MP fora d’água

OAB reafirma que poder para investigar é da polícia e não do MP

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31 de agosto de 2004, 17h18

O conselheiro federal da OAB pelo Rio Grande do Sul, Cezar Roberto Bitencourt, entregou nesta terça-feira (31/8) seu relatório e voto aos representantes dos 20 institutos científicos jurídicos que visitaram a sede nacional da Ordem. Ele é relator da proposta que sustenta que o Ministério Público não tem poder de investigação em matéria criminal. O Supremo Tribunal Federal deve colocar o assunto em votação nesta quarta-feira (1º/9).

“A função de investigar crimes e provas é da polícia e não do Ministério Público, porque a Constituição não atribui a este último o poder de investigar criminalmente”, disse Cezar Bitencourt durante a reunião com os institutos.

Leia a íntegra do voto

“Poderes Investigatórios do Ministério Público:

Nos últimos tempos, ganhou relevo nacional o questionamento sobre a legitimidade ou constitucionalidade das investigações criminais que, nos casos rumorosos, tem sido levado a efeito pelo Ministério Público, tanto no plano federal quanto estadual.

A partir da promulgação da Carta da República de 1988, o Ministério Público, invocando fundamento que diz lhe dar suporte legal, vem realizando, nos últimos tempos, diretamente investigações criminais (principalmente, como se vê no cotidiano forense, naqueles emblemáticos casos midiáticos ou nos que a opinião pública rotula como gravoso), sem requisitar, à autoridade policial, a instauração de inquérito. Sustentam, em síntese, que sendo os titulares da ação penal pública, não podem ser – aliás, nunca foram – um mero convidado inerte durante a realização do procedimento preliminar, razão pela qual podem, não só requisitar diligências ao delegado de polícia, mas realizá-las diretamente, se for necessário e conveniente (quem pode o mais, pode o menos, alegam). Tudo sintetizam, em nome da segurança pública que está a impor a todos uma adequação à realidade moderna, ditada pela criminalidade dita organizada e/ou violenta.

Trata-se de questão constitucional de alta relevância: no ordenamento jurídico vigente, o Ministério Público tem poderes investigatórios na esfera criminal?

Atendendo à proposição deste Conselheiro, preocupado com as conseqüências do inquérito 1.968-E, no Supremo Tribunal Federal, que pretende avaliar a constitucionalidade das atividades investigatório-criminais do Ministério Público, o digno Presidente do Conselho Federal da OAB, Dr. ROBERTO ANTONIO BUSATO resolveu submeter o tema à apreciação do Plenário deste sodalício. Nesse inquérito, subscreveram memoriais as seguintes entidades: Associação Internacional de Direito Penal (AIDP), Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCcrim), Instituto Carioca de Criminologia (ICC), Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC), Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto Manoel Pedro Pimentel (IMPP) e Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC), fato que somente ratifica a relevância do tema, que ultrapassa eventual disputa de poder em favor desta ou daquela instituição. Nessa linha, importa tão-somente estabelecer um marco constitucional, preservando a manutenção do equilíbrio entre os órgãos integrados na persecução penal estabelecido na Carta Magna.

O debate ganhou grandes proporções mais recentemente, a despeito de tratar-se de tema antigo, ante o esforço do Ministério Público em demonstrar que a Constituição Federal atribuiu-lhe poderes investigatórios em matéria criminal. No entanto, o próprio Ministério Público reconhece, ao menos tacitamente, a inexistência dessa atribuição defendendo a necessidade de aprovação de emenda constitucional para tal fim. Nesse sentido, tramita no Congresso Nacional, com esse objetivo, a PEC nº 197/2003.

Os fundamentos jurídicos, basicamente, apontados pelos defensores dos poderes investigatórios do Ministério Público, na ordem jurídica vigente, são os seguintes:

1. a segurança pública e a apuração das infrações penais não são atribuição exclusiva da Polícia Judiciária;

2. o art. 129 da Constituição da República inclui em seus vários incisos, entre as atribuições do Ministério Público, a investigação criminal;

3. O inquérito policial é facultativo e dispensável para o exercício da ação penal;

4. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, bem como a Lei Orgânica do Ministério Público da União contêm dispositivos que se compatibilizam com os poderes investigatórios penais da referida instituição;

5. O Ministério Público, ao investigar, não assume ações unilaterais da acusação, de forma a alhear-se à “verdade real”;

6. Diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros atribuem ao Ministério Público poderes de investigação no âmbito processual penal.

