Sem preconceito

Convocação de negros para depoimento não significa racismo

Autor

30 de agosto de 2004, 16h22

A convocação de trabalhadores negros para depor não é atitude discriminatória quando as características físicas do autor da infração coincidem com as das pessoas chamadas. Com base nesse entendimento, o Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso do Sul negou, por unanimidade, provimento ao recurso interposto por um trabalhador contra o Frigorífico Friboi Ltda.

Em outubro de 2003, a direção do Frigorífico soube que um dos 39 empregados portadores de deficiência física havia sido violentado no vestiário da empresa.

Segundo os autos, a agressão foi feita na presença de dois outros portadores de deficiência. Um procedimento interno de investigação foi instaurado e, em depoimento, a vítima e as testemunhas descreveram o autor da violência como alto e negro.

Com base nas informações, a empresa ordenou ao chefe da segurança que solicitasse a presença dos funcionários que combinassem com o perfil descrito. Seis trabalhadores com tais características foram, então, convocados ao setor de Recursos Humanos.

Um por um, os trabalhadores foram sendo convidados a entrar na sala do RH, onde estavam presentes os membros da instituição que cuida dos deficientes, a psicóloga da empresa, dois funcionários, a vítima e dois parentes.

Segundo a empresa, ninguém foi acusado e o procedimento se resumia apenas em perguntar se a vítima conhecia os suspeitos da agressão.

Nenhum dos trabalhadores foi reconhecido pela vítima e o procedimento de investigação foi suspenso porque a mesma passou a reagir com inquietação. Fotografias de outros empregados foram apresentadas, mas ninguém foi identificado como autor.

Contrariada com o fato de apenas negros terem sido apontados como suspeitos e incomodado com as gozações dos colegas, o ajudante de produção C. L. J. ajuizou reclamação trabalhista contra o Frigorífico. Na ação, ele pediu indenização por danos morais, alegando ter sido vítima de racismo.

Ao analisar o processo, o juiz da 3ª vara de Campo Grande, Marco Antonio Miranda Mendes, entendeu que não constitui discriminação racial a busca de pessoas que se encaixam na descrição da vítima.

Para ele, a vítima conduziu o empregador a buscar um agressor de cor negra. “No processo investigatório, a reclamada agiu em sigilo e com respeito ao reclamante e colegas, sem qualquer desacato ou referência à pele”, ressaltou. Com esse entendimento, o magistrado não reconheceu a prática de racismo contra o empregado.

Com as expectativas frustradas pela sentença de primeira instância, ele recorreu da decisão junto ao Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso do Sul. Em suas alegações, insistiu na tese da prática de racismo.

Ao analisar o recurso, o juiz Márcio Vasques Thibau de Almeida lembrou que, embora a família do menor tenha dispensado a investigação policial do delito, nada impede a empresa de proceder, de forma administrativa, à apuração dos fatos.

“O desinteresse da família do menor de se valer da ação pertinente não pode ceifar a reclamada do direito de identificar o autor de tamanha atrocidade”, ressaltou. Para ele, a investigação é um meio de coibir episódios futuros, de forma a garantir a segurança dos demais empregados.

Thibau ressaltou que a prova oral revelou que não houve qualquer ofensa verbal por parte da empresa. Para o juiz, ficou claro que a reclamada conduziu o processo investigativo com respeito e de forma sigilosa.

Quanto às brincadeiras de mau gosto que o reclamante alegou ter sido vítima, o relator lembrou que eventuais brincadeiras surgidas no local de trabalho não podem dar margem à caracterização de racismo por parte da reclamada. Até porque, segundo o depoimento de uma das testemunhas do reclamante, “teve até algum negro que brincou na mesma forma”.

Leia o acórdão

ACÓRDÃO

Relator: Juiz MARCIO VASQUES THIBAU DE ALMEIDA

Revisor: Juiz ABDALLA JALLAD

Recorrente: C.L.J.

Advogados: Fábio Ferreira de Souza e outros

Recorrido: FRIBOI LTDA

Advogados: Indianara Moreira Gomes e outros

Origem: 3ª Vara do Trabalho de Campo Grande – MS

Vistos, relatados e discutidos estes autos (PROCESSO Nº 01518/2003-003-24-00-0-RO.1) em que são partes as acima indicadas.

