Estado Democrático

Juízes têm direito de errar em suas interpretações

Autor

  • Marcos Neves Fava

    é juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região mestre em direito do trabalho pela USP diretor de Direitos e Prerrogativas da Anamatra — Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — para o biênio 2005-07.

17 de agosto de 2004, 16h28

Das garantias constitucionais atribuídas ao magistrado para desempenho de sua imprescindível função no Estado Democrático de Direito, a de dizer a Justiça, atribuindo a cada um o que é seu, não se retira nenhum proveito, senão o de assegurar a independência do juiz.

Irredutíveis, são, por isto, seus vencimentos, protegidos de desmandos administrativos do Judiciário ou do Executivo. Vitalício é o magistrado, para não temer represálias que o retirem da atividade judicante, por interesses escusos. Por fim, a inamovibilidade está a assegurar ao magistrado o trabalho corajoso de enfrentar quaisquer forças que ofusquem sua autonomia.

Não é sempre, no entanto, que o caráter constitucional — e de cláusula pétrea! — de tais garantias presta-se à efetiva proteção ao trabalho independente do magistrado. Em tempos recentes, na 2ª Região, tivemos oportunidade de ver um ataque frontal ao que de mais precioso tem o magistrado, que é a liberdade de aplicar o direito ao caso concreto, consoante as leis da República e sua própria consciência.

Refiro-me à interpretação que o juiz José Eduardo Olivé Malhadas deu à Lei 9.957/2000, determinando, na ocasião, que todos os processos submetidos ao rito sumaríssimo, que aguardavam julgamento, fossem retirados de pauta, dando-se ao autor prazo para emendar a inicial, de acordo com as exigências da nova lei. Aos que atenderam à ordem judicial, prontamente, como é do feitio trabalhador do referido juiz, os processos foram julgados. Quanto aos omissos, cumpriu-se a ordem dada nas decisões, extinguindo-se tais processos sem julgamento do mérito.

Não é propósito destas linhas, discutir a correção do decidido pelo ilustre magistrado.

Ao contrário, partamos do princípio de que ele errou. Que impossível e descabida fosse sua interpretação do novel dispositivo legal. Que tenha praticado uma verdadeira heresia jurídica, ao determinar a adaptação dos feitos já de instrução encerrada ao novo rito. Poderia um magistrado errar em sua interpretação?

A resposta que se impõe é só positiva. Tem, aliás, assegurado o direito de assim proceder, porque, como dito, as garantias constitucionais servem ao exercício do poder-dever de decidir, apenas conforme às leis da República e à consciência. O sistema judiciário prevê a hipótese do erro, corrigível através do recurso próprio. Diga-se, desde logo, que, mesmo em sede de processo do trabalho, não há apenas uma oportunidade de revisão.

O problema segue, no entanto, porque da decisão de arquivamento dos feitos não emendados, não houve recurso aforado pelas partes. As decisões transitaram em julgado e os feitos foram arquivados.

Até aqui, nada de surpreendente. O juiz decide, a parte se contenta com a prestação jurisdicional e o processo dormita em sono tranqüilo, aquentado pela coberta do trânsito em julgado, neste caso, formal.

Surpreendentemente — e em evidente contradição à sua história institucional — a Ordem dos Advogados do Brasil (seção Cubatão) aforou um Mandado de Segurança Coletivo, objetivando corrigir o erro de interpretação do magistrado. Aberração jurídica plena, porque, como é cediço, o MS Coletivo protege direito coletivo da categoria dos representados, in casu, a dos advogados. Não consta que nenhum advogado tenha visto sua própria reclamatória arquivada pela decisão — tomemo-la assim — “equivocada” do magistrado. Interesse de classe, não havia, no sentido jurídico da expressão.

A pretensão foi agasalhada pelo Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, através de sua Seção de Dissídios Coletivos e Individuais de Competência Originária, e o relator, um classista, concedeu liminar, depois confirmada por decisão de fundo, por maioria, vencido apenas o magistrado Gualdo Amaury Formica. Segundo a certidão de julgamento, a decisão teve a seguinte conclusão:

“(…) conceder parcialmente a segurança para declarar a nulidade de todas as decisões proferidas pelo MM. Juiz da 2ª Vara do Trabalho de Cubatão, que, nas ações ajuizadas antes de 13 de março de 2000, cominou a pena de extinção do feito pela inobservância. Da determinação de emenda da inicial para apresentação de pedidos líquidos, bem como para determinar que a autoridade impetrada abstenha-se de proferir igual decisão em casos idênticos que venha a apreciar”.

A decisão, a um tempo, provoca várias distorções: dá legitimidade ativa ao representante para proteção de direitos não relativos à categoria dos representados; atribui-se caráter genérico, anulando “todas as decisões” proferidas em desconformidade com a interpretação da Seção; e outorga natureza vinculante ao acórdão.

Tão evidente quanto a inexistência de interesse coletivo a ser tutelado, mostra-se a impropriedade de uma decisão judicial que proíba o juiz de decidir desta ou daquela maneira, com caráter abstrato (em feitos futuros) e vinculante.