7. Por fim, nessa reta final, com uma campanha mais maciça e mais agressiva, está veiculando nos meios de comunicação, especialmente em São Paulo, o seguinte slogan: “com o Ministério Público não há Mistério”! Esse slogan traz em seu bojo, no mínimo, a insinuação de que com outras instituições falta transparência, prejudicando a confiabilidade.


Cada um dos referidos argumentos mereceria uma particular análise, à luz da Constituição Federal; no entanto, neste espaço, é inviável um exame tão minucioso, pois tornaria este voto exageradamente longo, incompatível com as normas regimentais deste Conselho Federal. Por isso, faremos uma análise sucinta.

1. A segurança pública e a apuração das infrações penais não são atribuições exclusivas da Polícia Judiciária

Não se ignora que, no ordenamento nacional, a Polícia Judiciária não monopoliza a investigação criminal, na medida que outras autoridades também podem exercer a função investigatória, como ocorre, por exemplo, com as CPI; com os crimes falimentares, com os crimes praticados por membros da Magistratura ou do Ministério Público, que são investigados pelas próprias autoridades, respectivamente, conforme o caso etc.

No entanto, nesses exemplos, quando constitucionais, são expressas exceções à regra geral, que é a apuração das infrações penais por parte da Polícia Judiciária (art. 144 e parágrafos da CF e no art. 4o caput do CPP). A demais, as exceções a essa regra geral dependem, necessariamente, de expressa previsão normativa, o que não se verifica no caso do Ministério Público, na esfera criminal.

A investigação criminal pelas Polícias, como regra, é imposição do princípio da legalidade, sob a ótica administrativa, segundo o qual a Administração Pública somente poderá agir diante de texto de lei que a autorize. Ademais, é direito do cidadão e da sociedade saber antecedência a quem incumbe investigar determinada infração penal, respaldado pela Constituição e pelas leis infra-constitucionais. Esse direito é decorrência natural da segurança jurídica, que deve ser preservada nos Estados Democráticos de Direito.

Por isso, não há como se afastar a regra geral de apuração das infrações penais pelas Polícias, civil e federal, sem norma expressa a respeito, compatível com o texto constitucional.

2. O art. 129 da Constituição da República inclui em seus vários incisos, entre as atribuições do Ministério Público, a investigação criminal.

Ao contrário, a leitura do texto constitucional leva à constatação, de plano, que não foi previsto poder de investigar infrações penais, entre as atribuições ministeriais. Extraí-lo do rol contido no art. 129 em questão seria legislar sobre aspecto que o constituinte deliberadamente não o fez. Aliás, a um órgão público, não é dado fazer o que não está proibido (princípio da compatibilidade), mas tão-só o que lhe está expressamente permitido (princípio da conformidade/ legalidade); e a isso não se chega pela via da interpretação, usando-se argumento a fortiori, especialmente se há precisão da atribuição a outro órgão estatal como, no caso, à Polícia Judiciária.

Seria incompreensível que o legislador constituinte indicasse expressamente o poder do Ministério Público de requisitar diligências investigatórias e de instauração de inquérito policial e, inadvertidamente, deixasse de constar o poder de investigar diretamente as infrações penais. À evidência, trata-se de decisão consciente do constituinte, que não desejou agraciar o Parquet com essa atribuição, preferindo conferi-la à Polícia Judiciária.

A retrospectiva sobre a norma constitucional, por seu turno, que trata das atribuições ministeriais, revela que as propostas de introdução de texto versando sobre a condução de investigação criminal pelo Ministério Público foram rejeitadas. Nesse sentido, merece ser destacado o entendimento sustentado pelo Ministro Nelson Jobim, contido no RHC No. 81.326-7 (DF), que está assim vazado:

“Na Assembléia Nacional Constituinte (1988), quando se tratou de questão do Controle Externo da Polícia Civil, o processo de instrução presidido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO voltou a ser debatido.

Nesse sentido, leio voto que proferi no RE 233.072, do qual fui Relator para o acórdão:

quando da elaboração da Constituição de 1988, era pretensão de alguns parlamentares introduzir texto específico no sentido de criarmos, ou não, o processo de instrução, gerido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.

