Carta magna

‘Investigação criminal pelo Ministério Público é inconstitucional.’

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

16 de agosto de 2004, 14h47

Qual o preço dos direitos fundamentais?

Encontra-se em discussão na sociedade se o Ministério Público possui, ou não, poderes investigatórios. A discussão é oportuna e de suma relevância, porque o que está na verdade em risco é a questão de se emprestar efetividade ao cumprimento e observância dos Direitos e Garantias Fundamentais do cidadão.

Afirma-se de forma equivocada que o combate à corrupção corre séria ameaça em razão do julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal, se mantido o entendimento que o Ministério Público não possui poderes investigatórios penais, pois importaria em retirada ou atenuação das prerrogativas da Instituição.

O Constituinte de 1988 realizou grandes alterações no nosso sistema, estabelecendo princípios, mudando atribuições, redefinindo funções, definindo os poderes, as competências, procurando construir um novo país, sob as luzes do Estado Democrático de Direito. Uma das inovações diz respeito ao papel do Ministério Público na nova ordem que se instalou. Outra, de grande magnitude, refere-se aos Direitos e Garantias Fundamentais, fruto do trabalho de milhares de cidadãos que sempre estiveram à frente da luta pelos direitos humanos. Tão forte e necessário que parcela destes direitos foram relacionados no artigo 5º da Constituição Federal, conhecida como Constituição cidadã.

Em obediência aos princípios garantidores estabelecidos na Constituição é impossível acolher a inovação pretendida, ressaltando que a análise não pode fugir da nossa Constituição e usar como parâmetro experiências européias ou de outros países, que não possuem a mesma estrutura sistêmica de Justiça.

Este tema não é novo no Supremo Tribunal Federal. No ano passado o tema veio à tona novamente e o Presidente da Corte, ministro Nelson Jobim, ao relatar um processo que teve decisão unânime, fez registrar que não havia novidade sobre a matéria e que o Ministério Público não tinha legitimidade para realizar diretamente as investigações. Destacou que na Assembléia Constituinte a questão foi apresentada e o Constituinte rejeitou as emendas 945, 424, 1.025, 2.905, 20.524, 24.266 e 30.513, que, de um modo geral, davam ao Ministério Público a supervisão, a avocação da investigação criminal. Posteriormente, alguns deputados tentaram rechaçar o sistema adotado e apresentaram propostas de emenda constitucional, em 1995 e 1997. Em 1999, um senador também apresentou proposta de alteração constitucional, restando claro que a atual ordem constitucional não deu poderes investigatórios criminais ao Ministério Público.

A questão deve ser analisada sob a ótica constitucional dos direitos e garantias fundamentais da qual também faz parte a repartição de atribuições do sistema de administração de justiça, que envolve Poder Judiciário, Ministério Público, Polícias, Defensoria Pública, Advogados e Cidadãos, cada qual com suas atribuições, sem possibilidade de invadir os espaços delineados pela Constituição e ao mesmo tempo criando formas de controle muito específicas.

A Constituição Federal estabelece no artigo 129 as nove funções institucionais do Ministério Público. Determina que a ele compete a propositura da ação penal e da ação civil pública, a primeira de forma privativa. Acrescenta que lhe cabe a promoção do inquérito civil, mas não do inquérito criminal; ao revés, impôs restrição ao afirmar no inciso VIII que em matéria penal compete ao Ministério Público requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial.

Ainda, a Constituição, relaciona os órgãos pelos quais a segurança pública deve ser realizada. Expressamente atribui à polícia civil e federal a apuração das infrações penais. Há casos de deslocamento, mas somente mediante previsão constitucional, em caráter excepcional, de forma expressa, como nos casos das comissões parlamentares de inquérito e dos delitos praticados por magistrados.

O sistema de justiça penal adotado em nossa Constituição determina que cabe à polícia investigar, ao Ministério Público propor a ação penal, aos Advogados e Defensores Públicos realizar a orientação jurídica e a defesa dos investigados e denunciados e ao Judiciário garantir os direitos de todos os cidadãos e julgar. O imprescindível equilíbrio almejado pelo Constituinte é a marca deste sistema e qualquer alteração nas funções modificará o peso dos pratos da balança.

Nada mais falso afirmar que o Ministério Público não terá instrumentos para combater a corrupção, pois ele atua em todos os inquéritos, requisita as diligências que entende necessárias para apuração dos fatos, pode propor medidas cautelares judiciais penais. Deve exercer o controle externo da polícia, como ordena a Constituição e fazer uso de ação de natureza civil para atuação eficiente contra a corrupção. Logo, instrumentos estão disponíveis na nossa ordem normativa, basta usá-los.

O STF há muito tempo aponta que falta legitimação ao Ministério Público, que incompreensivelmente continua a insistir nesta possibilidade, colocando em risco, a credibilidade que ainda resta em algumas instituições. Sabemos que a ação penal proposta pelo Ministério Público com este suporte investigatório está fadada ao insucesso com conseqüências danosas no combate à corrupção.

A Constituição Federal estabeleceu a garantia fundamental do devido processo legal e as determinações das funções e poderes integram o núcleo desta garantia. A finalidade do processo penal é ser instrumento garantidor, pois delimita a intervenção do Estado em relação ao estatuto da liberdade dos homens. O argumento de cunho utilitarista no sentido de que o interesse do Estado deve sobrepor ao interesse individual deve ser vigorosamente rejeitado. O interesse social reside na preservação da idéia de direitos. Como ensina Ronald Dworkin (1) somente pode haver conflito de direitos individuais contra direitos individuais e quando se usa a expressão de direitos no seu sentido “forte” está a se criar um casulo no qual o Estado, em hipótese alguma pode penetrar. A garantia é uma limitação do Estado para proteção do cidadão, cria-se um casulo impenetrável, as garantias fundamentais, que têm por base os postulados iluministas, que não podem ser soterrados.

Há, evidentemente, um jogo de interesses atrás de cada processo em curso, mas não se pode admitir o descumprimento da ordem constitucional. A sociedade não pode, sob qualquer pretexto, arcar com o ônus de perder direitos fundamentais, pois este ato nada mais é que o rompimento do Estado Democrático de Direito sem o uso de armas. Não há preço para garantia de um direito fundamental e nenhum processo pode justificá-lo, seja ele qual for.

O Constituinte estabelece capítulo próprio para tratar das Funções Essenciais à Justiça e no rol inclui o Ministério Público, juntamente com a Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública. Deu amplitude substancial para a primeira ao incumbir-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis e ao dar autonomia administrativa e funcional garantindo a unidade, indivisibilidade e independência funcional.

A sociedade almeja que o Ministério Público esteja na luta contra a corrupção, que retira saúde, educação, vida digna dos brasileiros. Porém espera-se que faça com todas as armas que lhe foram dadas pela Constituição Federal, pois trilhando por outras vias, de forma indireta, fará o papel de protetor dos corruptores.

Nota de rodapé

1) “Os supostos ganhos resultantes do respeito à lei são meros ganhos utilitaristas. Não haveria sentido algum em alardear nosso respeito pelos direitos individuais, a menos que isso envolvesse algum sacrifício. E, este sacrifício deve ser o de renunciar a quaisquer benefícios marginais que nosso país possa vir a obter, caso ignore esses direitos, quando eles se mostrarem inconvenientes. Assim, o benefício geral não pode ser uma boa razão para a restrição dos direitos, mesmo quando o benefício em questão for um elevado respeito pela lei” (Ronald Dworkin, Levando os Direitos a Sério, Martins Fontes, 2002/296).

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