Respeito à Constituição

O Ministério Público não deve conduzir investigações criminais

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14 de agosto de 2004, 17h31

Respondo não porque não sou a Assembléia Constituinte. É que, em matéria regulada pela Constituição, perguntas do tipo “isso é bom para o país?”, “é melhor que seja assim?”, “não seria um mal menor?”, “isso deve ser feito?” não podem ser respondidas de acordo com a opinião pessoal de quem é indagado, mas sim nos termos postos pela Lei Maior. Esta, quando inobservada ou atropelada por boas intenções (das quais não é o reino dos céus que está cheio…), leva a sociedade ao caos.

Perguntas como essas são feitas com freqüência, especialmente em momentos de crise ou diante de problemas graves e sem solução aparente. Há 15 anos, um presidente que se preparava para assumir reuniu uma plêiade de economistas bem-intencionados e indagou: “Meu governo deve confiscar a poupança do público?”. A economia, na ocasião, era um descalabro; a inflação tão alta que as coisas dobravam de preço em pouco mais de um mês. Pois bem, os economistas bem-intencionados, considerando a gravidade da crise e esquecendo que o Brasil tinha Constituição, responderam em uníssono: “Sim!”. O resto da história todos conhecemos.

A partir daí era de esperar que os brasileiros tivessem percebido que o tamanho da crise não é desculpa para que se rasgue a Constituição, pois, se assim for, teremos crise ainda maior.

Por isso, com todo o respeito às boas intenções dos que acham que realmente seria bom para o país que o Ministério Público conduzisse investigações, acho que a pergunta correta a fazer, para que não fiquemos restritos aos palpites dos curiosos, é “a Constituição permite que o Ministério Público conduza investigações?”.

Essa, e somente essa, é a questão que o Supremo Tribunal Federal deverá responder, pois não cabe a seus ministros dizer o que lhes parece melhor para o país, mas apenas estabelecer o que a Constituição permite ou não. Nesse sentido é claramente abusiva a pressão que se tenta fazer sobre o órgão máximo do Judiciário (até com o uso indevido de recursos públicos), à base de que as investigações do MP têm contribuído para o esclarecimento de crimes e de que seria bom que elas continuassem. O Supremo, repita-se, não vai julgar se as investigações são boas ou ruins, se têm ou não contribuído para a ordem pública, mas somente se são ou não admitidas pela Constituição.

E a resposta, conforme o entendimento já antecipado por cinco dos 11 ministros, é negativa.

A Constituição, tão justamente criticada por seu excesso de minúcias, trata da Polícia Judiciária como a instituição competente para a investigação criminal. Ainda que carregada de viés incriminatório, a verdade é que a polícia não é o mesmo órgão acusador, o que a deixa mais distante do interesse de uma das partes e, pelo menos em termos ideais, mais próxima da verdade. Suas investigações são feitas num procedimento chamado inquérito policial, regulamentado por uma lei, que é o Código do Processo Penal.

A regulamentação do inquérito, que exige que suas peças fiquem nos autos, sejam elas favoráveis ao interesse acusatório ou defensivo, dá condições para que seja avaliada a legalidade da atuação policial -cujo controle externo é atribuição constitucional do MP- e garantidos os direitos individuais. Já as investigações dos promotores e procuradores se dão à margem de qualquer normatização, sem regra nenhuma, dando espaço ao arbítrio e à sonegação das provas que não convierem à acusação.

A ordem constitucional vigente, contudo, reserva ampla gama de atuação ao MP nas investigações criminais, tão ampla que fica difícil entender a verdadeira razão de tanto empenho para as conduzir diretamente. O MP pode requisitar (leia-se “determinar”) a abertura de inquérito policial; pode indicar as diligências que quer ver realizadas; pode acompanhar, com a presença de seu representante, a realização dessas diligências; exerce o controle externo de toda a atividade policial. O que lhe falta?

Com tão vasta competência, bem se vê que, se a vontade do MP é investigar, ferramentas não lhe faltam, desde que o faça dentro da legalidade. Porém, se o que lhe interessa é exibir poder e exercê-lo arbitrariamente, à margem de qualquer regramento, como vem ocorrendo, é preciso mais.

E aí vem o argumento de que “quem pode o mais pode o menos”, ou seja, se pode o MP acusar em juízo, pode também investigar. Fosse assim e o juiz, por poder o mais, que é julgar, poderia também acusar, e acharíamos muito normal alguém ser julgado por seu próprio acusador, como nos tempos da Inquisição, aquela que se dizia santa. Lá um mesmo clérigo investigava, torturava, acusava e julgava -e ninguém diga que, para os objetivos visados, deixaram de ser excelentes os resultados…

Se queremos viver num Estado democrático de Direito sob o império da Constituição, o Ministério Público não deve conduzir investigações criminais.

Artigo transcrito da Seção Tendências / Debates da Folha de S.Paulo, com autorização do autor.

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