Isso foi objeto de longos debates na elaboração da Constituição e foi rejeitado’

Na verdade, a Constituição distinguiu a atuação ministerial em procedimentos administrativos de sua competência, v.g. o inquérito civil, daquela referente à investigação criminal, limitando, no último caso, a atividade do Ministério Público à requisição de inquérito policial e de diligências investigatórias.

Com efeito, o art. 129, VI da CF, que se refere à expedição de notificações, pelo Ministério Público, nos procedimentos administrativos de sua competência, não abrange a sua atuação nas investigações criminais. Por outro lado, o disposto no inciso IX do mesmo dispositivo constitucional, não pode ser estendido para abranger também a realização de investigação criminal, que, repita-se, está constitucionalmente atribuída a outro órgão.


Em outras oportunidades, como no seguinte, o STF já decidiu que o Ministério Público não tem poderes para realizar investigação criminal, cabendo tal atribuição à Polícia Judiciária:

“CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. ATRIBUIÇÕES. INQUÉRITO. REQUISIÇÃO DE INVESTIGAÇÕES. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. C.F., art. 129, VIII; art. 144, parágrafos 1o. E 4o.. I – Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, C.F., no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes a apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (C.F., art. 144, parágrafos 1o. e 4o. ). Ademais, a hipótese envolvia fatos que estavam sendo investigados em instância superior. II. R.E. não conhecido” (RE no. 205473/AL, Rel. Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, j. 15.12.1998, DJ 19.3.1999, p. 19) – (grifos acrescentados).

3. O inquérito policial é facultativo e dispensável para o exercício da ação penal.

Embora seja verdadeiro o argumento de que o inquérito policial é facultativo, não atende ao fim pretendido. Com o efeito, se o Ministério Público, dispuser de elementos probatórios suficientes, poderá propor a ação penal independente de inquérito policial (art. 39, § 5º, CPP). Por isso, não raro depara-se com ações penais fundadas em procedimentos administrativos tributários e previdenciários. No entanto, o fato de dispensar, em situações específicas, o inquérito policial, não significa, que, em decorrência dessa previsão, possa o Ministério Público investigar diretamente. A dispensa de inquérito policial, com efeito, está condicionada a serem oferecidos com a representação, “elementos que o habilitem a promover a ação penal” (art. 39, § 5º, do CPP), nesse caso, devendo oferecer a denúncia em quinze dias.

Não dispondo dos elementos probatórios necessário, contrariamente, a Constituição, em seu art. 129, inciso VIII, autoriza ao Ministério Público requisitar a instauração do inquérito, que ficará a cargo da Polícia Judiciária. São, como se constata, coisas completamente distintas.

4. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, bem como a Lei Orgânica do Ministério Público da União e dos Estados contêm dispositivos que se compatibilizam com os poderes investigatórios penais da referida instituição

No entanto, ao contrário do que pretende o Parquet, examinando-se diplomas legais mencionados, mais uma vez se comprova que, nem mesmo as Leis Orgânicas que regem as atividades do Ministério Público, dispõem sobre os pretensos poderes investigatórios na esfera criminal. O prurido dos legisladores infra-constitucionais não lhes recomendou que sequer cogitassem sobre poderes investigatórios do Ministério Público, porque esbarrariam no vício de inconstitucionalidade.

A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (no. 8625, de 12 de fevereiro de 1993), em seu art. 25, inciso IV e 26, inciso I, elenca, entre as funções ministeriais, a promoção e instauração do inquérito civil, mas não do inquérito penal. Quanto a ele, limita-se a estabelecer, no art. 26, inciso IV, que poderá o Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no art. 129, inciso VIII, da Constituição Federal, podendo acompanhá-los” (grifos nossos), mas não os presidir, isolada ou cumulativamente. Não se afasta, e nem poderia ser diferente, da previsão constitucional.

É falaciosa a tese do Ministério Público – constituindo forma clara de burlar o texto constitucional – pretender iniciar investigação através de inquérito civil, para, ao final da apuração, dar ao conteúdo investigado conotação penal e, com base nele, oferecer denúncia.

