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Interrupção de gravidez de anencefálico não é aborto, defende OAB.

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16 de agosto de 2004, 14h54

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil decidiu, nesta segunda-feira (16/8), por maioria de votos, considerar que a interrupção da gravidez de feto anencefálico (sem cérebro) não é prática abortiva.

A pauta da reunião foi em cima da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, que entendeu pelo direito da mulher de decidir pela continuidade da gravidez, no início de julho. A matéria foi examinada nesta segunda pelos 81 advogados que compõem o Conselho, na sede da OAB.

Na OAB, a decisão embasada pelo voto do relator da matéria na entidade, o conselheiro federal pela Bahia, Arx Tourinho. Segundo ele, só pode existir aborto se houver possibilidade de vida do feto. “Não é aceitável que se saiba, previamente, que o feto não possui qualquer condição de sobrevida e ainda assim se tenha como aborto a interrupção da gravidez”, disse. A sessão foi conduzida pelo presidente nacional da Ordem, Roberto Busato.

A liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio determinou a paralisação de todos os processos que discutem a possibilidade da gestante fazer ou não pela operação terapêutica e que ainda não tenham transitado em julgado.

A decisão foi concedida nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 e será submetida em breve ao Plenário do STF. Na ação, a Conselho Nacional dos Trabalhadores na Saúde sustenta que a antecipação desses partos não caracteriza o crime de aborto tipificado no Código Penal.

Leia a íntegra do voto de Tourinho

Voto

1. Direito da mulher gestante ao cometimento da interrupção de gravidez de feto anencefálico.

2. Polêmica causada por aqueles que, desatentos aos princípios jurídico-constitucionais, insistem na concepção medieval de que a mulher deve fingir tratar-se de uma gravidez normal.

3. Proclamação pelo Conselho Federal da OAB de que a gestante, na condição delineada, tem direito de interromper a gravidez, valendo-se de seu direito à saúde e em atenção aos princípios constitucionais da liberdade e da dignidade da pessoa humana.

1. Designado pela Presidência deste Col. Conselho Federal da OAB, emito voto sobre matéria, que envolve o direito da gestante em interromper a gravidez, quando se trata de feto anencefálico.

2. O fato se tornou extremamente polêmico, a partir do momento em que, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, sendo autor o Conselho Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS, patrocinado pelo culto constitucionalista e advogado Luis Roberto Barroso, o Ministro do STF Marco Aurélio concedeu liminar, reconhecendo “o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto”. As disceptações se agigantam, porque os que se colocam em posição antagônica ao decisum judicial entendem que se está a permitir o aborto, em desacordo com a lei.

3. De logo se afirme que dentre as finalidades da Ordem dos Advogados do Brasil está a de defender “a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social”, como diz o artigo 44, I, da Lei 8.906/94. No particular, a matéria diz muito de perto com esses aspectos. Daí a pertinência de um pronunciamento deste egrégio Conselho Federal, buscando, assim, cumprimento de uma das finalidades da OAB.

4. A anencefalia, segundo conceituação de William Bell, é “malformação letal na qual a abóbada do crânio é ausente e o crânio exposto é amorfo” (Doenças do recém-nascido, obra coletiva, Interamericana, 4ª ed., 1979, p. 627).

5. De acordo com Keith Moore, “Embora o termo anencefalia signifique ausência do encéfalo, há sempre algum tecido encefálico”, porém, sem maior importância (Embriologia clínica, Interamericana, 2ª ed., p. 354).

6. O encéfalo é “parte do sistema nervoso central situada dentro do crânio neural”, formado pelo cérebro, cerebelo e tronco encefálico, na dicção de Angelo Machado, in Neuroanatomia funcional, Livraria Atheneu, 1979, p. 11).

7. Diz, com precisão, o cientista William Bell, a respeito da anencefalia, que “Entre 75 e 80 por cento desses recém-nascidos são natimortos e os restantes sucumbem dentro de horas ou poucos dias após o nascimento” ( op. cit., p. 627). A literatura médica, no mundo, tem essa constatação.

8. Essa é, pois, a realidade da anencefalia, que pode ser detectada, quando o feto ainda se acha no ventre materno. Mas, em 1940, quando editado o Código Penal brasileiro, não havia tecnologia suficiente para um diagnóstico de certeza, a respeito da malformação. Não é o que acontece, na atualidade.

9. Queremos afirmar, neste instante, que a discussão pode e deve ser realizada, pelo ângulo estritamente jurídico. Não podemos trazer para um tema, que possui consistência técnica, princípios religiosos ou fundamentos jusnaturalistas, que brigam com a realidade e descambam para a irracionalidade. É de se acentuar que, em 1990, o Conselho Federal de Medicina, diante do avanço da medicina fetal, propugnou por uma nova postura da classe médica, a fim de embasar uma “reordenação jurídica”, o que ensejou proposta de reformulação do Código Penal, segundo informam Marcos Frigério et alii, Aspectos bioéticos e jurídicos do abortamento seletivo no Brasil, trabalho desenvolvido no Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana, em São Paulo.

10. Em primeiro lugar, é de se perguntar: a interrupção da gravidez de um feto anencefálico pode ser considerada prática abortiva? A resposta, a nosso sentir, é negativa.

11. Nosso Código Penal não conceituou aborto. Menciona-o, tipificando condutas, porém, sem afirmar o que, efetivamente, seja. Isso foi deixado para a doutrina e a jurisprudência. E, por esse ângulo, constata-se que só pode haver aborto, se há possibilidade de vida e de sobrevida. Não é aceitável que se saiba, previamente, que o feto não possui qualquer condição de sobrevida e, ainda assim, se tenha como aborto a interrupção da gravidez, que pressupõe a existência de outro ser que tenha possibilidade de vida própria. O feto anencefálico é uma patologia.

