Bicho de sete cabeças

Juiz do Trabalho estuda o comportamento das pessoas no tribunal

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4 de dezembro de 2004, 8h14

É hoje o dia. João chega meia hora antes do horário marcado e fica aguardando na sala de esperas do Fórum. Gente entrando, gente saindo. Todas com calhamaços de papel debaixo do braço. Alguns até conversam de forma descontraída, mas, a maioria mantém aquela feição séria que já preocupa João.

Cerca de 20 minutos depois chega seu ex-patrão acompanhado de dois advogados. O “seu” Paulo nem o cumprimenta e apenas olha para o ex-funcionário com aquele olhar de decepção. Mais alguns instantes de espera, três copos de água, as mãos um tanto trêmulas e, quando João já até se distraía com o movimento, o juiz o chama. Bate aquela vontade de ir ao banheiro. Mas agora não dá mais tempo.

Diante do juiz e bem de frente com “seu” Paulo, João começa falando baixinho e não pára de suar. Os advogados conversam com o juiz, João solta mais algumas frases, responde quatro perguntas, o ex-patrão continua com aquele olhar de decepção e, quando menos se percebe, a sessão acabou. Que alívio.

Nessa pequena história, os nomes são fictícios, mas os fatos são bem reais. Quem está acostumado com o ambiente dos fóruns e tribunais, talvez nem se dê conta disso, mas tem muita gente que fica apavorada simplesmente ao ouvir a palavra “audiência”.

Mas, então, o que fazer para que esse nervosismo todo não atrapalhe o andamento dos processos? Para o juiz Rui Cavenaghi Argentin, o segredo é fazer perguntas curtas e não deixar que nenhuma das partes fique “divagando nas respostas”. Titular da 32ª Vara do Trabalho de São Paulo, Argentin é um estudioso da psicologia da audiência.

“Não se pode deixar as partes ou os advogados se estenderem muito. Isso só aumenta o nervosismo e não resolve nada. Por isso, minhas audiências são muito rápidas. A adrenalina de quem participa de uma audiência sobe nos momentos que se antecedem e se você deixar que os advogados se digladiem, pode colocar querosene que explode”, brinca.

Dramalhão

Segundo o juiz, muitos casos na Justiça do Trabalho têm origem em questões que nascem a partir de broncas pessoais, fazendo com que as emoções e sentimentos falem mais alto no momento da audiência. “Tem muita doméstica, por exemplo, que aciona a Justiça contra a patroa, porque teve alguma briga com ela. São casos, por exemplo, nos quais a empregada chegou mais tarde, ou faltou no serviço e, depois de ser repreendida pela patroa, ou mesmo após ser demitida, decide ‘colocar no pau’, como dizem”, afirma. “Também tem muita patroa que acha uma injustiça, uma traição a empregada requerer certos benefícios, porque quando trabalhava na casa dela, ‘recebeu tudo’: roupa, comida, sapato, batom, etc. Aí uma pula no pescoço da outra e vira aquela confusão. É preciso ter muita habilidade para lidar com esses casos”, completa.

Nesse ambiente, onde se mesclam doses de hostilidade com cenas que lembram as novelas mexicanas, há também espaço para situações nada engraçadas. Argentin rememora um caso que terminou em tragédia há poucos anos, quando atuava no Fórum de Osasco. Na ocasião, um reclamante morreu bem diante do juiz. “Ele era cego. Como não estava visualizando o que se passava ali, apenas imaginava o que poderia acontecer na minha sala. Ele foi chamado para uma oitiva. No caminho entre o local de espera e a sala de audiência, o homem teve um ataque cardíaco fulminante. Tentamos reanimá-lo no local, mas não teve jeito”, conta.