Discute-se, com fervor, a impertinência violenta da pretendida “súmula vinculante”, estrela da reforma do judiciário em curso no congresso nacional, mas o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, naquela decisão, antecipou o instituto, criando a decisão em Mandado de Segurança Vinculante.

A Associação dos Magistrados do Trabalho da Segunda Região – Amatra II – interpôs, da decisão, recurso ordinário, julgado em 20 de março de 2003, pelo Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, obtendo a extinção do processo sem julgamento do mérito. Tal decisão teve ementa que assim concluía: Ilegitimidade ativa da impetrante. Manifesta inadmissibilidade do mandado de segurança coletivo que defende direito e que não pertence à classe dos advogado, mas às partes litigantes. Conquanto o artigo 54, II do estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil autorize a OAB a “representar em juízo ou fora dele os interesse coletivos ou individuais dos advogados”, não se vislumbra, na presente hipótese, interesse diverso do das próprias partes envolvidas nos litígios. Os advogados são atingidos apenas de forma reflexa, mas mesmo assim só os que tomam parte diretamente nas pendências como representantes das partes em Juízo. Assim, é inequívoca a ilegitimidade da OAB — 121ª Subseção de Cubatão-SP, para defender, em mandado de segurança coletivo, direito que não “de seus membros e associados”, como exige a Constituição Federal, e, sim, direito das partes representadas pelos advogados. Recurso ordinário provido para extinguir o feito sem julgamento do mérito”. E do voto condutor extraem-se as seguintes ponderações acerca da legitimidade da Amatra:

“(a decisão no MSC) Impôs-lhe (ao impetrado) a obrigação de julgar os demais processo de acordo com interpretação legal pré-fixada, em flagrante invasão de sua competência jurisdicional e manifesta ofensa ao livre exercício de sua judicatura, garantias asseguradas pela lei e pela Constituição Federal, o que caracteriza a legitimidade da Amatra em defender os interesses do impetrado por meio da entidade de classe”.

Acerca da vedação de se utilizar o mandado de segurança para obtenção de “sentença genérica”, assentou-se, recentemente, a jurisprudência da Suprema Corte Trabalhista, pela OJ 144 da Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho II, que tem a seguinte dicção:

“O mandado de segurança não se presta à obtenção de uma sentença genérica, aplicável a eventos futuros, cuja ocorrência constitui uma incógnita”.

Como o magistrado de primeiro grau enxergou impossível o acatamento de decisão do tribunal, ante sua obrigação de cumprir apenas as Leis da República, mormente a Constituição Federal, não acatou a ordem da Corte e, por isto, foi representado 23 vezes. Tais representações encontram-se, ainda hoje, aguardando decisão do órgão especial do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo.

O episódio traz diversas lições.

De início, o elevado grau de importância da independência do juiz, que não deve ser tomada da forma mais ampla possível, desde o poder administrativo da Vara, passando pelas decisões de mérito, até culminar com o acolhimento ou não de ordem inconstitucional. Para exercer esse discernimento, é mister, no entanto, que o juiz tenha claro em sua convicção, que não é funcionário subordinado a qualquer outro órgão ou Poder, senão, como já repetido, à Constituição Federal, às leis da República e à sua consciência. Julgar exige coragem. Julgar com liberdade e autonomia, mais do que isto, exige convicção de que, sem coragem, não há Justiça.

Não há juiz que dobre coluna a quem ou ao que quer que seja. Disciplina administrativa não é tema que possa abranger ou ofuscar o direito fundamental do magistrado. Ensina o constitucionalista da PUC, o hoje deputado federal Michel Temer, que “O Juiz, no seu juízo, não tem amigos. Nem inimigos. Nem superiores, nem subordinados. Tem, isso sim, de buscar o justo, aplicando a norma. O que se almeja, na decisão judicial, é a satisfação de interesses individuais lesados. Pelo Estado ou por outro indivíduo”.(1)

Depois, a pronta reação da Amatra II, no caso, cuidou do assunto como de interesse coletivo dos magistrados, preparando-se para a defesa com fundamento no artigo 2º, inciso III, que tem a seguinte dicção:

“São finalidades da Amatra: (…)III – defender as prerrogativas, direitos e interesses da classe e de seus associados individualmente, pugnando pela independência, dignidade e prestígio do Poder Judiciário, nas suas relações com os poderes públicos ou com terceiros;”

Deixa-nos, o episódio, lições preciosas. Deixa-nos, também, exemplos de vários matizes e de opostas naturezas. Cumpre-nos, comemorando o trânsito em julgado (2) da decisão do Tribunal Superior do Trabalho, destacar uma dessas lições, para concluir que a independência do Juiz identifica-se com a medula do sistema Judiciário.

Saúde, Malhadas! Saúde, magistrados independentes!

Notas de rodapé

(1) Michel Temmer, in Constituição e Política São Paulo: Malheiros, 1999, página 77.

(2) A decisão do TST foi objeto de Recurso Extraordinário, não conhecido por deserção.

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    é juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região, mestre em direito do trabalho pela USP, diretor de Direitos e Prerrogativas da Anamatra — Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — para o biênio 2005-07.

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