Especialização em jogo

Resolução institui foro privilegiado do colarinho branco

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9 de agosto de 2004, 15h56

“Excelência, rogo, candentemente, que V. Exa. não se reporte às portarias, atos próprios dos porteiros, mas sim à Constituição, Lei Fundamental da Nação !!!” (O imortal Professor Geral Ataliba, aparteando julgador que recalcitrava em fundamentar seu voto em atos normativos infralegais).

Invocando a Constituição, Lei Fundamental da Nação, peço vênia à catilinária contra a Resolução nº 20/03 do Egrégio TRF/4ª, ato que referendou a Resolução nº 314 do Conselho da Justiça Federal, determinando que as persecuções relativas a crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro sejam declinadas dos Juízos do interior às varas especializadas das capitais, instituindo espécie de foro privilegiado do colarinho branco.

De plano, diga-se que não se trata de especialização de vara. Sim de deslocamento, desaforamento, da competência dos foros do interior às capitais.

Quando se reúnem processos de foros distintos (Circunscrição, Subseção, Comarca, etc.), divisões judiciárias estanques, portanto, a especialização ou não é um minus. Fundamental, o majus, é dizer que se afetou a competência de todos eles a uma só, in casu, a capital.

Especialização, portanto, é dentro do próprio foro. Jamais avocação dos demais foros. Exceto quando excepcionado pela Carta Magna, a exemplo dos conflitos fundiários(art. 126 da CRFB) e, mesmo na hipótese, através de lei, nunca de resolução.

No Estado de SC, v.g., sequer especialização houve. À única vara criminal da capital, com jurisdição sobre todos os delitos, desaforou-se os processos do interior. Nos Estado do RS e PR, também manteve-se competências diversas.

Truísmo dizer-se que interpreta-se a Lei segundo a Constituição, jamais essa subordinada àquela, sob pena de absoluto vilipêndio à Carta Política, vértice da ordem jurídica.

A “Lex Fundamentalis” é exaustivamente repetitiva quanto à estrita legalidade nas divisões judiciárias. Confere ao Egrégio STJ, puramente, a faculdade de propor ao PODER LEGISLATIVO “a alteração da organização e da divisão judiciárias”(art. 96, II, ‘d’, da CRFB), bem assim ao Egrégio TRF/4ª “propor a criação de novas varas judiciárias”(art. 96, I, ‘d’, da CRFB). Note-se, o Egrégio STJ!!!

O Conselho da Justiça Federal tem atribuições exclusivamente administrativas(v.g., critérios de designação e incorporação de funções gratificadas dos funcionários da Justiça Federal, etc.) e orçamentárias(art. 105, §único, da CRFB). Inexiste qualquer atribuição quanto à gestão jurisdicional. A Lei nº 8.472/92, obviamente, extrapolou.

A organização judiciária sequer pode ser objeto de lei delegada(art. 68, §1º, I, da CRFB), tampouco de medida provisória(art. 62, §1º, ‘c’, da CRFB).

Sobre a JUSTIÇA FEDERAL, enfatiza, cansativamente, que será institucionalizada por “… varas localizadas segundo o estabelecido em lei” (art. 110 da CRFB – grifou-se).

Contrastando com essa peroração da Carta Política pela mais estrita legalidade na organização judiciária, o Egrégio TRF/4ª edita a Resolução nº 20/03 sem invocar qualquer dispositivo da “Lex Fundamentalis”.

Fundamentou o normativo, tão somente, em atos infraconstitucionais. Em suma, busca submeter a Carta Magna à interpretação das leis ordinárias. E que leis ordinárias são essas?!? Arts. 11 e 12 da Lei nº 5.010/66, não apenas anterior a atual Carta Política, de notórios avanços no devido processo legal, mas também editada à época que a Justiça Federal era privilégio das capitais, inexistindo no interior.

Aduz, também, o art. 11, §único, da Lei nº 7.727/89, que refere a vigência da Lei nº 5.010/66, naquilo em que recepcionada pela “Lex Fundamentalis”/88, enfatizando “… respeitadas as normas constitucionais pertinentes.”

Embora não referida pela Resolução nº 20/03, poderia ser invocada a Lei nº 9.664/98, “verbis”: Art. 3º Caberá ao Tribunal Regional Federal da 4a Região, mediante ato próprio, especializar Varas em qualquer matéria, estabelecer a respectiva localização, competência e jurisdição, bem como transferir sua sede de um Município para o outro, de acordo com a conveniência do Tribunal e a necessidade de agilização da prestação jurisdicional.

Evidente que, interpretada isoladamente, não subordinada aos ditames constitucionais, tal qual pretende o Egrégio TRF/4ª com a Resolução nº 20/03, essa norma vilipendia a Carta Política, arroga-se poderes constituintes originários, haja vista que derroga até mesmo cláusulas pétreas, a exemplo do Princípio do Juiz Natural.