O próprio Supremo Tribunal Federal quando abordou o tema, pela vez primeira, no RE 205.473-9 interposto pelo Ministério Público, contra concessão de Hábeas-Corpus pelo TRF da 5ª Reg., trancando a ação penal. Na oportunidade, o Juiz Lázaro Guimarães, relator do writ, que não se compreendia “o poder de investigação do Ministério Público fora da excepcional previsão da ação civil pública (art. 129, III, da CF). De outro modo, haveria uma polícia judiciária paralela, o que não combina com a regra do art. 129, VIII, da CF”. A hipótese era de ação penal por desobediência, a qual foi considerada não ocorrente e o recurso extraordinário não foi conhecido, em julgamento datado de 15.12.1998, com parecer, nesse sentido, do então Subprocurador-Geral Cláudio Fonteles. Na ementa, contudo, o eminente relator do recurso, Min. Carlos Velloso, consignou sua desaprovação às investigações criminais realizadas pelo Ministério Público:


“não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial”!

Em razão de todo o exposto, vê-se que as normas regentes da matéria, em qualquer esfera, constitucional ou não, se mostram coerentes em tudo permitir ao Ministério Público, em matéria de inquérito e ação civil pública. Não estendendo, à evidência, à área criminal, restando os chamados procedimentos investigatórios/ administrativos criminais completamente ao desamparo da lei e da constituição.

Concluindo, os próprios termos da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público não atribuem poderes investigatórios ao aludido órgão, na esfera criminal.

5. O Ministério Público, ao investigar, não assume ações unilaterais da acusação, de forma a alhear-se à “verdade real”.

O Prof. Luiz Alberto Machado respondeu a essa pretensa neutralidade investigatória, nos seguintes termos:

“… a lei não pode cometer as funções de elaboração de inquérito policial e de investigações criminais a quem não se revista expressamente de autoridade policial, segundo a Constituição Federal. A leitura que se deve fazer dessa atribuição administrativa constitucional é ser uma garantia individual, a garantia da imparcialidade e impessoalidade do Ministério Público, ‘dominus litis’ e que, por isso, não deve, e não pode, investigar ou coligir informações para o exercício da ação processual criminal” (Monopólio constitucional da investigação criminal, cit., p. 442).

Indiscutivelmente a realização de investigação criminal diretamente pelo Ministério Público compromete a apuração dos fatos, dado que nessa esfera, o Parquet é parte, pensa como parte e age como parte. Haverá nítida tendência a selecionar aqueles elementos probatórios que favoreçam a acusação, especialmente considerando-se que é atribuição do Ministério Público promover, com exclusividade, a ação penal pública. Não é por outra razão, que, invariavelmente, em todas as investigações procedidas pelo Ministério Público invoca-se o famigerado “sigilo”, com notória violação aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.

Na verdade, além do arbitrário e ilegal desequilíbrio entre as partes, violando o devido processo legal, há outro fundamento para não permitir ao Ministério Público proceder investigações criminais: quem investiga adota, de plano, um determinado ponto de vista, uma hipótese provisória, uma premissa maior, sem a qual nenhuma conclusão advirá. Tal hipótese seduz o investigador, de tal forma, que o torne indiferente a qualquer outra possibilidade, o que é extremamente danoso quando ocorre com um Ministério Público inquisidor.

Além do arbitrário e ilegal desequilíbrio entre as partes, violando o devido processo legal, há outro fundamento para não permitir ao Ministério Público proceder investigações criminais: quem investiga adota, de plano, um determinado ponto de vista, uma hipótese provisória, uma premissa maior, sem a qual nenhuma conclusão advirá. Tal hipótese seduz o investigador, de tal forma, que o torne indiferente a qualquer outra possibilidade, o que é extremamente danoso quando ocorre com um Ministério Público inquisidor.

Por tudo isso, o Ministério Público não deve assumir a veste de investigador, mas sim a de eventual acusador, quando os elementos para o exercício da ação penal se apresentarem.

Na verdade, de há muito o Ministério Público abandonou aquela sagrada função de custus legis em matéria criminal, agindo, por vezes, claramente contra legis. Razões como essa justificam que já se comece a exigir a criação de um Ombudsmann, para, na fase processual essa função que, outrora, se atribuía ao Ministério Público.

6. Diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros atribuem ao Ministério Público poderes de investigação no âmbito processual penal

Os ordenamentos português e italiano adotaram – desde o Código Napoleônico de 1808, sendo ainda mantido – o juizado de instrução, que, no entanto, foi rejeitado pela Assembléia Constituinte no Brasil.