Trata-se de recurso ordinário interposto por C. L. J. em face da sentença de f. 70-74, proferida pelo Exmo. Sr. Juiz do Trabalho Substituto, Dr. Marco Antônio Miranda Mendes, a qual negou o pedido do autor de reparação de dano por discriminação racial.

Insurge-se o recorrente contra a referida decisão, manifestando seu inconformismo com o não reconhecimento da prática discriminatória perpetrada contra sua pessoa.

Contra-razões da recorrida às f. 87-94, pugnando pela manutenção da sentença objurgada.

Em conformidade com o disposto no art.26 do Regimento Interno deste Regional, com a redação introduzida pela Resolução Administrativa nº 54/2003, desnecessária a remessa dos presentes autos ao Ministério Público do Trabalho.


É o relatório.

VOTO

1 – CONHECIMENTO

Conheço em parte das contra-razões, deixando de fazê-lo no tocante às custas processuais e honorários advocatícios, eis que remédio impróprio para apreciação de pedido de reforma da decisão.

Conheço do recurso.

2 – Mérito

2.1 – Da prática discriminatória – racismo – improcedência

Inconformado, pugna o reclamante pela reforma da decisão primária que não reconheceu como ato discriminatório a prática de racismo efetivada pela reclamada.

Em contestação, aduziu a ré ter procedido mera investigação interna, com o fito de identificar o autor da violência praticada contra o menor da APAE que lhe prestava serviços.

A decisão primária, por seu turno, entendeu não provada a prática de racismo por parte da reclamada, indeferindo os pleitos exordiais.

Antecedendo à análise do caso, algumas considerações fazem-se pertinentes.

O verbo discriminar, derivado do latim discrinare, significa diferençar, distinguir, discernir, estabelecer diferenças.

Racismo consiste em atitude preconceituosa ou discriminatória em relação a indivíduo considerado de outra raça. Qualquer doutrina que sustenta a superioridade biológica, cultural e/ou moral de determinada raça ou de determinada população, povo ou grupo social considerado como raça.

Essa prática, desde os tempos mais remotos, já convivia com a sociedade, sendo numerosos os relatos históricos, os quais ainda marcam nossa mente.

Na grande maioria das vezes, a discriminação apresenta-se escancarada por palavras e, em outras situações, disfarçada, mas sempre despida de qualquer solidariedade e compaixão com o discriminado.

Atos dessa natureza encontram repúdio no ordenamento jurídico pátrio (Constituição Federal art. 3º, inciso IV, art. 5º, caput, e inciso XLII, Lei 9029/95).

Verifica-se, in casu, que o incidente ocorrido no recinto da reclamada, qual seja, a violência sexual praticada contra um de seus empregados, menor deficiente mental da APAE, foi o motivo que ensejou a alegada prática de racismo.

Revela a prova oral, primeira testemunha do reclamante, Srº Júnio César Cesário (f.67-68): que entraram na sala da Catarina e lá estavam um segurança, um menino do projeto da APAE, o reclamante, o Alcenir e uma moça, além de outras, num total de umas 06 pessoas; que nada disseram aos empregados da sala, nem os acusaram. Que foram à sala da enfermaria onde o segurança lhes informou que o menino havia sido violentado, mas que o depoente e o reclamante nada tinham a ver com isso e poderiam trabalhar normalmente. …Não sabe se o reclamante foi alvo de gozação de colegas. Que o depoente não foi. Que ficaram muito pouco tempo dentro da sala. … Que o chefe de segurança estava armado, mas anda sempre armado. Que ninguém pediu desculpa ao depoente. Que o depoente foi chamado até a sala, mas não sabia exatamente para quê, se era para ajudar na investigação ou outra coisa. Que o depoente não foi acusado e nem nunca se sentiu acusado ou suspeito do crime. …Que no setor do depoente são apenas 03 funcionários de cor negra, o depoente, o Cleone e o Alcemir. …