12. A asserção do clássico Nélson Hungria, a respeito da gravidez extra-uterina e da gravidez molar, pode, perfeitamente, ser aplicada à hipótese do feto anencefálico:

“O feto expulso (para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto” (Comentários ao código penal, Forense, 1958, vol. V, p. 207/208).

13. Do ponto de vista médico, o feto anencefálico é uma patologia e como patologia deve ser tratada. Como diz a professora Débora Diniz, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília, “A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum “a ausência de cérebro”, torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível humano. Ou, como prefere Jacquard, aqueles não aptos a compartilharem da “humanitude”, a cultura dos seres humanos.” (Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais).

14. A Justiça não pode olvidar essa realidade. Não se trata de interrupção de gravidez em razão de eugenia, seletividade ou de sentimentalismo, mas, sim, de circunstância indiscutível de que o feto não terá sobrevida, porque o feto é subumano ou inumano. Não se deve olvidar das palavras de Giovanni Berlinguer “O aborto é o desfecho trágico de um conflito em que estão envolvidos de um lado um ser em formação, do outro as aspirações e necessidades de uma mulher” (Bioética cotidiana, Editora UNB, tradução de Lavínia Porciúncula, 2004, p. 47). Ora, se não há, em realidade, ser em formação, de um lado, e aspirações e necessidades de uma mulher, de outro lado, não há desfecho trágico, não há, portanto, aborto. Expele-se um ser malformado. Expele-se uma patologia.

15. Mas, admita-se, ad argumentandum tantum, que se cuida da figura do aborto.

16. Mais uma vez, a solução se acha em nossa ordem jurídica, precisamente em se respeitarem direitos e princípios constitucionais, que são caros a cada um de nós e a toda a sociedade: a) saúde; b) liberdade; c) dignidade da pessoa humana. Direitos e princípios detectados pelo professor Luís Barroso, em sua petição inicial.

17. Com efeito, o artigo 196, da Carta Magna, reza:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Se a mulher, em gestação de um feto anencefálico, pode correr risco de vida, porque, segundo a literatura médica, cerca de cinqüenta por cento desses fetos têm morte intra-uterina, evidente que o direito à saúde da mulher deve prevalecer. Não só. Registram hospitais e clínicas médicas o profundo transtorno psicológico de que padece a mulher, quando aguarda o parto de um ser subumano, sem cérebro, com forma de gente, mas, sem a essência do humano. É evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde.

18. Violam-se, também, dois princípios fundamentais, que dizem respeito à legalidade e à dignidade da pessoa humana (artigos 1.º, III, e 5.º, da Lei Máxima).

19. A ordem jurídica brasileira não impõe a qualquer gestante o dever de manter em seu ventre um feto anencefálico, porque esse feto não tem potencialidade de vida, porque, rigorosamente, lhe falta o encéfalo.

20. Também, haverá desrespeito ao princípio de dignidade da pessoa humana a imposição à gestante de ter, em seu útero, um feto, durante o tempo normal exigido para um parto normal!

21. O princípio da dignidade da pessoa humana se incorporou à maioria dos textos constitucionais, em todo o mundo, de forma expressa. Leiam-se os textos constitucionais da Alemanha de 1949, de Portugal de 1976, da Croácia de 1990, da Bulgária de 1991, da Estônia de 1992 e tantos outros, mas, detenhamo-nos na Constituição portuguesa de 1976, matriz da brasileira, que expressa em seu artigo 1.º: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

22. O professor Pietro Alarcón teve a oportunidade de afirmar:

“De outro lado, a Carta Magna de 1988 abriga a dignidade, e nesse sentido, a dignidade é bem jurídico a ser guarnecido pelo sistema. Por outra parte, é eixo de interpretação, atravessando o sentido de constitucionalidade que deve constar em qualquer sentença de juízes e tribunais pátrios. Não exageramos se dizemos, por esses motivos, que a dignidade da pessoa humana foi erigida a padrão de referência de todo o arcabouço jurídico brasileiro” (Patrimônio genético humano e sua proteção na constituição federal de 1988, Editora Método, São Paulo, 2004, p. 254).

23. Efetivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana é básico na interpretação da ordem normativa e serve de luzeiro para desvendar caminhos, que alguns não vêem ou teimam em não vê-los, sob o enfoque de concepções que, contraditoriamente, negam o mencionado princípio. À gestante de um feto anencefálico basta que se lhe conceda a eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. E, para assim agir, basta que se lhe reconheça o direito de interrupção terapêutica de uma gravidez, marcada pela patologia, que constrange e perturba a ciência e os homens.

24. A ação e a liminar, aqui referidas, em verdade, estão a proteger mulheres desprovidas de recursos financeiros, mulheres pobres, que necessitam ir a juízo, pleiteando alvará autorizador, porque vão utilizar-se dos serviços públicos de saúde. Aquelas que têm condições financeiras sabem qual clínica ou qual médico devem procurar, para a prática interruptiva da gravidez. Não seja a sociedade hipócrita, nem sejam os opositores da liminar ingênuos…

Em conclusão, propomos que esta Col. Casa do advogado, mas, também, da liberdade e do respeito à dignidade da pessoa humana, se manifeste pelo direito de a gestante interromper, sempre que assim desejar, uma gravidez, onde em gestação se ache um feto anencefálico, porque o Direito não é, nem pode, ser estático, não é, nem pode, ser contemplativo de uma realidade que passou, ignorando os avanços da ciência.

Brasília, Sala de Sessões do Conselho Federal da OAB, 16 de agosto de 2004.

Arx Tourinho, relator

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