Água e vinho

Apadeco não é legitima para propor ação em defesa de contribuinte

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25 de agosto de 2004, 19h53

Não há relação de consumo entre o contribuinte de um tributo e o Poder Público. Entender que existe esse vínculo é afrontoso não só à força normativa da Constituição Federal, mas também ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. Significa fortalecer as decisões das instâncias ordinárias em detrimento das decisões do Supremo Tribunal Federal.

Com esse entendimento, o ministro do STF, Gilmar Mendes, acatou Agravo Regimental interposto pela União para desconstituir acórdão em Ação Civil Pública apresentada pela Apadeco (Associação Paranaense de Defesa do Consumidor) ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região. O acórdão assegurava aos paranaenses o direito à restituição do “empréstimo compulsório sobre combustíveis”, criado pelo Decreto Lei 2.288/86.

No recurso, o Ministério Público argumentou pela ilegitimidade da entidade para motivar a ação e questionou a possibilidade de proteção de contribuintes em sede de Ação Civil Pública. Alegou a violação do artigo 5º, XXI, da Constituição porque a Apadeco entendeu desnecessária a expressa autorização dos interessados individuais pela representação em juízo. Argumentou que a autorização está prevista como indispensável no Código de Defesa do Consumidor quando se trata de ação que visa preservar interesses difusos.

Afirmou, ainda, que a entidade não fez a devida diferenciação das relações obrigacionais entre contribuintes e consumidores. Violou, assim, os artigos 2º, 3º, 81 e 82, IV, do Código Civil do Consumidor e os artigos 3º e 121 do Código Tributário Nacional, e os artigos 5º, 150 e 170 da Constituição, que definem quem é consumidor e quem é contribuinte, este último passivo de obrigação tributária.

Para Gilmar Mendes, não há relação de consumo na ação. A cobrança da contribuição é, ao contrário, imposição legal do Poder Público e não ato fornecedor que caracterize o vínculo consumidor-fornecedor. Segundo ele, o próprio Supremo já firmou entendimento segundo o qual o Ministério Público não possui legitimidade para apresentar ACP com o objetivo de impugnar cobrança de tributos, por não existir relação de consumo entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte).

Se ao STF, diz Mendes, “compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, é certo que a sua interpretação do texto constitucional deve ser acompanhada pelos demais Tribunais, em decorrência do efeito definitivo absoluto outorgado à sua decisão. Não se pode, com a manutenção de decisões divergentes, diminuir a eficácia das decisões do Supremo Tribunal Federal”.

Em seu voto, o ministro afirmou que a manutenção de soluções divergentes sobre o mesmo tema, em instâncias inferiores, provocaria, além da desconsideração do próprio conteúdo da decisão do STF, a fragilização da força normativa da Constituição. Assim, entendeu ser inviável a legitimação da Apadeco, que tem como finalidade estatutária promover a defesa do consumidor, para apresentar Ação Civil Pública na defesa dos contribuintes.

Leia o voto do ministro

SEGUNDA TURMA

AG.REG.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 382.298-2 RIO GRANDE DO SUL

VOTO-VISTA

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator):

Cuida-se de hipótese de ação rescisória com o objetivo de desconstituir acórdão proferido em ação civil pública apresentada por associação na defesa de direitos individuais homogêneos.

Para tanto, a agravante, entre outros argumentos de sua ação rescisória, alegou a falta de legitimidade ativa da associação, nos seguintes termos (fl. 14):

“c.1 – não reconheceu a ilegitimidade da APADECO, como já havia acontecido com o já citado Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor no E. STJ, onde, considerando os interesses dos associados deste último como individuais homogêneos, deu-se pela ilegitimidade ativa da autoria e pela impropriedade da tutela face, também, à diferença entre contribuinte e consumidor. De tal forma, a ação civil pública deveria ter sido extinta, ex-vi” do art. 267, VI, do CPC;

c.2 – violou o art. 5, XXI, da Constituição Federal de 1988 e, novamente, pela presença da ilegitimidade ativa, o art. 267, VI, do CPC – porque entendeu desnecessária a expressa autorização dos interessados individuais para a representação em juízo, só dispensável, à luz do Código de Defesa do Consumidor (arts. 81 e 82) e Lei nº 7.347/85 (arts. 1º e 5º, II), quando se trate de ação onde se hajam de preservar interesses difusos, inclusive de consumidores, o que não era o caso;

c.3 – não fez a devida diferenciação das relações obrigacionais entre “contribuintes” e “consumidores”, de tal forma que, aceitando umas pelas outras, violou os arts. 2º, 3º, 81 e 82, IV, do Código do Consumidor e arts. 3º e 121, do CTN, além dos arts. 5º, XXXII, e 150, II e 170, V, da CF/88 definidores de quem é consumidor e de quem é contribuinte (sujeito passivo de obrigação tributária);” (…).