Mesmo assim, no ordenamento português, v.g., no qual a presidência do inquérito cabe ao Ministério Público, é clara a opção pela atividade investigatória coordenada e integrada entre o órgão ministerial e a polícia.

Essa integração também é prevista na Constituição Federal brasileira, na medida em que o art. 129 assegura ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, bem como o poder de requisitar diligências investigatórias. Quem tem a função de controlar e fiscalizar não pode concorrer com o controlado ou fiscalizado.

Por outro lado, a admissão, mesmo parcialmente, de atividades investigatórias penais do Ministério Público nos dois ordenamentos mencionados não derivou, pura e simplesmente, da interpretação deste ou daquele dispositivo. Foi fruto da opção do legislador pela adoção de um determinado sistema, no qual se permite que o órgão ministerial presida as investigações criminais, implicando inclusive na elaboração de novos diplomas processuais penais, algo inocorrente em nosso ordenamento vigente.


Convém ressalvar, ademais, que o novo Código italiano preocupou-se em estabelecer uma diversificação de funções, ainda na fase preliminar, instituindo a figura do giudice per le indagini preliminari (art. 328), incumbido de manifestar-se sobre certas questões de natureza probatória, e competente para examinar o pedido de arquivamento, e, sobretudo, para decidir sobre a abertura da ação penal, após uma audiência de caráter contraditório, com possibilidade de colheita de novas provas. A presença deste juiz é a forma de controlar, indiretamente, a atuação do Ministério Público, como que em resposta à famosa indagação de Juvenal: Quis coustodiet ipsos Custodes?

Extrai-se daí que nem mesmo a inserção de dispositivo na Constituição da República atribuindo poderes investigatórios penais ao Ministério Público resolveria a questão, sem macular todo o sistema que foi idealizado pelo legislador constituinte e reproduzido na legislação infraconstitucional. Isso porque, como destaca o Memorial dos Institutos Jurídicos, “uma simples mudança constitucional, não traria a necessária reformulação sistêmica para ordenar todas as Instituições (Magistratura, Ministério Público, Polícias, Defensorias e Advocacia, assim como demais órgãos auxiliares) de forma equilibrada e isonômica no desenvolvimento da persecução penal em suas fases. Faltaria, ainda, estrutura material e uma nova ordenação jurídica infra-constitucional a fim de determinar, segundo o princípio da legalidade, as novas esferas e funções para o atuar de cada órgão”.

7. Os “mistérios” do Ministério Público investigador

Realmente, além de uma grande jogada de marketing, referido slogan traz em seu bojo, pelo menos, a insinuação de que em outras instituições falta transparência, prejudicando a credibilidade, eficiência e confiabilidade. No entanto, a assertiva que transparece no slogan não é verdadeira, no campo criminal, cujas investigações realizadas pelo Ministério Público são sempre “em voltas em ministérios”.

Com efeito, contrariando referido slogan, pode-se afirmar que os “Mistérios” do Ministério Público investigatório podem ser sintetizados nos seguintes:

a) – o Ministério Público não investiga todos os fatos – os próprios defensores do poder investigatório criminal do Ministério Público reconhecem que não há interesse e nem possibilidade de o Parquet assumir a investigação de todos os fatos.

O próprio Ministério Público reconhece que não teria condições materiais de abarcar toda a investigação criminal, limitando-se a atuar em um ou outro caso, “quando o interesse público exigir”. Em suma, quer-se, no fundo, escolher os casos penais a investigar, o que soa completamente absurdo, inclusive pela falta de condições materiais, especialmente de proteção física dos órgãos do Ministério Público e aos seus.

Na verdade o Ministério Público somente tem interesse de investigar aqueles casos rumorosos que, por uma razão ou outra, rende muitos dividendos na grande mídia. Essa voracidade pela mídia, tem levado, inclusive, alguns de seus membros lançarem boatos na mídia e, após, invocarem os próprios boatos como fundamento de investigação criminal que fazem.

Em verdade, o Ministério Público, com freqüência indesejável, divulga as investigações, mesmo as taxadas de “sigilosas”, primeiro para a mídia, de tal forma que o investigado é surpreendido pelos meios de comunicação.

