, aos que exercem a advocacia criminal impõe-se, à partida, cobrar a incondicional observância do preceptivo constitucional que outorga ao cidadão preso e autuado em flagrante e, por incoercível extensão lógico-jurídica, aos indiciados em geral, o direito à assistência de advogado.

Não, porém, aquela que se circunscreva à mera presença física do profissional da advocacia, mesmo porque como tal não demandaria consagração constitucional, mas a que se materialize em ativa participação técnico-jurídica com vistas à preservação dos direitos e garantias individuais fundamentais, facultando-se-lhe praticar todos os atos necessários à corporificação das regras constitucionais de proteção ao cidadão submetido à atuação estatal persecutória.

Urge propugnar, outrossim, o reconhecimento de que o inquérito policial, por abrigar, em sua atual moldura jurídica, não apenas mera investigação, mas também – e ineludivelmente – “atos instrutórios definitivos de efeitos judiciários impostergáveis”(2), verdadeira formação de culpa desprovida de qualquer provisoriedade, como a que decorre, verbi gratia, do exame de corpo de delito, das perícias em geral, da busca e apreensão de documentos, papéis e objetos, não há desenvolver-se sem a possibilidade de participação do indiciado na realização dos atos que traduzam a produção de elementos de convicção potencialmente definitivos e, portanto, representativos de autêntica instrução criminal.

A menos que minimamente plausível fosse a intelecção de que ao inquérito policial ou a qualquer outro procedimento que lhe faça as vezes cumpre, não reconstituir, na medida do possível e seja ela qual for, a verdade concreta acerca de fato virtualmente criminoso, mas tão-só desvelar realidade necessariamente delituosa para, mais do que viabilizar, induzir o oferecimento de acusação, a instauração do processo e a condenação do cidadão, razão jurídica nenhuma haveria, como não há, em ordem a obstar o exercício da contraditoriedade nessa primeira etapa da persecução penal, especialmente no que concerne aos atos que guardem a feição e a função de instrução criminal definitiva.

Não obstante, ferrenha a oposição à admissibilidade do contraditório no inquérito policial.

Tanto quanto, todavia, sintomática a mais não poder.

Afinal, por que tantos com ela tanto se incomodam?

Por que temer a possibilidade de participação do indiciado, não na investigação propriamente dita e considerada, mas nos atos do inquérito policial ou sucedâneo que, como exteriorização do resultado das pesquisas que a constituem, consubstanciam “operações informativas que pessoalmente hão de atingi-lo, para o bem ou para o mal, pouco importa, mas diretamente na sua liberdade individual, arriscada a sofrer todos os constrangimentos materiais e morais de um processo criminal” (3)?

Que papel, enfim, atribuir, em pleno terceiro milênio, ao inquérito policial?

O de reconstruir, objetivamente, realidade concreta?

Ou o de construir, à moda da “Santa Inquisição” ou de algumas de suas mais recentes reencarnações, verdades abstratamente preconcebidas em atenção a conveniências ideológicas ou em homenagem a interesses inconfessáveis?

À reflexão.

Perscrutando-se, contudo, a história da humanidade na perspectiva dos sugestivos passos da persecução criminal ao longo dos tempos; outrora e agora, alhures e aqui!

Notas de rodapé:

1- BRANCO, Tales Castelo. Da Prisão em Flagrante. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 1988, página 219.

2- Expressão do saudoso professor Sérgio Pitombo.

3- Professor Joaquim Canuto Mendes de Almeida.

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