Dever do MP

Proibir MP de buscar provas é dar adeus à medalha condenatória

Autor

23 de agosto de 2004, 20h05

A Ordem dos Advogados dos Estados Unidos (American Bar Association) e a Ordem Internacional dos Advogados (International Bar Association), que juntas reúnem cerca de 500 mil advogados, juízes e Ordens de Advogados de praticamente todos os países, reunidas em Atlanta, na Geórgia, no começo de agosto, deixaram claro que o dever de investigar indícios de crimes é ínsito à função institucional do promotor. A regra vale para qualquer sistema jurídico que contenha a figura similar à promotor.

O entendimento foi dado pela unanimidade de seus mais expressivos jurisconsultos, com providências formais preliminares em andamento nos dois órgãos, e diretamente se dirigindo ao julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal, do Brasil.

Varia, de país a país, e evolui com o tempo, o relacionamento do promotor com a Polícia sobre a distribuição e a natureza da coleta da prova, sempre sob o império do interesse público de cada Nação para a justa aplicação da lei penal — e nunca sob o interesse do acusado e seus defensores.

Aqui nos Estados Unidos, por exemplo, esse relacionamento Promotoria-Polícia varia de estado para estado, e é prioritário à otimização da eficiência estatal ante as contínuas mudanças táticas, de envergadura e objetivos da criminalidade.

Com o passar do tempo também muda esse aparato estatal em ritmo que responda às exigências da segurança social. Desde o 11 de Setembro, há três anos, muitas redistribuições de funções ocorrem aqui e noutros países nesta área predominante da incolumidade nacional.

Chocou muito, aqui, a noção de que um Código de Processo Penal, escrito há bem mais de meio século no Brasil, seja hoje a base para a decisão atual sobre a constitucionalidade, ou não, de o promotor investigar no futuro, no país e – claro – também para outros países.

“O crime não tem evoluído no Brasil?”, indagaram-me várias vezes.

A qualidade do raciocínio judicial, numa cultura escrava do crime, fica corrompida a dano da sociedade indefesa. Isso sem contar o interesse dos que defendem os infratores, obviamente impedidos de advogar estratégia estatal, ainda que óbvia, contrária às causas a que profissionalmente estão comprometidos.

Será só coincidência que a convicção pessoal desses nobres advogados, limitada por essa compatibilidade ética, seja a mesma dos seletos clientes? Será que ela coincide com a convicção de milhões de brasileiros que se aterrorizam ante as violências dos crimes e escândalos igualmente impunes?

Há, ainda, invencível obstáculo à proibição de o promotor investigar: a própria gênese mental do fiscal da lei é, por obrigação, duvidar, em benefício da sociedade, da licitude do ato.

Já aí nesse exame prévio haverá irremediável conflito subjetivo com a proibição de investigar, eis que o disparo psicológico de desconfiar é inseparável do impulso apurador fático da própria dúvida.

Só essa irremovível contradição íntima torna relativa, e degradada, a censura à investigação pelo promotor, donde a incompatibilidade da função com a esquisita regra que lhe pretende impor o Supremo. O limite será aleatório, arbitrariamente estabelecido, ao sabor das incertezas afora.

Fato e direito, tal energia e matéria, se fundem nos extremos, como a tipificação, província, se não lhe tirarem também, do promotor. Poderá ele então investigar direito indissoluvelmente integrado ao fato, ou ficará a sociedade sem a denúncia por causa de mera ausência de descoberta vedada ainda que vital à aplicação da lei?

Se um promotor paraguaio ou suíço remete, ou pede, investigação ao colega brasileiro, poderá ele enviar a colaboração ao estrangeiro?

Collor pedirá a Presidência de volta porque não foi a polícia que apurou aqui na Flórida a falsidade documental do avião usado por PC? Lalau exigirá danos morais e o apartamento de Miami de volta, pois foi investigado por um promotor?

Há quase 30, a Secção Mundial dos Promotores de Justiça, subordinada à Associação Mundial dos Advogados, da World Peace Through Law Center, adotou por unanimidade em Manila, Filipinas, o cânone universal de que “Todo Promotor deve ser livre de quaisquer interferências e toda acusação criminal deve ser justa, baseada em prova e completa”.

Em Madri, na Espanha, em 1979, a WPTLC recomendou a criação de uma rede internacional, como a InterpoI, para que promotores de Justiça de todo o mundo trocassem informações e intercambiassem provas criminais, tão compartilhadas como a criminalidde internacional, para substituírem as medievais cartas rogatórias, até hoje ainda capengando pelos escaninhos de litígios cíveis.

A internet atropelou a modéstia daquelas aspirações e dói ver o Excelso Supremo querer deletar, ambiciosamente, a internet também como instrumento de investigação global, grátis e instantâneo, supressão apenas para — e a ironia continua a assolar o país — os próprios promotores.

Novidade nenhuma nisso. Perto da Ágora, onde nasceu a democracia, os gregos julgavam com investigações do acusador. Do Olimpo a tocha da Justiça chegou a Roma, iluminando a civilização com o due process da Magna Carta, em Runnymeade, onde o xerife coletava as provas das florestas para o júri julgar.

O país pode dar adeus à medalha condenatória da lei se seu promotor perder a milenar maratona em busca das provas — para o pódio da Lei — que amadoramente competem contra o crime profissional. Um pedaço de nossa democracia pode agora morrer no Supremo.

Os Eminentes Ministros respondem ao futuro do país como raramente o Excelso tem respondido, em magnitude de conseqüências, à História.

Os Ministros — plagiando Rui — julgam, e as próximas gerações, com a luneta do Direito Comparado, os julgarão se, no firmamento jurídico do planeta, nossa decadente estrela judicial apagar-se ainda mais no fundo de singular buraco escuro.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!