Pega na mentira

E quando as testemunhas mentem? Será que dá para perceber? “Dá”, garante o juiz. “Claro que isso também é uma questão de experiência. Depois de 15 anos ouvindo pessoas, você consegue detectar se ela está ou não mentindo”, destaca. No entanto, se por um lado as mentiras são perceptíveis, por outro, ela só pode ser anulada em caso de contra-prova. “Na Justiça do Trabalho, que é minha área, a absoluta maioria dos casos refere-se a questões ligadas a horas extras. Muitas vezes a gente sabe até que o patrão pagou as horas extras. Mas, como muita gente faz isso sem registro, por causa dos altos encargos sociais, então o que prevalece acaba sendo o testemunho do funcionário. Sem contra-prova, não tem jeito — o problema é insolúvel”, afirma.

Mas, é bom que se afirme: falso testemunho é crime e dá cadeia. De acordo com o artigo 342 do Código Penal “fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, como testemunha, perito, tradutor ou intérprete em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral”, configura crime contra a administração da Justiça, com pena que vai de um a três anos de reclusão, além da aplicação de multa.

Nesse caso, o juiz comenta que muitos advogados acabam orientando os clientes a falarem exatamente aquilo que querem, mesmo que seja uma mentira. “Muitas testemunhas não tem o menor pudor em dizer que não marcavam as horas extras. E, sem a contras-prova, o que prevalece é o depoimento da testemunha. Elas são, geralmente, induzidas pelo advogado a falar isso, até porque, quando essas pessoas procuram um advogado ele, normalmente, diz que o cliente não vai ter custo nenhum com o processo e, somente no caso de ganhar a causa, é que o advogado levará uma porcentagem”, cutuca.

O advogado trabalhista Luiz Salvador, rebate parte das afirmações do juiz. Garante que as empresas é que não respeitam a legislação vigente. “O problema é que as empresas não cumprem o determinado pelo parágrafo 2º do artigo 74 da CLT, que dispõe que ‘para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso’. Salvo exceções raras, os empregadores exigem sobrejornada.

E, para evitar fiscalizações do Ministério do Trabalho e multas, não permitem a anotação de toda a jornada, sendo que algumas empresas adotam banco de horas paralelo, onde as horas extras trabalhadas são armazenadas em controle separado para uma eventual compensação oportuna, mas que nem sempre ocorre”, afirma.

Salvador comenta ainda que boa parte dos empregadores costuma abusar do direito de defesa. “Eles afirmam que a jornada trabalhada é apenas a oficial registrada em seus controles, violando com isso o dever da lealdade processual das partes”, conclui.

O advogado lembra ainda que há um Projeto de Lei no Congresso Nacional (PL 58/2001) que trata da litigância de má-fé na coleta de provas testemunhais nos julgamentos na Justiça do Trabalho.

Domínio próprio

Para ele, o nervosismo das pessoas durante a audiência, tem outro motivo. “Pouquíssimos reclamantes têm domínio próprio no sentido de não se sentir inseguros ao se sentar à frente do juiz — que consideram um ente poderoso que pode decidir pela vida, ou a sua própria sentença de morte. O receio não é nem tanto com relação ao seu empregador, mas pelo desrespeito e abuso havido na relação contratual”, destaca. “No geral o empregado não reclama de seus direitos trabalhistas quando bem tratado e respeitado em sua dignidade, mas, quando é desrespeitado e considerado como mera mercadoria substituível, fica ofendido e quer buscar uma compensação na Justiça”, completa Salvador.

Treinee

Divergências à parte, o juiz Rui Argentin dá uma receita para amenizar as disputas e melhorar essa relação que transformam os juízes, como disse Salvador, em “poderosos” sentenciadores da vida ou da morte.

Juiz do Trabalho desde 1990, Argentin, que também já advogou durante cinco anos, ressalta que sua experiência como chefe de pessoal de uma empresa (também por cinco anos), ajuda bastante a entender o funcionamento do sistema. “Deveria haver uma preparação dos juízes do Trabalho, uma experiência ou um treinamento em empresas e sindicatos para entender como as coisas funcionam. Isso nos deixa mais preparados para compreender as motivações e o comportamento das partes durante uma audiência”, sugere.

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