Em síntese, o Ministério Público não investiga os fatos, investiga somente aquilo que quer provar, isto é, somente colhe indícios e subsídios que interessem à sua tese, e não à verdade dos fatos.

b) – não admite controle jurisdicional de seus atos investigatórios – esse é seguramente um de seus maiores erros, em um Estado Democrático de Direito, ignorando o texto constitucional que assegura “aos acusados em geral” a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV, CF). Esse “mistério” das investigações do MP é complementado com o seguinte.

c) – todas as investigações realizadas pelo Ministério Público são, segundo seus próprios membros, sigilosas – basicamente em todas as investigações realizadas pelo MP tem sido invocado sigilo, inclusive para o investigado e seu advogado. Investigações procedidas em locais e horários impróprios, sem mandado judicial, tem sido levado a efeito.

Em outros termos, o Ministério Público, o quotidiano tem demonstrado isso, não admite que o defensor tenha acesso aos elementos das investigações, numa demonstração clara de sua dificuldade de atuar livremente em um Estado Democrático de Direito.

Interroga os investigados sem dar-lhes ciência dos fatos de que estão sendo suspeitos ou acusados. Recentemente, o Ministro Sepúlveda pertence, no emblemático HC 82.354-8/PR, declarou que o eventual sigilo, quando a lei permite, não abrange o investigado e seu advogado, que, constitucionalmente, têm direito e prerrogativa de serem previamente cientificados. Destacamos, por sua pertinência, parte da ementa desse writ:


I. (…)

II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial.

1. (…)

2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade.

3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.

d) –

4. (…)” (STF, 1ª Turma, (HC. 82.354-8/PR, unânime, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 10 de agosto de 2004).

Finalmente, o STF manifestou-se especificamente sobre esses abusos que, nos últimos anos, haviam feito letras morta do texto constitucional, procedimento, que, aliás, o Ministério Público é multirreincidente. Mutatis mutandis, o entendimento adotado para o inquérito policial, aplica-se a todos os eventuais procedimentos investigatórios criminais, sejam em que âmbito for.

Enfim, é preciso repensar os poderes do Ministério Público. Hoje, o cidadão não tem proteção diante do poder do Ministério Público. Estamos assistindo à disseminação do abuso e o cidadão está perdendo a possibilidade de invocar a seu favor as garantias constitucionais.

Nessa linha, e a modo de conclusão, lembramos novamente o Recurso Ordinário de HC n. 81.326-7, a 2ª Turma do STF, unanimemente, sob o voto condutor do Min. Nelson Jobim, decidiu que o Ministério Público não possui atribuições para realizar, diretamente, investigação de caráter criminal. Esse julgamento passou a ser o paradigma de muitas outras decisões de tribunais de todo o país que, antes com algumas hesitações, posteriormente vêm consagrando o mesmo entendimento. Em seu voto, o Min. Jobim destaca que, historicamente, no direito processual penal brasileiro, as atribuições para realizar as investigações preparatórias da ação penal têm sido da polícia, pelas mais diversas razões, as quais têm prevalecido a ponto de todas as iniciativas no sentido de mudar as regras nessa matéria terem sido repelidas, desde a proposta de instituir Juizados de Instrução feita pelo então Ministro da Justiça, Dr. Vicente Ráo, em 1935, passando pela elaboração da Constituição de 1988, da lei complementar relativa ao Ministério Público, em 1993, até propostas de emendas constitucionais em 1995 e 1999, com o objetivo de dar atribuições investigatórias ao Parquet.

Na verdade, os legisladores constituintes e ordinários sempre rejeitaram a idéia de transformar o Ministério Público em “Grande Inquisidor”, reservando a ele o papel superior de controlador/fiscalizador das atividades policiais. Por isso, o Min. Jobim afirma, com acerto, que a mens legis das normas em vigor é, seguramente, na direção de manter as investigações criminais como atribuição exclusiva da polícia judiciária.

Propomos, ao final, ao Plenário deste sodalício a seguinte

Ementa:

DIANTE DO ATUAL TEXTO CONSTITUCIONAL, NÃO HÁ SUPORTE JURÍDICO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO, AUTONOMAMENTE, REALIZAR INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS, QUE SÃO ATRIBUIÇÕES DA POLÍCIA JUDICIÁRIA”

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