Na mesma esteira a terceira testemunha, Srº Acemir Antônio (f.68-69): …que foi chamado à sala da Catarina, e lá havia umas 06 ou 07 pessoas, dentre elas o chefe da segurança, um menino do projeto da APAE, a irmã e o cunhado do menino e outras pessoas. Que compareceram na sala o depoente, o reclamante e o Júnior. Que permaneceram na sala questão de minutos, de 05 a 10 minutos. Não foram acusados de nada na sala e também não houve qualquer desacato, e nem referência quanto à cor racial. Que perguntaram ao menino, naquela oportunidade, se “é algum desses daí.” Lembra-se que o menino só respondeu que não, e imediatamente foram dispensados e retornaram ao trabalho. Que esses empregados e o depoente foram chamados à sala para que o rapaz pudesse dizer se era algum deles. Que na época nada sabiam sobre o assunto e na sala disseram apenas que o menino tinha sido agredido. Que depois disso, no mesmo dia, perguntaram ao segurança e à psicóloga o que tinha acontecido, e ela disse que o menino tinha sido molestado. Que aqueles empregados não foram acusados. Que foram tratados com respeito na sala. Que o depoente não sofreu nenhuma gozação no serviço. Que desconhece qualquer espécie de gozação que possa ter circulado na empresa. Não sabe se o reclamante foi alvo de gozação. Que esse fato não trouxe qualquer prejuízo ao depoente, que permanece trabalhando normalmente. Que os de pele mais escura que trabalham no setor do depoente são os 03 que foram chamados à sala, e que trabalham de uniforme branco….

Constata-se que a reclamada, com o intuito de identificar o autor do ato repugnante praticado contra o menor, valendo-se de meios próprios, procedeu ao chamamento de três funcionários que trabalhavam no setor da vítima.


Embora à Polícia caiba a investigação do delito, nenhuma vedação há em se proceder, de forma administrativa, à apuração dos fatos e, com maior razão, em se tratando de ação penal condicionada (art. 225, § 1º, inciso I, c/c §2º, do Código Penal), a qual fica sujeita a representação da vítima ou da família.

O desinteresse da família do menor de se valer da ação pertinente não pode ceifar a reclamada do direito de identificar o autor de tamanha atrocidade, eis que dentro do recinto de trabalho, a mercê de episódios futuros, revelando-se ameaça a outros empregados.

Diante da dificuldade de expressão da vítima, utilizou-se a reclamada de outro colega da APAE para apontar as características do autor do crime, o qual descreveu-o como pessoa de cor escura, usando uniforme branco.

Com esses dados, iniciou a reclamada uma cautelosa investigação, procedendo ao chamamento dos três funcionários que trabalhavam no mesmo setor do menor, enquadrados no perfil indicado.

Independentemente da forma utilizada pela reclamada para proceder à investigação interna, revela a prova oral que não houve qualquer ofensa verbal, sendo cortês o processo investigatório perpetrado pela reclamada, a qual agiu com respeito e de forma sigilosa, tanto que os funcionários levados à sala da administração nem sequer conheciam os motivos e de lá assim saíram.

O pedido de desculpas do chefe de segurança não se presta como alça para convalidar o intento do reclamante, qual seja, o reconhecimento da prática discriminatória, uma vez que é a atitude da reclamada, em si, que determina sua existência ou não, a qual, in casu, não se configurou.

Ademais, se é que existiram, eventuais brincadeiras surgidas no local de trabalho não podem dar margem à caracterização de racismo por parte da reclamada, uma vez que os próprios empregados de cor negra foram autores da chacota, consoante se extrai do depoimento da segunda testemunha, Srº Ramão Fernando Gomes (f.68): … que depois do ocorrido no escritório da empresa, com o caso do menino do projeto da APAE, ficou uma gozação na empresa dos próprios colegas, de que os “pretos seriam estupradores”, mas não sabe apontar nenhum nome de quem teria dito isso, referindo-se genericamente a colegas de serviço, em tons de brincadeira.

Que teve até algum negro que brincou na mesma forma. …. Não sabe dizer quem teria gozado com o reclamante com essa brincadeira, mas que o reclamante dizia que essa era uma brincadeira de mau gosto….

Além de não restar caracterizado o racismo contra o autor, à reclamada não se pode imputar qualquer tipo de preconceito relacionado à cor da pele, pois esta abriu as portas de seu estabelecimento também para pessoas de cor, conferindo-lhes a condição de “empregados”, o que rechaça a tese recursal de que os negros, aos olhos de todos, são bandidos.

Nego provimento ao recurso.

Conheço do recurso e, parcialmente, das contra-razões e, no mérito, nego-lhe provimento.

MARCIO VASQUES THIBAU DE ALMEIDA

Juiz Relator

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!