A regra mais cara à história evolutiva do devido processo penal é a competência pelo local da infração, ou seja, o “locus delicti commissi” ´é o “forum delicti commissi”.

Sequer a competência “ratione materiae” e “ratione personae”, embora hoje gravadas pela nulidade absoluta, tem a relevância histórica da competência pelo lugar da infração. Tamanha a relevância do “locus delicti commissi” que prevê-se o desaforamento unicamente aos delitos sujeitos à competência do Tribunal do Júri, mediante incidente próprio, provada sua necessidade (art. 424 do CPP). Onde perpetrado o fato, cumpre exercer-se a jurisdição: UBI FACINUS PERPETRAVIT, IBI PENA REDDITA.


Vale ouvir o maior Mestre do Direito Processual Penal Pátrio, Espínola Filho, precisamente a propósito da competência “ratione loci”, sua “ratio essendi”, notadamente em prol da defesa social, da obrigatoriedade da ação penal, “verbis”:

“… A punição dos autores de uma infração da lei penal não representa um ato de vingança. A criminologia moderna justifica-a como uma medida de defesa do meio social, cujas condições de equilíbrio são perturbadas profundamente pelo crime, impondo a necessidade de segregar esse elemento, que se revelou mal adaptado, e que, doutra parte, se procura, com a correção, regenerar, tornando-o capaz de voltar ao convívio dos seus semelhantes, sem o risco de que venha a ferir, novamente, as condições normais de existência do grupo social.

Demais, ocorre que o crime causa um verdadeiro alarme social, no lugar onde se verificou a sua perpetração, intranqüilidade pública resultando não só do receio de que, impunido, o agente repita as suas façanhas nefastas e perigosas para os interesses coletivos e individuais, sem uma verificação próxima, no tempo e no espaço, das reações do poder público, para castigo do delinqüente, se lancem na prática de infrações idênticas ou semelhantes. Disse PROAL (Lê crime et la peine, 1892, pág. 493) que, com o crime, a segurança pública é perturbada, todos são ameaçados por esse inimigo público”, e MANFREDO PINTO (Sistema di diritto penale italiano, Vol. 1º, 1922, pág. 112) usou de uma fórmula, que se reputou das mais felizes, para fiscalizar o momento em que surge a necessidade de aplicar a pena: “onde e quando a ordem externa é comprometida e a tranqüilidade pública tolhida ou diminuída, de modo a que daí derive dano social”.

É, pois, no meio social que foi ferido, na sua normalidade, que necessita de ser tranqüilizado com o conhecimento dos responsáveis pelo crime e a aplicação, a eles, da pena, que os readaptará a esse meio.”(Código de Processo Penal Brasileiro, Freitas Bastos, 1942, Volume 2º, p. 90). Sob a ótica das garantias individuais, identicamente.

No “locus delicti commissi” está o acusado, testemunhas, etc., ensejando a mais ampla defesa. Mais! Está o Juiz Natural e o Promotor Natural(art. 5º, LIII, da CRFB), prerrogativas constitucionais contra o Juízo de Exceção(art. 5º, XXXVII, da CRFB), corolário do Devido Processo Legal (art. 5º, LIV e LV da CRFB). Precisa definição do Juiz Natural está na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vigorante em nosso sistema(art. 5º, §2º, da CRFB c/c Decreto Presidencial nº 678, 06.11.92), “verbis”:

“Art. 8º Garantias Judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista ou de qualquer outra natureza”(grifou-se)

Sabido que o desaforamento à capital, sem qualquer vínculo com o “locus delicti commissi”, terceirizará a instrução, procedida por carta precatória aos Juízos do interior(réus, testemunhas, etc.), espezinhando o Princípio da Oralidade(imediatidade, identidade física do Juiz, concentração, convencimento racional, “ictu oculi”, do Juiz, etc.), patentes os irreparáveis prejuízos tanto à Defesa quanto à Acusação, defesa social.

A Resolução do Egrégio TRF/4ª não apenas subtrai o Juiz Natural, instituindo Juízo de Exceção, mas, simultaneamente, o Promotor Natural, instituto reconhecido pela SUPREMA CORTE, uma vez editadas a Lei 8.625/95 e LC nº 75/93(STF, HC 70.290-2, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Informativo do STF n] 75 – Ag. 169.169-CE, Rel. Min. Ilmar Galvão, Informativo do STF nº 09), desarmando a defesa social. Ainda a Convenção Americana sobre Direitos Humanos(art. 5º, §2º, da CRFB c/c Decreto Presidencial nº 678, 06.11.92), “verbis”:

“Art. 8º Garantias Judiciais (…)

2 (…) Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

(…)

f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.”(grifou-se)

A faculdade itinerante do Juízo Especializado(arts. 4º e 5º da Resolução nº 20/03) é a ressurreição da figura do JUIZ DE FORA – nome celebrizado por expressivo Município de MG -, artifício do Direito luso-brasileiro pelo qual o Rei avocava o julgamento das causas que interessavam ao poder, delegando-as ao Juiz de Fora que, chegando ao lugar dos fatos, subtraia o processo do Juiz do Lugar, o Juiz Natural.