O acórdão recorrido extraordinariamente definiu os limites da discussão da seguinte forma (fl. 73):

“Todos os argumentos apresentados pela União, como ressaltou o ilustre membro do Ministério Público Federal, constituem decorrências lógicas de uma única questão jurídica: a saber se é possível a proteção de contribuintes em sede de ação civil pública (fls. 118)”.

Verifica-se, que o cerne da questão está na qualificação dada aos assim chamados substituídos pela associação na defesa de seus interesses individuais homogêneos: se consumidores ou contribuintes, tendo a agravante suscitado tal questionamento inclusive sob argumento constitucional, conforme se depreende do trecho de sua ação rescisória acima transcrito.

O acórdão recorrido extraordinariamente entendeu que (fl. 73):

“… se a lei autoriza a propositura de ação civil pública por associações que incluam entre suas finalidades institucionais, entre outras, a proteção ao consumidor ou a qualquer interesse difuso ou coletivo e a APADECO, expressamente, tem por finalidade essencial promover a defesa do consumidor, de acordo com as normas do Código de Defesa do Consumidor (CODECOM) e legislação correlata, como também dos contribuintes e quaisquer outras pessoas, relativamente aos danos causados ao meio ambiente e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, na forma da Lei de Ação Civil Pública e legislação vigente, não há falar em ilegitimidade ativa.

Creio que seria quase desnecessário ressaltar, porquanto a doutrina posterior à edição do Código de Defesa do Consumidor é unânime nesse aspecto, que a ação civil pública não se presta somente para a tutela de interesses difusos e coletivos, serve também para a proteção dos interesses individuais homogêneos, como o dos consumidores de gasolina e álcool no período de vigência do Decreto-Lei nº 2.288, de 1986, que foram compulsoriamente contribuintes da exação lá prevista e posteriormente considerada inconstitucional” (…).

Percebe-se, portanto, que o Tribunal de origem legitimamente decidiu as argüições trazidas pela agravante, principalmente quando explicitou, conforme a passagem acima transcrita, que a agravada agiu na defesa dos interesses individuais homogêneos dos contribuintes da exação prevista pelo Decreto-lei nº 2.288, de 23 de julho de 1986.

Dúvida não subsiste de que a legitimidade da autora para propor ação civil pública na matéria foi apreciada. E é esta, pois, a questão jurídico-constitucional submetida à apreciação do Tribunal.

Entendo presente, assim, o requisito do pré-questionamento, principalmente quando, conforme destacado anteriormente, “todos os argumentos apresentados pela União (…) constituem decorrências lógicas de uma única questão jurídica: a de saber se é possível a proteção de contribuintes em sede de ação civil pública” (fl. 73). Ao afirmar a legitimidade ativa da agravada, o Tribunal a quo manifestou-se clara e inequivocamente pela legitimidade da ação civil pública na espécie, em flagrante contradição com a interpretação – igualmente de índole constitucional – perfilhada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Este Tribunal já pacificou o entendimento segundo o qual as questões relativas às condições da ação, para serem apreciadas em sede extraordinária, deverão ter sido objeto de debate no órgão jurisdicional de origem, não havendo cogitar conhecimento de ofício desta matéria nesta instância. Nesse sentido, v.g., o AgRAI 145.493, 2ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 07.05.93; e o AgRAI 230.596, 1ª T., Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 01.02.02, este assim ementado:

“EMENTA: Agravo regimental.

Em se tratando de recurso extraordinário, também as questões relativas às condições da ação não podem ser conhecidas de ofício, uma vez que para o cabimento de recurso dessa natureza é mister que se observe o requisito constitucional dele que é o pré-questionamento de questão constitucional porventura a ele referente. E, no caso, não houve tal pré-questionamento.

Agravo a que se nega provimento.”

