Política macroeconômica

Contratos bancários atuais levam à política macroeconômica irracional

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5 de agosto de 2004, 19h25

Têm-se dito já há algum tempo que as decisões que revisam os contratos bancários proferidas pelos juízes estão gerando insegurança jurídica e levando a expansão do crédito no Brasil ao risco de colapso.

O pressuposto básico desse raciocínio é o de que a segurança jurídica, assegurada mediante a preservação inflexível do que é estabelecido pelas partes nos contratos, é um valor absoluto que deve prevalecer sobre qualquer outro, o que está muito longe de ser uma verdade.

Basta pensar nas inúmeras disposições, espalhadas pelos mais diversos diplomas legais, que estabelecem limites à liberdade de contratar, em defesa de princípios juridicamente muito mais relevantes.

Os juízes também são acusados de, ao revisar as taxas de juros, violar a legislação que disciplina as instituições financeiras. É uma afirmação igualmente falsa: o que se verifica é uma divergência na interpretação da lei, perfeitamente admissível em nosso sistema jurídico.

Que o Conselho Monetário Nacional tenha a atribuição de limitar as taxas de juros e, ao fazê-lo, limite-se a dizer que elas podem ser livremente estipuladas, é um fato, mas dele não se pode tirar a conclusão de que essa liberdade é absoluta.

Há um limite para o que a lei pode fazer na regulação das relações sociais. Se não fosse assim, nada haveria a censurar aos juízes que, na Alemanha nazista, deram cumprimento às leis raciais, restando apenas elogiá-los pela eficiência do desempenho funcional.

E esse limite existe inclusive para o mercado. Será suficiente dizer que John Williamson, conhecido como o pai do Consenso de Washington, no qual se basearam as reformas econômicas promovidas por Fernando Henrique Cardoso, opinou, pouco tempo atrás, favoravelmente à criação de uma comissão anti-monopólio para investigar a provável existência de um cartel no sistema financeiro brasileiro, cuja atuação impediria a queda das taxas de juros e dos spreads .

Talvez a verdade seja mais simples e não se possa falar verdadeiramente de “cartelização”, mas sim de suporte governamental para a preservação de um setor da economia que simplesmente não tem condições de subsistir dentro de um sistema de efetivo livre mercado.

Suporte esse generosíssimo, responsável pela transferência brutal de recursos para os bancos: em 1994, as despesas financeiras das empresas não-financeiras representavam 3,5% das receitas, passando a 14,2% em 1998 e atingindo 35,1% em 2002!

Os números são semelhantes no que diz respeito à pessoa física: segundo a Anefac – Associação Nacional dos Executivos de Finanças –, em 2002 os juros consumiam 29,83% do orçamento mensal dos consumidores, elevando-se a 35,43% entre as famílias com renda entre um e cinco salários mínimos.

Nesta matéria, a leitura de estudo técnico sobre as taxas de juros vigentes no Brasil, elaborado pelo professor Alberto Borges Matias, pode ser muito esclarecedora. O mencionado trabalho, além de comprovar, por exemplo, que o aumento da taxa Selic gera aumento da inflação, não traz estabilidade cambial e tampouco é necessário para a venda de títulos públicos, traz algumas revelações chocantes e pouco conhecidas do público.

A mais escandalosa delas é a de que, com o Plano Real, houve uma alteração na forma de financiamento do déficit público: substituiu-se a emissão de dinheiro, geradora de altas taxas inflacionárias, pela emissão de dívida.

Como a perda de receita com a aplicação de recursos sem remuneração (depósitos à vista, recursos de cobrança e recursos de terceiros em trânsito), resultante da drástica redução da inflação, conduziria os bancos à falência em cerca de três anos – “o ganho de R$ 9,3 bilhões no ano de 1994, na verdade meio ano de inflação, reduziu-se a menos de R$ 1 bilhão em 1995, com uma perda superior a R$ 8 bilhões” –, os “juros passaram a ser elevados, nas operações de crédito e na carteira de títulos, para compensar o setor bancário pela perda do floating.”

E, acrescenta-se, elevados também na remuneração dos títulos da dívida pública. Quanto a este ponto, aliás, os esforços do Estado para se manter solvente, às custas de aumento da carga tributária, cortes nos gastos com educação, infraestrutura e saúde, entre outros, logo encontrarão um limite.

O problema é que, então como agora, os bancos brasileiros possuem um custo operacional que é muito superior aos padrões internacionais, o que em parte é resultado do fato de ofertarem o menor volume de crédito do mundo: 24% do PIB.

Isto é, são altamente ineficientes, sobrevivendo apenas porque o governo tomou a decisão política de pagar juros elevadíssimos para a rolagem da dívida pública e de permitir que os consumidores e as empresas não-financeiras sejam quase literalmente extorquidos.

Sendo este o quadro, pedir aos juízes que deixem de revisar os contratos bancários é pedir que sejam cúmplices de uma política macroeconômica completamente irracional e socialmente iníqua, ou coisa pior ainda, num jogo em que só os bancos são ganhadores, sem em nada contribuir para a expansão do mercado de consumo e do financiamento da produção. Se preservada, a “segurança jurídica” nada consagraria além da permanente depauperação dos consumidores e dos outros setores da economia.

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