De que vale o extraordinário zelo da Carta Magna, sempre visando preservar o Juiz Natural, garantindo a inamovibilidade do Magistrado(art. 95, II, da CRFB) e sua residência na sede do ofício(art. 93, VII, da CRFB), tal qual o faz em relação ao Promotor Natural, se o JUIZ DE FORA, via Resolução do Egrégio TRF/4ª, subtrai-lhe as demandas?!?


De que valem as exaustivamente repetidas disposições da Constituição da República, repisando a necessidade de lei stricto sensu à organização judiciária se a Resolução do Egrégio TRF/4ª simplesmente as ignora?!?

A entender-se constitucional e legal a Resolução nº 20/03, seria admissível, v.g., criação de varas especializadas em crimes contra a administração pública, corrupção, centralizadas em Brasília (DF), subordinadas ao Egrégio TRF/1ª!!! Corte essa, a propósito, que sequer tem turma especializada em matéria criminal!

Se é possível subtrair, de forma infralegal, a competência de uma Comarca, Circunscrição, Subseção, por que não de uma Região?!?

A jurisdição dos Exmo(a). Des(a). Federais em nada, absolutamente nada, difere do Exmo.(a). Juiz(a) Federal do interior!!! Afora isso, a Resolução nº 20/03 fere, frontalmente, o Princípio da Razoabilidade.

Emanação do “substantive due process of law”(art. 5º, LIV, da CRFB), a Constituição da República consagrou o princípio da razoabilidade/proporcionalidade/proibição do excesso, cuja definição vem enunciada mediante análise tripartida, a saber:

a) Adequação, se a medida(desaforamento do interior às varas especializadas das capitais) adotada seja suscetível de atingir o objetivo escolhido(efetividade da defesa social e das garantias individuais do acusado);

b) Necessidade, se essa medida escolhida, meio empregado, não excede os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja, porventura existente outra de menor lesividade. Entre dois males, mister escolher o menor;

c) Proporcionalidade “stricto sensu”, custo-benefício, ponderação entre a medida e o resultado. Não se abatem pardais com canhões.

Princípio constitucional da proporcionalidade que, v.g., tem levado a Suprema Corte ao extremo de, reiteradamente, fulminar leis em sentido formal, acatando a inconstitucionalidade por ofensa à razoabilidade/proporcionalidade(v.g., ADIMC-1.158/AM, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 26.05.95, p. 15154 – ADIMC 1.753/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 12.06.98, p. 51 – ADIMC 2.209/PI, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJU 01.09.00, p. 105 – ADIMC 1.105/DF, Rel. Paulo Brossard, DJU 27.04.01, p. 57 – ADIMC 2.294/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 25.05.01, p. 10 – ADI 609/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJU 03.05.02, p. 13 – ADI 2.019/MS, Rel. Min. Ilmar Galvão -).

“A fortiori,” será inconstitucional resolução, ato infralegal, que atentar contra a razoabilidade. A especialização sempre foi usada para dar maior curso à demanda. “In casu”, ocorre o inverso. Não há demanda! Especializa-se para procurar processos, desaforando-os do interior à capital! A razão da reduzida demanda está na defecção dos órgãos de fiscalização, BACEN(Crimes contra o Sistema Financeiro) e COAF(Lavagem de Dinheiro), cujo volume de representações ao Parquet é pífio!!! A exceção está no Paraná, dada a megalavagem da tríplice fronteira, descoberta pelas CPIs dos PRECATÓRIOS e SISTEMA FINANCEIRO, ora objeto da CPI do BANESTADO, apuração na qual o signatário atuou, obtendo, frente ao Juízo Federal de Cascavel(PR) – do interior, diga-se !!! -, a quebra de sigilo de todas as CC5, US$ 124.000.000.000(“sic”), cuja investigação delongou-se, por responsabilidade do Ministério Público e Polícia Federal, não, portanto, pelas eventuais deficiências da Justiça Federal.

Assim, no Paraná, eventual especialização deveria ocorrer em Foz do Iguaçu, não em Curitiba.

Em Santa Catarina, identicamente. Todos sabem que esses delitos estão na razão direta da expressão econômico-social da região. “In casu’, o Vale do Itajaí (Blumenau, Joinvile, Jaraguá do Sul) é onde está o PIB de SC. Tanto assim, que apenas em Blumenau tramita persecução sobre portentosa lavagem de dinheiro internacional.

De outra parte, a lesividade, afronta às garantias fundamentais do investigado/acusado, são evidentes.

Vilipendiados, em conseqüências, os rudimentos da razoabilidade!!! Por último, minha reverência aos briosos Procuradores da República João marques Brandão Neto e Neviton Guedes de quem, amavelmente, plagiei alguns argumentos a esta modesta catilinária!

* Artigo publicado no Boletim dos Procuradores da República nº 63

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