Conforme demonstrado anteriormente, a agravante vem argüindo a ilegitimidade da agravada desde a sua petição de ação rescisória, inclusive sob fundamento constitucional. Tendo a Corte de origem decidido expressamente pela legitimidade ativa da associação e a recorrente atacado esta decisão em seu recurso extraordinário, não estaria o Supremo Tribunal Federal a atuar de ofício na apreciação das condições da ação.

Ressalte-se, pois, que, no caso sob exame, busca-se rescindir “acórdão que confirmou sentença proferida em ação civil pública, permitindo a devolução dos valores recolhidos, por todos os contribuintes no Estado do Paraná, a título do empréstimo compulsório sobre aquisição de combustíveis instituído pelo Decreto-Lei nº 2.288/86” (fl. 70). Percebe-se que não há relação de consumo na espécie, pois cuida-se, tão-somente, de uma imposição legal do poder público na cobrança de um tributo feita ao contribuinte, e não de um ato do fornecedor a caracterizar uma relação de consumo (consumidor-fornecedor).


Esta Corte, quando do julgamento do RE 195.056, Plenário, Relator Ministro Carlos Velloso, já firmou o entendimento segundo o qual o Ministério Público não possui legitimidade para apresentar ação civil pública com o objetivo de impugnar cobrança de tributos, exatamente por não existir relação de consumo entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte). Esta posição foi reafirmada recentemente pela Segunda Turma deste Tribunal, conforme se depreende do julgamento do AgRE 248.191, por unanimidade, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 25.10.02, assim ementado:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA: MINISTÉRIO PÚBLICO: TRIBUTOS: LEGITIMIDADE. Lei 7.347/85, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625/93, art. 25. C.F., artigos 127 e 129, III.

I. – O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança de tributos ou para pleitear a sua restituição. É que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) relação de consumo, nem seria possível identificar o direito do contribuinte com “interesses sociais e individuais indisponíveis”. (C.F., art. 127).

II – Precedentes do STF: RE 195.056-PR, Ministro Carlos Velloso, Plenário, 09.12.99; RE 213.631-MG, Ministro Ilmar Galvão, Plenário, 09.12.99, RTJ 173/288.

III. – RE conhecido e provido. Agravo não provido.”

Ora, se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, é certo que a sua interpretação do texto constitucional deve ser acompanhada pelos demais Tribunais, em decorrência do efeito definitivo absoluto outorgado à sua decisão. Não se pode, com a manutenção de decisões divergentes, diminuir a eficácia das decisões do Supremo Tribunal Federal.

Contrariamente, a manutenção de soluções divergentes sobre o mesmo tema, em instâncias inferiores, provocaria, além da desconsideração do próprio conteúdo da decisão desta Corte, última intérprete do texto constitucional, a fragilização da força normativa da Constituição.

A propósito, transcrevo, aqui, trecho da doutrina de Konrad Hesse, in A Força Normativa da Constituição, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 34, por mim traduzido, referente à interpretação constitucional:

“(…) O Direito Constitucional deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível, propiciando, assim, o desenvolvimento da dogmática e da interpretação constitucional. Portanto, compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung), que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa. Essa orientação torna imperiosa a assunção de uma visão crítica pelo Direito Constitucional, pois nada seria mais perigoso do que permitir o surgimento de ilusões sobre questões fundamentais para a vida do Estado.”

O entendimento de que há relação de consumo entre poder público e contribuintes revela-se afrontoso não só à força normativa da Constituição, mas também ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. Admitir a adoção deste entendimento significa fortalecer as decisões das instâncias ordinárias em detrimento das decisões do Supremo Tribunal Federal. Tal prática afigura-se tanto mais grave se se considerar que no nosso sistema geral de controle de constitucionalidade a voz do STF somente será ouvida após anos de tramitação das questões em duas instâncias.

Portanto, em face do entendimento firmado por este Tribunal no sentido de que não há relação de consumo entre o contribuinte de um tributo e o poder público, também mostra-se inviável a legitimação de associação, que tem como finalidade estatutariamente prevista promover a defesa do consumidor (fl. 43), para apresentar ação civil pública na defesa de contribuintes.

Ante o exposto, com a devida vênia do Relator, conheço e dou provimento ao agravo regimental para, desde logo, dar provimento ao recurso extraordinário e julgar procedente a ação rescisória, invertendo-se os ônus da sucumbência.

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